Tuesday, June 09, 2020

ying-yang

Os primeiros pensamentos que nos ocorrem numa reflexão por vezes são uma precipitação. O fácil e rápido às vezes pode chegar perfeitamente para uma situação simples, mas o mundo e a humanidade estão cheios de complexidade. 
Na América, país longínquo, mas sempre presente nos telejornais, George Floyd foi detido por um agente de polícia que usou, manifestamente, excesso de zelo e força despropositada que levou à sua morte. Acontece vezes demais na América, onde os polícias são pouco tolerantes e mais temidos que respeitados, e são-o mais com afro-americanos. Isto não é uma opinião, há dados estatísticos que o comprovam. Por exemplo, um afro-americano tem duas vezes e meia mais probabilidades de ser morto por um polícia que um branco. As mortes por milhão de habitantes às mãos da polícia são o dobro quando se trata de afro-americanos relativamente a caucasianos. E há muitos outros dados que encontrei num site que penso ser insuspeito: www.statista.com. Compreender a indignação de uma boa parte da população com a morte de George Floyd, implica ter uma noção do que é e do que foi a América. Aqui, à distância, nem sempre é fácil. Hollywood mostra-nos uma face glamorosa, mas postiça, os noticiários mostram-nos outra. Ainda assim, é insuficiente. É difícil termos uma perspectiva da diversidade daquele país que é capaz de eleger Trump, mas que também colocou Obama na Casa Branca. É o país do Tiger King e do KKK, mas também de Lincoln e Martin Luther King Jr. 
A chegada dos protestos a Portugal veio trazer algumas reacções que, não sendo muito coerentes, devem ser abordadas. 
Em primeiro lugar, não há a noção do que é o privilégio. A alguém branco, mesmo nascido numa família com poucos recursos, falta a capacidade de se colocar no lugar de quem tem uma cor de pele diferente. Pode ser uma questão de empatia, mas em tempos de crise, quando somos afetados por problemas sociais, temos tendência para viver na nossa bolha e marginalizar os que são diferentes. Ainda mais quando alguém aparece a responsabilizar os outros pelos nossos problemas. Ou então é uma questão de semântica com a palavra privilégio. O seu significado não é sempre tão linear como parece. 
Depois há a questão da bipolarização: os maus e os bons. A obrigatoriedade de escolhermos lados: ou estou com os polícias ou com os bandidos. Como se numa instituição tão grande não houvesse, necessariamente, um número elevado de maus elementos que pertencem a grupos racistas. Certamente que a maior parte são pessoas que seguem uma vocação de proteger e ajudar, mas exigir que os que são racistas sejam responsabilizados e, se possível, expulsos da organização não é atentar contra a dignidade e profissionalismo dos primeiros. É defende-los do mau nome que alguns dão à farda. A única bipolarização que devia existir era entre os racistas e os anti-racistas. 
Depois há o folclore das designações. Há os que entendem que a designação de afro-americano é uma invenção do politicamente correcto, esquecendo que veio substituir uma designação extremamente ofensiva como "nigger". Juntam-se depois comparações estapafúrdias como a do cidadão assassinado por um cigano. Como se houvesse comparação entre um homicídio perpetrado por um indivíduo num contexto não conhecido e outro cometido por quem se deveria dedicar a proteger. 
Finalmente, aquela que é para mim a questão central, a ideia de que Portugal não é um país racista. Ora, se num país há racistas no parlamento, nas forças da lei e, digo-o com pena, na classe docente, enfim, em toda a sociedade, o país é racista. Isso vê-se todos os dias, até no pacato Alentejo. Vê-se, por exemplo, nos sapos de louça nos serviços públicos, no feed do facebook, nas milhentas páginas de fake news patrocinadas, por ventura, por apoiantes de movimentos racistas e xenófobos, nas caixas de comentários dos jornais, nas anedotas sobre o "preto". É um pequeno racismo, mas está lá e vai crescendo, devagarinho até ficar fora do nosso controlo. 

Wednesday, April 01, 2020

Contos da Quarentena I Confina a mente

Só me falta a farda!” Não conseguiu conter a força do pensamento de maneira que lhe saiu em voz alta em frente ao espelho. Começava mais um dia de quarentena e de trabalho para António Oliveira. Apesar de reformado e fazendo parte dos grupos de maior risco por força da idade, não era medo que sentia durante esta pandemia. Animava-o uma nova vitalidade, uma alegria estranha ao ver, nas notícias, os soldados pelas ruas.  

