Os serões de inverno no monte eram mais curtos. Tinha
de ser assim. O sol que se punha cedo e o frio a isso obrigavam. No verão, o
monte parecia muito diferente. Os homens e mulheres, sentados em cantos
opostos, ao relento, conversavam e riam. Contavam anedotas e episódios que, com
mais ou menos exagero, se tinham passado com eles que começavam sempre da mesma
maneira: “Vou-vos contar uma parte que me aconteceu”. Os garotos corriam por
todo o lado, mais ainda se calhava a lua cheia iluminar com o seu clarão o
montado, tornando visível a silhueta de todas as coisas. Brincavam às
escondidas, à apanhada e a tantas coisas inventadas que nem eles conseguiriam
listar.
Quando o sol começava a ficar mais baixo, os dias mirravam
e a noite caía ainda os habitantes do monte não tinham largado o trabalho, a
rotina mudava. Dentro de cada casa, os chupões tinham sempre lenha a arder e à
volta do fogo, as famílias resistiam pouco tempo a acamalharem-se nos colchões
listados e recheados a palha. Ainda assim, para manter o hábito e porque de
outra distração não dispunham, os quatro homens juntavam-se depois de comerem
as sopas. Na maior parte dos dias, falavam pouco. Eram calados por natureza e
também pouco havia para partilharem que os outros não soubessem já. O inverno
tornava-os taciturnos, cinzentos como os dias frios e húmidos, que tinham que
suportar. Trabalhavam juntos, lado a lado na propriedade do senhor coronel.
Vidas quase iguais no pouco que conseguiam amealhar no final de uma jornada de
trabalho.
Apanhavam agora a azeitona. Sabiam que, em havendo boa
colheita e apanhada a azeitona rapidamente, poderiam vir a gozar da
generosidade do senhor coronel. O Natal não vinha longe já e qualquer bónus era
bem-vindo para ajudar a pôr qualquer coisa no sapatinho, mas mais importante, a
pôr qualquer coisa na mesa. Mesmo com os braços doridos de varejar e com o
corpo a pedir descanso, faziam a vontade à cabeça que pedia também uma
ocupação. Assim, juntavam-se para jogar à sueca. As parcerias estavam já
feitas, eram sempre as mesmas para que os perdedores de hoje pudessem ter a
desforra no dia seguinte. Um dos mais velhos era parceiro de um dos mais novos
para misturar experiência e cautela com atrevimento e arrojo na dose certa para
ter sucesso. Como jogavam à sueca, todos esperariam que fossem quatro, afinal
são essas as regras do jogo. Mas, já vamos ver que não.
O Olímpio, era o mais velho dos jogadores. Tinha
passado já cinquenta invernos no monte, mas parecia mais. Tinha um olho baço que
assim estava desde a infância quando uma brincadeira com um pau lhe deixou uma
pua de madeira alojada na vista. O bigode também contribuía para um aspeto que
metia respeito, para não dizer medo. Era um bigode quase aristocrático e talvez
a única coisa de que Olímpio tivesse vaidade. Mas, Olímpio não era o que
parecia. Metia, às vezes, medo aos ratinhos que vinham de longe para ajudar nas
searas. Tremiam perante a sua presença quando se apresentava como o manageiro
para mais tarde descobrirem que tinha um coração mole. Não fugia de discussões
e uma vez mesmo houve uma briga que meteu navalhas. Assim que Olímpio viu o adversário estendido com o sangue a jorrar das tripas, pôs-se da cor da cal e teve que
sair dali. Diziam depois que dera metade das suas jornas daquele mês à mulher
do desgraçado, mesmo tendo sido o outro a puxar primeiro da navalha.
O segundo era o Joaquim Zé. Este não sabia dizer a idade
e, sendo dos mais velhos, era dos mais recentes habitantes do monte. Dizia-se
que era arraçado de maltês e o tom moreno da pele parecia confirmar essa ideia.
De todos, era o que contava mais histórias. Algumas verdadeiras, outras
mentiras, certamente, mas todas com o condão de deixar todos a rir e bem-dispostos.
Dizia que tinha crescido junto ao mar, no Brejão. E maravilhava todos a falar do
oceano, os seus olhos verdes iluminavam-se a descrever aquela vastidão de água que
os habitantes do monte nunca tinham visto e nem conseguiam imaginar.
Havia depois o Vicente, o parceiro do Olímpio. Acabado
de regressar ao monte, vindo da tropa, parecia não ter mais nenhum assunto de
conversa desde que fora às sortes. Fora um menino e viera um homem para gáudio
do pai e desgosto da mãe. A desgraçada via agora o filho emborcar copos de
vinho como se fossem água, a beber medronho como os homens e temia que desse em
beberrolas. O pai ria-se desses temores maternais e dava palmadas valentes nas
costas do moço que se ria também.
