Sunday, October 24, 2021

Labirintos

Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam

José Saramago

 

No tempo em que vivia ainda em sociedade, estava sempre a desfazer o mesmo equívoco, Teseu, T-E-S-E-U. Numa aldeia em que, por tradição, é o padre quem batiza os recém-nascidos, seria de esperar que houvesse gerações inteiras com nomes retirados dos Testamentos, mas não. O padre citava Homero com o mesmo fervor que colocava nas leituras dos evangelhos, de maneira que os nomes dos aldeões remetiam, irremediavelmente, para a civilização helénica. Os amigos de infância de Teseu partilhavam este infortúnio que os acompanhou pela vida fora. De Apolo a Zeus eram forçados a soletrar o nome nas repartições públicas, com grande inconveniente e desperdício de tempo.

Quem, por improvável acidente, se depara com Teseu, fica surpreendido. Tentar definir a sua idade é um exercício que nos confunde. A calma e resignação dos anciãos contrasta com uma face que não se mostra ainda marcada pela passagem dos anos. A sua vida, embora curta, tem sido rica em acontecimentos, ora milagrosos, ora trágicos. Recorda-os muitas vezes, perseguem-no durante as noites insones na sua cela. Nas ocasiões em que adormece, vencido pelo cansaço, revive esses momentos, incapaz de os alterar ou compreender. Acabou por aceitá-los, o que lhe trouxe algum conforto.

Órfão de mãe e com pai incógnito, viveu a sua infância, criado pela avó, perto de uma pequena aldeia chamada Monfurado. A única lembrança que alguma vez teve de quem o pôs no mundo foi o preto de que se cobria a avó e uma fotografia da mãe em cima de uma cómoda, ornamento único na sua humilde casa. A avó, Umbelina, já Teseu apenas conheceu como uma sombra da rapariga capaz de andar de sol a sol, dobrada, a mondar e ainda chegar a casa com vagar e disposição para resolver os trabalhos domésticos. Um ataque qualquer sofrido por altura do nascimento do neto, tinha-a deixado com uma perna “teimosa” e uma parte da cara paralisada. Umbelina era apenas capaz de meios sorrisos para o neto, numa expressão gasta e carregada pelo luto.

Em volta desta aldeia existe uma serra com o mesmo nome onde, séculos atrás, viveu uma comunidade de monges no Mosteiro de Nossa Senhora do Castelo das Covas de Monfurado.  Alguns anos depois de finalizada a construção, veio o grande terramoto, reduzindo-o a ruínas. Grande parte dos monges abandonou o local, mas outros dos religiosos, da ordem dos Monges Eremitas Descalços de São Paulo, ficaram a viver em lapas e grutas, abundantes na serra, para se penitenciarem. Mais do que estarem expostos aos elementos e à fome, o maior castigo era o silêncio do céu, a ignorância das ofensas que teriam causado esta punição divina. Ainda hoje, quase engolidos pela natureza, há vestígios destes monges: as ruínas e as covas. Este lugar tem exercido grande atração sobre os locais que, quando jovens, inspirados pela literatura de aventura e pelos heróis do cinema, sentem a tentação de os explorar.

Também Teseu ouvia este canto de sereia. Para o afastar, a avó bem inventava elaboradas fantasias sobre monges que ainda por lá se escondiam, alimentando-se da carne de meninos desobedientes ou ainda estórias sobre os fantasmas de religiosos que se finaram, soterrados pelas vigas e cujos lamentos se conseguiam ouvir em noites de temporal. Pretendia a senhora afastar o rapaz deste lugar perigoso, mas só lhe fazia crescer o desejo de o explorar. O convento tinha para Teseu, como para os outros habitantes da aldeia, tanto de assustador como de sedutor. Qualquer rapaz que se quisesse provar homem tinha que o visitar, sozinho, para mostrar a sua coragem.