Tempos houve, de má memória para António, em que a tropa na rua era sinónimo de desgraça e degeneração. Mas agora não! Impunham a ordem que desejava que fosse geral ao país, ao mundo. Durante as horas do dia em que o corpo não reclamava o descanso, estava na marquise com um olho, vigilante, na rua, pronto a gritar ordens e imprecações a quem avistasse, e outro no computador, ligado às redes sociais. Este aparente estrabismo era alegremente suportado por António que desejava que o livrassem, a ele e aos outros, desse vício que era a Liberdade, empregando mais músculo na aplicação de medidas de contenção. “Todos temos que fazer sacrifícios”. Era assim que colocava as coisas. E, afinal, que sacrifício era este? Ficar em casa, com todos os confortos da vida moderna: água canalizada, esgotos, eletricidade, internet! O confinamento nunca foi tão fácil como agora. Com um telefone ou só com a internet pode-se encomendar de tudo. Fruta, verduras, carne, peixe, móveis, eletrodomésticos, vinho, medicamentos, máscaras, álcool gel… Até brinquedos sexuais para os mais pervertidos, António tinha visto por curiosidade.  

Opinava muito, lia bastante, ignorava as notícias quando os factos reportados não validavam os seus pontos de vista, mas partilhava muitos rumores e boatos quando eram mais do seu interesse. Acabara por desenvolver uma capacidade de leitura muito específica. Não se pode chamar “ler nas entrelinhas”, ia mais além: “ler nas entreentrelinhas”. Procurar numa notícia um detalhe a que ninguém mais dava importância e elevá-lo à categoria de parágrafo guia. 

Do seu saudoso pai, antigo agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado, herdara não apenas a devoção a São Salazar, mas também o culto da ordem e do respeito. Enquanto se olhava ao espelho, procurava nas suas feições vestígios do rosto autoritário do desaparecido progenitor e concluía que era mais desafortunado por viver nestes tempos.  Ao pai coubera em sorte defender a Pátria da ameaça do comunismo, um cancro que minava as fábricas e explorações agrícolas. Com que amor pelo Estado infligia torturas físicas e psicológicas a estes bolcheviques! Era com espírito de missão que apagava os cigarros nas suas costas ou lhes arrancava as unhas. Nada melhorava mais a disposição deste diligente funcionário do que fazer “cantar” um destes vermelhos à bastonada. Chamavam-lhe “maestro” porque sob a sua “batuta”, todos acabavam por “cantar” ou então numa cama do hospital. Depois disso, Tarrafal, lugar do Chão Bom, onde a comida apenas impedia que caíssem no chão inanimados e os médicos existiam só para assinar declarações de óbito.  

Felizmente que o seu pai tinha sido poupado a estes tempos. Acabou por morrer cedo, já com o país a festejar uma pirralha liberdade. Talvez dos nervos que sentia por temer ser reconhecido na rua por algum comunista dos que tinha torturado tivesse acelerado a sua partida. Contudo, pensa António, com alívio, sem remorsos por ter servido o país. A António afligia-o não ter podido usufruir dessa honra. Tinha feito os 18 anos e estava na tropa quando veio o destacamento para o ultramar. Guiné. A família via aquilo como uma sentença de morte. António era enfermiço, não havia doença infantil que o não tivesse apoquentado e ainda o acompanhava a asma, a rinite e outros achaques sem fim. Para fazer a recruta, fora o cabo dos trabalhos. Antevendo que António seria repasto para mosquitos e que o paludismo o mataria mais depressa que as balas do inimigo, a família empenhou-se em evitar tal fatalidade. O pai era alguém na polícia política e conhecia as pessoas certas. Sabia muita coisa sobre muita gente e entre a oferta de favores e a sugestão de uma ameaça, conseguiu que o filho ficasse pela metrópole. Não teve, assim, o privilégio de colocar a sua vida entre a pátria amada e aquelas que a queriam ameaçar.

António recordava ainda o confinamento a que o seu pai fora obrigado durante vários anos após a revolução. Revivia o seu desanimo ao ver que um homem grande e orgulhoso ia definhando neste abominável novo mundo. Isso fazia crescer o seu ressentimento para com a Revolução. Lembrava a quarentena que o pai cumpriu, sem aparecer na rua, a ida para uma aldeia perdida no mapa em Trás-os-Montes onde ninguém suspeitasse das funções que desempenhara com tanto zelo, até ao dia em que morreu e António e a mãe puderam, enfim, regressar ao apartamento vazio no Lumiar. 

