“Não fazem pouco de mim, que eu
não deixo. Lá porque são mais espertas que eu… quer dizer, mais espertas não
são, tiveram uma vida melhor. Enquanto elas andavam na escola, de bata branca a
aprenderem a tabuada como umas senhoras, andava eu atrás de um rebanho de
cabras e a trabalhar no campo. Havia eu agora de ter saúde?! Andei muito
curvada a apanhar tomate, a mondar e nas searas. As minhas costas ficaram bem
marcadas, que ainda hoje, em mudando o tempo, é dores em cima de dores. Pensam
o quê? Pois!”
- Então minha querida, está boa?
Gosto tanto de a ver, veio também ao panito, não?
“Olha lá aquela. Aqueles brincos
são iguais a uns que eu vi na montra da ourivesaria, estavam marcados a 300
euros! Isso não ganho eu de reforma que trabalhei uma vida inteira. Uma
vergonha! Andam aí mostrando e esfregando na cara das pessoas, feitas
imposturonas. Velhacas! Passassem o que eu passei e queria ver se tinham esse
ouro todo pendurado. Eu conseguir andar na vila sem estar toda esburacada e
ainda me chegar para a farmácia e o supermercado, ainda é uma sorte. Se
sobrasse um bocadinho mais… não era preciso muito que eu, habituada a viver com
pouco, ainda consigo poupar, que lá isso a minha santa mãezinha e o meu pai
sempre me ensinaram, ainda mandava arranjar a placa. Custa-me andar com a boca
neste estado que ainda serve de consolação a gente rir com dentes, mesmo com a
barriga vazia ou remediada com uma sopinha. “
- Então minha linda, está
boazinha? Estava agora mesmo a admirar os seus brincos. Muito bonitos.
“Falsa. Deve ter sido o amigo que
lhos deu. Pensa que não se sabe, mas eu vejo-o sair da casa dela. Espreita pelo
postigo a ver se vem alguém na rua e não me vê por detrás dos cortinados.
Grande puta! Toda a gente sabe. Eu não sou de conversas, mas há coisas que me
fazem impressão, pronto. O homem é casado, e ela a enfiar-se por debaixo dele
sabendo que tem mulher à espera em casa. Para ganhar uns brincos! Há gente para
tudo. O meu era outro assim. Não podia ver mulher à frente e ficava como um
burro no cio. Isso era como o outro. Que só uma vez lhe disse que me parecia
mal. Agora bater-me como depois deu em bater! Ai isso não, santa paciência.
Ainda aguentei uns anos daquilo, até as moças se acabarem de criar e casarem.
Agora, depois de velha, ainda apanhar porrada? Ninguém merece. Passa-se mal uns
tempos que isto já se sabe, os homens sempre ganham melhor e o dinheiro dele
ficou-me a fazer muita falta para orientar uma casa. Mas antes passar por
dificuldades do que levar porrada sempre que ele lhe apetecia.”
- Então vizinha, como está o seu
mocinho?
“Mocinho! Um drogado. O marmanjo,
uma pessoa olha para ele e, deusnossosenhormeperdoe, mas vê-se mesmo que é um
drogado ou um paneleiro. Ou as duas coisas! Não gosto nada do estilo dele.
Calças justas, cabelo grande e brincos. Diz ela que este ano vai entrar para a
universidade. Deve de ir sim senhora, e eu sou a Brigite Bardot! Mais certo é
entrar para a prisão. Isto são coisas que não podes dizer a ninguém, Leonor,
mas esta gente… era mandá-los todos para o mar num barco com um furo. E mesmo
assim tinhas que estar uns tempos sem comeres peixe, filha. No tempo do Salazar
não se ouvia falar disto! Havia respeito, R-E-S-P-E-I-T-O, olá se havia! Fazia
falta outro. Eu votava nele que aquilo da tortura e da PIDE é conversa dos
comunistas! Gente que nunca gostou de vergar a mola.”
- Então vizinha, amanhã vamos ao
terço? Lá nos encontramos.
“Vai rezar o terço para quê esta?
Uma maledicente, corta aí na casaca a meia rua. Ainda no outro dia estava eu a
dizer à Jacinta da fruta que esta menina devia ter espelhos lá em casa.
Vieram-me contar que disse à Toninha que eu cheirava mal dos sovacos. Eu!
Cheirar mal! Tomo banho todos os sábados que não vale a pena andar a tomar
banho mais vezes. Não ando a transpirar. Porca é a língua dela que naquela boca
não há ninguém bom. E depois vai à missa e reza feita badalhoca. O que ela
queria era que o padre lhe desse uns apertos que o marido já não tem força para
nada. É um banana que anda a sustentar-lhe os luxos, para andar aí com o cabelo
arranjado todos os quinze dias. E eu só o lavo à da Júlia uma vez por festa que
isto não estica para mais. Tivesse eu um homem com um ordenado como o dela e
fazia mais vista. Aquilo é só toucinho, só o que tem é manzarulhos de carne,
uma bácora bem manteúda. Na excursão que fizemos da INATEL eu bem vi. Era rolos
e rolos de banha por baixo do fato de banho. Comprou um preto para se notar
menos, mas então! Gorda! Nem se compara cá comigo, tivesse eu a placa amanhada
e ainda arranjava um daqueles velhos viúvos que vão nas excursões.
- Então senhor Joaquim, está
melhorzinho da constipação?
“Velho dum real cabrão! Rijo,
rijo, rijo e só o que faz é queixar-se. Anda ali como o ferro. Ainda vai
enterrar uma macheia deles mais novos antes de ir para a quinta das tabuletas.
Tivesse ele diabetes como eu, ou as articulações no estado em que tenho as
minhas e logo via o que era penar. E a médica de família, aquela bêbada, que
não me manda fazer análises. E ainda diz que eu estou muito bem. Deusnossosenhormeperdoe,
mas isto era ela ter as minhas dores uma semana para ver se aprendia. Quem diz
uma semana diz um mês. Quando a apanho antes do almoço a coisa, às vezes,
escapa. Agora depois de se encharcar na pinga, da parte da tarde, mais vale nem
lá ir. Bêbada! E este velho, cheio de genica que eu nunca vi um velho de 80
anos a fazer o que este faz, a queixar-se de dores. O mal é da idade, sua
carcaça. Eu, com os meus 64 também já vou tendo dores, que é que ele julga?
Vejam lá se me pergunta se estou melhor? Viu-me vir da farmácia com um saco
cheio de medicamentos e nem perguntou se estava doente! Falta de educação, isto
ninguém quer saber de ninguém. Fora tu, Leonor que és uma santa. Todas como tu
Leonor!
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