Um dia, chegando tarde a casa, ocupado a apanhar cogumelos e cardos, a avó fez-lhe nova advertência sobre o mosteiro, imaginando que teria sido talvez esse o caminho que o rapaz tinha tomado. Sem saber bem porquê, Teseu adotou, nesse instante, a resolução de, no dia seguinte, se testar na serra. Umbelina não soube desta decisão do neto nem calculou que foi o seu aviso que o decidiu a alterar o percurso no dia seguinte. Mesmo que o viesse a saber, não se culparia pelo que aconteceu. Acreditava em algo que guiava os nossos passos, em lugares comuns como ser a vida um livro que contém todos os acontecimentos, do nascimento à morte, do qual vamos apenas conhecendo, vagarosamente, página a página. “Estava escrito” dizia às vezes, como se soubesse ler, ela que desconhecia todos os alfabetos. “Calha assim” era o ponto final das conversas sempre que tinha de justificar uma seca que arruinava as colheitas, ou a morte de um vizinho ainda novo de uma “doença manhosa”.

Muitas vezes, ao serão, sobretudo no inverno, quando as noites frias mais convidavam os corpos a juntarem-se junto à lareira, as chamas a lançarem sombra e fumo pelas suas caras, Umbelina evangelizava o neto nesta fé. Pouco sucesso obtinha, Teseu rebelava-se. Então não era ele um homem? Não estava nas suas mãos o que havia de vencer ou perder? Seria a vida apenas um lançamento de dados à nascença? Não aceitava, com os seus escassos anos e tanto por viver, não ser ele o senhor do seu destino.

Assim, quando tudo aconteceu, a avó entendeu que o sucedido foi congeminado por essa força secreta e Teseu percebeu uma mão invisível a guiá-lo.

No dia seguinte, lá marchou. Ao entrar, satisfeito por tornar-se, afinal, um homem, surpreendeu-se por não sentir medo. Percorreu a igreja despojada dos símbolos e imagens, descansou no claustro que a vegetação reclamava, aventurou-se na cripta decifrando as pedras tumulares e subiu os estreitos degraus que conduziam ao cimo do campanário. Comparava a paisagem que descobria com o que a sua imaginação lhe arquitetara. Percorria-o um sentimento de familiaridade, como se conhecesse já aquele lugar. Olhando o sol, deu pelo avançar das horas e decidiu voltar. Antes disso, atraído por uma pereira brava, decidiu apanhar alguma fruta. Não tinha a certeza de estar a roubar. Ainda que estivesse, a fruta roubada sempre lhe soubera melhor. Feita a colheita, apontou em direção à aldeia.

Era o final de um dia de calor e o céu do poente parecia explodir de cores atrás da serra, a infinidade de tons entre o laranja e púrpura lembrava outras tantas possibilidades em aberto. A luz dourada estava no próprio ar que Teseu respirava, confundia-se com o cheiro a silvados e montado. O rapaz sentia-se fora do tempo. Acomodava, cuidadosamente, os soromenhos nos bolsos, quando uma vertigem tomo conta dele. Todo o mundo se agitou e contorceu. O céu do fim da tarde aparecia e desaparecia de repente. Os pés, mesmo agitados de modo frenético, não alcançavam o chão. Apenas o choque do seu corpo contra alguma coisa lhe deu a noção concreta do que tinha acontecido. Abriu os olhos e deu por si dentro de uma cova, a saída a uma altura impossível. Debateu-se algum tempo com esta realidade, tentou negá-la. Talvez fosse um sonho e não tardasse muito que a avó o acordasse. As dores que sentia, bastante reais, apontavam noutro sentido. Sentindo-se de novo pequeno e tomando consciência das circunstâncias, foi procurando locais onde se agarrar e apoiar os pés até aceitar que esta escalada estava para além da sua força e perícia. A humidade tornava a escalada ainda mais difícil. As mãos, feridas e desesperadas, foram desistindo aos poucos.

Durante duas noites, Teseu esteve naquele buraco. Sozinho. Pela primeira vez, realmente sozinho. Exposto ao frio e apenas com um punhado de peras para se alimentar. Não em três frases como aqui. Longas foram as quarenta horas em que suportou o medo e a fome. Ouviu no vento que soprava os lamentos e as fúrias dos frades. A escuridão dava forma aos seus medos pueris, monstros com formas bestiais: touros, serpentes, javalis. Os primeiros raios da alvorada em vez de consolo, apenas ofereciam alguma luz à sua situação. As paredes que tateava de noite, tinham agora a forma concreta de uma prisão, eram reais. A garganta, cansada de tanto gritar, protestava a cada nova tentativa de encontrar quem lhe pudesse acudir. Consumidas as peras bravas, a fome instalava-se aos poucos. Sentindo-se enfraquecer e desmotivar, Teseu começava a resignar-se à inevitabilidade.