Lembrava-se e passava a mão pela calva, único vestígio do cabelo desgrenhado que, contra a sua sensibilidade estética, outrora fora obrigado a ostentar. Reflete. “eram as máscaras da altura, não se podia sair à rua de outra maneira.” Eram tempos em que o cabelo curtinho nem a militares ficava bem visto. As ideias novas saíam, livres, da cabeça e iam deslizando pelos cabelos, infetando tudo e todos, como piolhos, de novas palavras de ordem que inspiravam a maior repulsa em António. Cabelo à escovinha e barba aparada era sinónimo de reacionário e António tinha, na altura, muito medo de que o identificassem como o filho do PIDE. Hoje, felizmente, pensa, as coisas mudaram muito. Apareceu finalmente um partido que defende “os portugueses de bem”, que quer acabar com a “esquerdalha”, que desmonta as mentiras do “jornalixo” e que aceita todos os que querem acabar com a ameaça vermelha no país: dos saudosistas do Estado Novo a Neo-nazis todos são essenciais. “Afinal, se a extrema esquerda pode existir, por que não a extrema direita?!” Tantos anos de liberdade e ele sem liberdade para dizer o que pensa! Que leveza em poder dizer que os pretos deviam voltar para África e os ciganos deviam ser exterminados! E ainda ser aplaudido pelos seus correligionários.

Os dias começavam cedo, tomava um pequeno-almoço espartano, condizente com a situação, já lendo os destaques do seu periódico favorito, Alerta da Manhã. Pegava depois no computador portátil, removendo o sudário de plásticos que o protegiam, para começar o seu trabalho. Tratava-o com o mesmo desvelo que um atirador furtivo trata a sua arma. Encontrou uma primeira notícia que lhe chamou a atenção: “Um campo de refugiados às portas de Beja”. Condicionado para se enervar com a palavra refugiado, imediatamente abriu a notícia, era afinal sobre ciganos. Ainda assim, não fora tempo perdido. Clicou em “partilhar” e produziu as exclamações: “A esta gente nada se lhes pega! O vírus havia era de os levar, para deixarem de mamar à conta dos nossos impostos!” Ao fim de dez minutos, verificou, contente, que tinha cinquenta gostos, vários comentários concordantes e vinte partilhas. Uma onda de prazer percorreu-lhe o corpo, sentimento inequívoco de dever cumprido. Encontrou depois uma publicação sobre os mercados de venda de animais para consumo na China, com espécies pouco ortodoxas para os padrões ocidentais. Nova partilha com a legenda: “Boicote aos produtos e lojas dos chineses! Raça que não acaba, querem dominar o mundo com esta doença! Abram os olhos!” Novo coro de aprovação e aclamação. Por acaso, só por acaso, as notícias eram verdadeiras. António tinha descoberto que a verdade, nas redes sociais, é sobrevalorizada. Preferia acreditar numa mentira que lhe agradasse do que numa verdade que lhe fosse amarga. “A generalidade das pessoas é assim”, refletia, “basta ver como é no futebol, nunca parece haver falta se o penalti é contra a nossa equipa.” Por isso, mesmo sabendo que se tratava de uma aldrabice pegada, partilhava as maiores infâmias sobre os políticos canhotos, sobre ativistas, jornalistas ou aquele que fosse o inimigo do dia.

A seguir era a hora dos programas de rádio que realmente interessavam. As antenas abertas e fóruns públicos. “As pessoas estão fartas de ouvir falar os doutores e engenheiros, quase todos da extrema esquerda. É preciso dar a voz aos portugueses autênticos.” Felizmente, inconsciente da ironia por assim pensar, ele que sempre fora um defensor da limitação da liberdade de expressão de que a organização de seu pai fora expoente máximo, lá marcou os números para participar nos dois programas mais populares. Raramente era escolhido para participar, mas tentava todos os dias. Não falasse ele e falaria outro António. As pessoas iam perdendo o medo de chamar bois aos bois. Os temas variavam, mas a António isso era indiferente. Tinha um guião fixo que apenas necessitava da introdução, essa sim dependia do tema. O pretexto podia ser futebol, educação, racismo, saúde, trabalho, pesca, drogas, Europa, o que fosse. António acabaria por falar do 25 de Abril, do fracasso da democracia, da dissolução dos costumes, da insegurança, das minorias que sugavam o estado social, do marxismo cultural, da ideologia de género e da corrupção. Quando acontecia entrar em direto, ficava num estado de excitação anormal que só acalmava muitas horas mais tarde. Sentia até, apenas nesses momentos, um volume a que já não estava habituado a crescer-lhe nas calças. 