O quarto era o parceiro do Joaquim Zé, o Benício. Rapaz
de poucas palavras. Parecia não dar conta das pessoas quando o chamavam e, se
era obrigado a falar, fazia-o sempre tão baixinho que obrigava o interlocutor a
aguçar os ouvidos e fazer força para o entender. Desde pequeno que gostava mais
da companhia das bestas do que das pessoas e tinha mesmo mostrado dotes para os
animais. De maneira que, ficara o arrieiro do senhor coronel. A mãe dele dizia
que era um “paz de alma”, quase parvo, não tinha maldade. Mas o Joaquim Zé respondia
logo “Então vá lá vê-lo a jogar à carta para ver o manhoso que ele é!”
Havia ainda um quinto elemento que fazia parte destes serões.
Não era um jogador, mas era presença sempre à mesa onde jogavam. O Ti Armando.
O Ti Armando era sogro do Joaquim Zé e ia já perto dos oitenta anos. Sem poder
já trabalhar, tentava não estorvar durante o dia ocupando-se de uma pequena horta
que tinham junto à ribeira. À noite, para distrair e usufruir de companhia, juntava-se
à mesa para ver o jogo e ouvir as conversas, se as havia. Por respeito aos seus
cabelos brancos, perguntavam por rotina se o Ti Armando queria jogar mesmo sabendo
que a resposta era invariavelmente negativa. Bem, então jogavam eles.
Mas se o Ti Armando se recusava a jogar, não se negava
nunca a interromper as jogadas para perorar sobre um falhanço de um deles: ou
porque não respeitara o sinal a pedir trunfo do colega, ou porque não contara
as cartas e insistira numa jogada que deu em corte, ou porque devia ter destrunfado
ou por qualquer outro motivo. E repetia sempre no fim: “Já não se joga à Sueca,
como antigamente”. O Joaquim Zé, já com menos educação perguntava de novo se o
Ti Armando queria jogar, ao que ele nem se incomodava a responder, rindo.
Os únicos momentos de descanso que tinham era quando o
Ti Armando, por causa dos muitos anos e pelo adiantado da hora, adormecia com a
manta aos joelhos embalado pelo jogo de cartas. Se acordava, voltava de
imediato aos seus comentários quanto à falta de talento de Olímpio, Joaquim Zé,
Vicente e Benício para a sueca.
Uma noite em que as críticas de Ti Armando estavam
particularmente azedas e azedos estavam também os quatro jogadores, deu-se um acontecimento
que havia de ser contado pelas tabernas do Alentejo, de Barrancos a Odemira e
de Almodôvar a Portel. O Vicente enganou-se a dar as cartas, “passou-as” e, em
vez de dar dez cartas a cada um, distribuiu-as mal e um ficou com nove e outro
com onze. Aí o Ti Armando, entre cuspo e gargalhadas, disse tudo como os
malucos. Chamou “burricalho” ao rapaz, disse que já tinha visto fazer todo o
tipo de asneira àquela mesa e que, com tanto jogar, em vez de melhorar parecia
que jogavam pior. Foi de tal maneira que ficaram todos com a cara muito
encarnada e só não responderam porque não se responde a um ancião. Perguntou só
o Joaquim Zé ao sogro, sem descerrar os dentes que a raiva fazia apertar: “Quer
jogar?”. Mas o Ti Armando respondeu apenas: “Não jogo com burricalhos”, insultando
agora todos.
Quando o Ti Armando adormeceu, como era seu hábito, os
parceiros ficaram aliviados e puderam retomar a partida ainda com a humilhação
a arder-lhes nas entranhas. Foi aí que o Benício, o “paz de alma” que “não
tinha maldade” teve a ideia. Estranharam todos o Benício ter uma ideia e mais
estranharam estar na disposição de falar com os três para contá-la. Mal a
partilhou, os outros três abraçaram aquilo com os dois braços e puseram o plano
em prática. Sem fazer barulho, o Vicente tapou muito bem o postigo com um
rodilho para não entrar luz nenhuma, o Olímpio apagou o fogo com um pouco de
água e o Joaquim Zé apagou o candeeiro a petróleo. Rapidamente tudo ficou na
mais absoluta escuridão. Então, sentados nos seus lugares, começaram a bater
com as cartas na mesa, simulando estarem a jogar. Guerreavam uns com os outros
e tudo, levantando cada vez mais a voz a ver se conseguiam que o Ti Armando
acordasse. Finalmente conseguiram. O Ti Armando acorda com o barulho, abre os
olhos e nada vê. Passa a mão pela cara, estica os braços e grita de susto: “Mãezinha,
estou ceguinho!”. Todos desataram a rir, fazendo tanto barulho que as mulheres
vieram a ver o que se passava, trazendo os candeeiros. Só aí o Ti Armando percebeu
o que tinha acontecido. Ficou envergonhado por não ter dado pela marosca que os
moços tinham preparado, mas ao mesmo tempo aliviado. Foi remédio santo, a
partir dessa noite a sueca, no monte, passou a ser um jogo de mudos.
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