Quem, aos dez anos, poderá já conhecer as facetas todas do destino? A resposta parece óbvia. Se nem no leito da morte grande parte da raça humana a chega a encontrar, como poderia Teseu tê-las encarado? Contudo, a morte não lhe era estranha. O retrato da mãe que não chegara a conhecer lembrava-lhe, todos os dias, que a morte existe. Para combater o medo, a fome e o tédio, tentava lembrar-se de todas as pessoas que conhecera e tinham morrido. Procurava recordar o nome de todos os mortos que velara, arrastado pela avó. Teseu sabia que tinham sido muitos e seriam ainda mais depois dele.

Os pensamentos iam-se sucedendo, cada vez mais rebeldes, desobedecendo à sua vontade. Imaginava a avó preocupada por ele não chegar a casa, a procurá-lo cada vez mais desesperada. Depois a receber a notícia de que fora encontrado ali, sem vida. Angustiava-se por lhe infligir esta dor e imaginava-se noutro retrato na cómoda, ao lado da mãe.

O fim deste tormento veio por fim. Teseu esperava uma morte em figura de gente, como descrita nos contos da avó, uma morte com quem se podia conversar e mesmo negociar, mas acabou por ser a cara sardenta de uma colega da escola, Ariadne, que encontrou ao olhar para cima. Duvidou do que via, habituado a supor vultos e iludir-se com vozes na sua vigília. A cara desapareceu tão depressa como tinha aparecido, o que parecia confirmar a ideia de uma aparição, mas Ariadne tinha ido chamar ajuda. Passadas algumas horas, carregado ao colo, entrava triunfalmente na aldeia. A notícia do seu resgate correra depressa já que todas as almas do local o procuravam incessantemente desde que a avó dera o alerta. Todos queriam encontrar o garoto, alguns por genuína preocupação, muitos por vaidade, como se Teseu fosse um prémio. Por isso, quando se sabia que tinha sido encontrado, perguntavam quem tinha sido o autor dessa proeza. Todos acharam estranho que o padre se risse com a resposta.

Teseu nunca mais quis largar de vista a rapariga que o tinha salvo. Logo que se restabeleceu, procurava estar junto dela todos os dias. Na escola, encontrava-a ao intervalo, acompanhava-a a casa, em silêncio, quando saíam. Levava-lhe fruta da época, colhida no pomar que tinham perto monte. Às vezes, escrevia-lhe curtos bilhetes ou arriscava poemas que ela amarrotava e deitava fora. Vivia alheado do resto, apenas Ariadne o ligava a este mundo. Os instantes em que não estava próximo dela eram ocupados a recordar a sua figura e as constelações de sardas do seu rosto. A rapariga acabou por habituar-se a esta presença lacónica e àqueles olhos, sempre apontados aos seus. Durante anos, Teseu foi uma sombra, que Ariadne tolerava graciosamente porque parecia compreender que algo os unia.

Um dia, Ariadne surpreendeu o olhar de outro rapaz, Dionísio, e soube que este a amava. Corou e sorriu-lhe abertamente. Casaram depois de um curto noivado. Tudo tão rápido que Teseu nem sabia o que pensar, sentia tremer o chão que pisava. Quando viu os noivos sair da pequena igreja da aldeia, sentiu-se perdido. Pouco depois, Ariadne mudou-se para Vila Nova, para longe do rapaz que agora a enfastiava. Mesmo assim, tudo na aldeia lhe fazia lembrar a cara daquela que o obcecava desde o momento em que tinha renascido. Pensou em partir, buscar outra terra, outras gentes, mas sabia que isso lhe não traria alívio. Vagueava pelas ruas da aldeia. Quem o via passar, cabelo em desalinho e ar de quem tinha perdido o tino, metia-se em casa, corria o trinco e benzia-se. Passava à casa onde viveu Ariadne várias vezes durante o dia. Havia quem jurasse tê-lo visto, enroscado como um cão abandonado, a dormir à porta da igreja, onde a vira pela última vez.