Depois do meio-dia, ouvia a conferência de imprensa com os últimos dados. Tentava ler nas expressões dos ministros e delegados de saúde que tipo de novidades vinham relatar. Desejava, secretamente, que aumentasse o número de infetados e mortos. Quanto maiores os números, mais sucesso obtinham as suas publicações. Quanto mais medo, mais fechados ficavam todos. Refletia: “As mais definitivas das prisões têm sempre o trinco do lado de dentro. Ninguém é aprisionado tão irremediavelmente como quem o faz de livre vontade”. Pegava nos gráficos e indignava-se no mundo virtual: “Enquanto não tirarem às pessoas a liberdade de andarem pela rua, isto não vai ter fim!” Se não era suficiente o medo para levar ao isolamento, António pensava que devia ser o Estado, pela força. Se os números calhavam a baixar, era a sorte, a chuva, era a responsabilidade de alguns cidadãos. Se subiam… bem, se subiam a culpa era dos deputados de esquerda, viciados na peçonhenta liberdade. 

A seguir ao almoço, alguns dos vizinhos vinham à rua. Uns passeavam os cães, que ajudavam a morder a solidão, outros davam pequenos “passeios higiénicos” separados por muitos metros e sem ajuntamentos. António a todos interpelava, cuspindo-se de raiva, do alto da sua janela. “Cambada de irresponsáveis! Haviam de ser presos!” 

De regresso às redes, via que alguém tinha publicado críticas à classe política e dirigente por não ter aplicado medidas restritivas mais cedo, as chamadas "sopas depois de almoço". Não era nenhum especialista, era um antigo colega de trabalho no escritório de contabilidade. Para António era um calhau com olhos, ainda por cima de esquerda, mas desta vez estavam de acordo por isso deixou um "gosto" e o seu costumeiro chiste: “No tempo do Salazar, os políticos eram homens sérios! Agora temos a extrema-esquerda no poder…” 

Ah, eram dias felizes para António. Ainda mais quando o Presidente da República e o Primeiro-Ministro anunciaram, por fim, o endurecer das medidas de contenção. Quem circulasse na rua tinha sempre de ter um documento que o justificasse. Quem não cumprisse, levava multas pesadas e penas de cadeia. Faltou apenas a "delação premiada" para que António ficasse plenamente satisfeito. As ruas, já de si desertas, ficaram ainda mais vazias. As pessoas que cantavam às janelas desanimavam com o prolongar do cerco, recolheram-se ainda mais como se a simples visão das ruas, agora vedadas, lhes provocasse uma angústia insuperável, uma saudade da antiga rotina que antes lhes parecia desinteressante. 

Certo dia, ao executar o seu demorado ritual antes de dormir, apercebeu-se que se estava a acabar a pomada Viks VapoRub. António tinha lido algures nas redes sociais que era um medicamento muito eficaz para prevenir e combater o vírus. Naturalmente, só não era mais divulgado porque a indústria farmacêutica não tinha interesse em que se soubesse. As redes sociais pululavam de páginas “pela verdade” que desmascaravam conspirações de dimensões globais: a rede 5G que controlava o cérebro da população, a vacina para a enfermidade que iria implantar um chip para transmitir dados biométricos às grandes corporações, os “Chemtrails” espalhados pelos aviões que disseminavam químicos pela atmosfera para tornar a população mais dócil e não questionar os seus líderes reptilianos vindos de outro planeta. Havia teorias para o menino e para a menina, era à escolha. Sempre que alguém um pouco mais iluminado chamava a atenção para o absurdo por detrás dessas ideias, os seus seguidores, mandavam-no, invariavelmente, de volta para o rebanho. De maneira que, na manhã seguinte, preparou-se com luvas, máscara e uma garrafa de álcool no bolso e saiu de casa em direção à farmácia com o fito de comprar alguns frascos. 

Ia, feliz por não ter encontrado vivalma no trajeto, quando foi abordado por uma patrulha da polícia. Dir-se-ia que os dois homens estavam cansados da situação, enervados por estarem sempre separados das famílias e expostos aos maiores riscos. Só isso explica que se tenham dirigido a António, que tinha idade para quase ser seu avô com modos tão rudes: “Olha-me este! Que é que andas a fazer na rua, ó velho? Mostra lá a tua justificação.” António empalideceu, não tinha justificação. Começou a explicar que ia comprar o Viks, que era um método infalível para evitar a doença. Os agentes começaram a rir, nem disfarçavam o que achavam de António. “Está bem ó avozinho, diga lá onde mora que vamos levá-lo.” António resistiu, indignou-se, procurou no telemóvel o artigo para mostrar aos agentes. Estes riram ainda mais. Chamou-lhes nomes, desrespeitou a farda e trinta por uma linha, até que um deles perdeu a paciência, atirou-o ao chão com uma facilidade que António não antevira e o algemou. Colocaram-no no carro à força e levaram-no para casa. 

À chegada, uma receção surpreendente. Os vizinhos, todos à varanda. Nas janelas, caras surpreendidas com o que se via: António saía do carro patrulha algemado e com a ajuda dos polícias. Foi libertado, mas os seus carcereiros esperavam que ele se encaminhasse para a porta do prédio. Os vizinhos começaram então, como que num coro ensaiado, a devolver a António, de uma vez, todos os impropérios que foram guardando durante a quarentena, numa enxurrada de raiva artificial, com muito riso contido, que fez o quarteirão estremecer. Entrou no prédio de cabeça baixa e só saiu para receber a primeira dose da vacina. 

Nunca mais vi nada publicado por ele nas redes sociais desde essa altura, mas ainda o vejo todo o dia à marquise, vigilante. Quis-me vender o computador, estimado como estava e sendo bom o preço, aceitei. Disse-me que já não lhe dava uso. Foi um bom negócio para os dois. Quando o liguei pela primeira vez, fui ver o histórico de navegação. A última página que visitou foi a de um jornal que investiga e denuncia notícias falsas, dizia que era mentira que o Viks prevenisse ou curasse o vírus.

 

 

Friday, February 14, 2020

Eutanásia, outra vez

Há cerca de dois anos, pudemos testemunhar um "debate" sobre a despenalização da eutanásia. Então, como hoje, houve muita argumentação inflamada, inquinada pela emoção e até por crenças metafísicas e religiosas. Decidiu-se, na altura, adiar uma decisão para a legislatura seguinte porque o debate terá sido insuficiente.
Hoje estamos na segunda semana de uma campanha, que tem maior a instituição religiosa do país no epicentro, em prol de um referendo. Dizem que durante a campanha para as eleições legislativas não houve uma tomada de posição oficial dos partidos políticos e que, como tal "não podemos permitir que alguns deputados queiram decidir por nós."
Em primeiro lugar, recordo este trabalho do Público (https://www.publico.pt/legislativas-2019/nove-temas-seis-lideres) que questiona os líderes dos principais partidos sobre o assunto, conseguindo uma resposta inequívoca. Em segundo lugar, na nossa democracia é exatamente assim que as coisas funcionam: elegemos um parlamento para que os deputados possam exercer, em nossa representação, o poder legislativo.
Depois temos ainda a pergunta que querem propor aos portugueses, formulada de forma demagógica e inaceitável: "Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei em quaisquer circunstâncias?"
Na minha opinião, a despenalização da eutanásia é uma inevitabilidade, um avanço civilizacional inexorável. Vai acontecer mais tarde ou mais cedo, com maior ou menor oposição. Mesmo que algumas instituições religiosas tentem instrumentalizar os fiéis e usem celebrações religiosas para fins políticos, ignorando até Cristo que diz em Mateus 22:21: "Dai pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". A laicidade do Estado não deveria ser um tema em 2020, especialmente quando olhamos para a forma como se vive na maior parte dos estados confessionais que ainda subsistem pelo globo. Um estado laico respeita de igual forma todas as religiões, permite a liberdade religiosa sem que esta se sobreponha às leis do país. Mas deve haver reciprocidade. As instituições religiosas devem também respeitar o funcionamento da democracia. Os  fiéis, apesar de serem, alegoricamente chamados de rebanho, podem comportar-se com autonomia e usarem o seu pensamento crítico e livre arbítrio para escolherem as forças políticas que melhor representem as suas convicções.
O CDS, o PCP e o PSD deixaram claro que estariam contra a legalização da eutanásia, ressalvando Rio que haveria liberdade de voto no seu partido. Curiosamente, foram os partidos que mais perderam eleitorado. Não estou a afirmar que haja uma relação direta entre as propostas e os resultados, mas é factual.
Há dois anos, como hoje, penso que é uma questão de valores. Temos em oposição a Vida e a Liberdade. Na minha escala de valores, a Liberdade é mais importante. Os próprios mártires da Igreja sacrificaram a sua vida pela liberdade religiosa. Nisso concordo com os perto de 70 milhões de martirizados que se contabilizam desde os tempos de Jesus.
Acima de tudo, a despenalização da eutanásia reforçará a liberdade. Quem prefere, em determinadas condições, terminar com o sofrimento, pode fazê-lo sem temer a perseguição dos que o auxiliarem. Mas quem se opuser a isso, pode continuar a sua vida até ao fim natural, suportando as dores e o sofrimento de que algumas religiões fazem a apologia. De preferência, devem poder contar com os melhores cuidados paliativos que a ciência puder proporcionar. Já contam com um alívio que não menosprezo, o da fé. A fé pode ajudar os crentes a justificar e aceitar o sofrimento, mas e os que não a têm? Por que razão hão-de ter a obrigação de suportar a dor? 
A lei será aprovada, com ou sem referendo, hoje ou daqui a dez anos e depois resta-nos questionar porque demorámos tanto tempo. 