Procurando um fim para o seu tormento, percorreu os quilómetros que o separavam da rapariga. Demorou alguns dias a encontrá-la, percorrendo as ruas de dia e dormindo onde calhava durante a noite. Encontrou-a à saída de uma mercearia, carregada de sacos e esperanças:

— Ariadne… — o tom entre o lamento e a súplica.

— Teseu, o que é que… — o olhar da rapariga não se erguia do chão desde que o vira. Não havia medo, apenas frio. 

— Não sei, precisava de te ver… Preciso de te ver — procurou ser determinado, mas a voz falhava.

— Mas porquê? Porque é que tens que estar sempre atrás de mim? — Ariadne arrastava a voz para que soasse calma. Respirou fundo, fechou os olhos e colocou as mãos sobre o ventre, acariciando-o.

Teseu deu por todos os gestos. Conhecia-a melhor que ninguém. Já a tinha observado a tentar disfarçar a irritação com esta falsa tranquilidade para, de seguida, explodir em fúria. Por isso, decidiu-se a dizer tudo de uma vez.

— A cova! Tu encontraste-me! Tu salvaste-me! Estás ligada a mim…

A fúria prevista impediu-o de dizer o resto:

— Estou ligada a ti? Porquê? Deixa-me! Salvei-te, é verdade, foi por minha causa que saíste daquele buraco, mas parece que... Às vezes desejo nunca te ter encontrado, que tivesses ficado lá e me...  respirou fundo, canalizando toda a calma que conseguia reunir  nos deixasses em paz!

A conversa terminou assim. Ariadne deixou-o com estas palavras definitivas. A Teseu nunca mais ninguém ouviu a voz. Decidiu guardar os seus poucos haveres numa saca e encaminhou-se para o mosteiro. Como os monges Eremitas Descalços de S. Paulo, também este jovem Teseu se adentrou no coração da serra. Aí, tomando uma vida de silêncio e contemplação, diz-se que conseguiu, numa cela do mosteiro, encontrar a paz que lhe faltava desde o dia em que Ariadne o retirou de onde o destino o esperava.

 

Thursday, October 07, 2021

Fragmento sobre Homeless Giant de Eric Drooker


Segura nas mãos esta frágil luz, é tua!

Tesouro desdenhado por tantos.

Na cidade que dorme, agigantas-te,

Até que a alvorada te diminua. 

Wednesday, October 06, 2021

Das maiores injustiças neste mundo, que parece ser capaz de gerá-las a todo o instante, nada me parece pior do que isto: apresentar-se uma opinião sobre quem não se conhece. Os jornais e outros meios de difamação, mais do que de informação, chamaram-lhe “monstro”. Monstruoso, verdadeiramente monstruoso, é o que lhe continuam a fazer.

Quem o conhece bem, entende o ser doce e sensível que o meu Apolo é. Guardo numa gaveta na minha mesa de cabeceira os poemas que me escreveu, um prodígio de sentimento em forma de sonetos. Gostava que os lessem. Não nego que, em certas ocasiões, deixa de ser ele. Não o faz por vontade própria. Tenho percebido que Apolo é muito nervoso. Lembra uma mola que vai sendo comprimida até ao limite e depois explode.

É hora de fazer um mea culpa. Sou eu a real culpada. Quantas vezes fui a causadora dessa perturbação? Coisas que poderia ter feito na perfeição caso não fosse tão negligente e desastrada, houve tantas! Dizem que me batia, não nego que seja verdade. Fazia-o por amor, para que eu fosse melhor. O monstro, o verdadeiro monstro, sou eu, Dafne Loureiro. Forcei-o a tudo que fez. Tivesse eu mais cuidado e as coisas não chegariam a este ponto.

Foi por minha causa que aquele homem morreu. Também o senhor teve culpa, afinal ignorou a sabedoria popular e isso nunca é boa ideia. Com toda a certeza que teria já ouvido: “entre marido e mulher não metas a colher”. O que Apolo estava a fazer, fui eu quem o forçou a isso. Por isso digo, é como se tivesse sido eu a puxar o gatilho.

É tão injusto que esteja agora o meu amor dentro de uma cela e se preparem para, a reboque do que se diz e escreve, o condenarem a uma vida na prisão. Não aceito este futuro sem ele. Deixo-vos esta carta de despedida. A ti Apolo, meu querido, prometo que serei melhor na eternidade.