Friday, January 24, 2020

Lourenço

"A vida é circular". Era assim que falava. Sentenciava da autoridade dos seus oitenta e alguns anos. "Os que a vêem como uma linha que parece reta, enganam-se". 

Era difícil perceber a que se referia. Os filhos e netos encolhiam os ombros, certos de que a idade trazia já alguma baralhação natural às ideias. Ao mesmo tempo, surpreendidos. Não era costume ouvir-lhe duas frases seguidas. Mas isso não lhe diminuía o entusiasmo. Não lhe interessava se o compreendiam. Sabia que, um dia, chegariam eles próprios à mesma verdade. De que lhe valia tirar-lhes as certezas? Temos que ser nós próprios a abdicar delas, se tentam que as abandonemos, ainda as agarramos com mais força. 

E embalava na conversa: "Eu também pensava que era uma linha que se ia apagando no fim, mas vejo agora que não." Com o bisneto ao colo, os descendentes atribuíam também à comoção do momento alguma desordem no discurso. "É um círculo, nós é que estamos tão concentrados no que acontece à nossa volta que não damos pela curva. Só quando as linhas se vão fechando e repetindo, percebemos que não se apagam. Unem-se!" 

O único que ouvia e parecia compreender tudo era Lourenço, o bisneto com quase dois meses. Este olhava como quem vê sabedoria nas palavras do bisavô, fixava-o com os seus rasgadinhos olhos claros e inocentes de quem ainda não viu todas as faces do destino. Apercebendo-se disso, José, o bisavô, dirigiu-se a ele: "Eu chego ao fim do círculo e tu começas agora. Se isto não é a perfeição, não a há no mundo!" E dos olhos velhos e cansados, enquadrados por farto sobrolho, escorria afeição, aceitação e contentamento em estado líquido. Lourenço expressava, tanto quanto é possível a um recém-nascido, sentimentos semelhantes. 

Eram os dois uma ilha naquele mar de ignorância. Partilhavam um conhecimento que, em breve, ao mais velho de pouco serviria e o mais novo depressa ia esquecer. Os outros pensavam em outras coisas: na ceia de Natal, presentes e sabe-se lá em que outras ninharias. "Não te peço que te lembres de mim. Acabaste de chegar e eu estou quase de abalada, mas pergunta por mim. Mantém o círculo fechado sempre. Sem memória, somos como os bichos, somos quebrados. O meu nome, no fim do teu, não basta. Tenta saber de onde vens. Tens de o fazer!"

E podia acabar aqui, mas não acaba. Na realidade, continua sempre. Com Lourenço, a abrir nova curva e a dizer ao seu bisneto: "A vida é circular".