Wednesday, November 27, 2019

Menina Anita


Quando os sinos começavam a tocar a anunciar a ida de algum habitante desta para melhor, era quando a menina Anita se sentia mais viva. Saía à rua a saber quem era o finado. Voltava para casa, aborrecida, se era alguém com quem tinha pouca lidação ou pessoa com que estava desavinda por razões próprias ou familiares. Quando era um moço ou moça da sua criação, parente próximo ou afastado, aí sim! Já tinha planos para o serão. Tinha como passatempo passar a noite a velar os falecidos e a confortar os seus familiares.

Solteira e com poucas distrações apropriadas ao estado civil, suportava melhor o frio ora da igreja ora da casa mortuária, conforme a notoriedade do morto. Diziam as más línguas, que as há em todo o lado, que era por ter a cama fria que não lhe faziam diferença essas noites insones e geladas sentada em frente aos caixões. Só que a menina Anita era bem-avisada, e apresentava-se sempre com um xaile bem grosso, um gibão quente, uma manta de lã para pôr aos joelhos e uma almofada para aquecer e proteger o avantajado traseiro da rijeza das cadeiras de pau. E enquanto os restantes amigos e parentes do finado, amadores nestas lides, batiam o queixo, estava ela bem aquecida e até com umas cores nas faces.

Os dias até podiam ser monótonos e tristes, com a papada encostada ao postigo da sua rua que, por infelicidade, não tinha muito movimento. Tristes era também os serões nos dias em que calhava a não morrer ninguém. O telejornal com notícias que sentia não lhe dizerem respeito, uma telenovela brasileira a que prestava pouca atenção, uma caneca de leite morno e cama. Mas se havia morto para velar, Anita era mais feliz. Havia conversas para escutar, viúvas e órfãos a quem confortar e podia olhar à sua volta, analisando todos os detalhes de cada um, da indumentária à profundidade da dor. Ocupados como estavam, ninguém daria pelo seu olhar inquisidor.

Entrava com um ar de compaixão e benzia-se cerimoniosamente em frente ao corpo. Olhava a cara do defunto antes de proclamar: "está tal e qual como ele era." Rezava um padre nosso de olhos fechados e, quando os abria, procurava a família para lhes oferecer os pêsames. Era uma profissional nesta área, dirigia-se aos cônjuges e aos filhos daquele ou daquela que ia arrefecendo e, numa voz que evocava lágrimas e lamentos, dizia solenemente: “os meus sentimentos!” Uma performance digna de nota que ensaiava muitas vezes no quarto, em frente ao espelho.

Não se pense que a menina Anita se acostumou rapidamente a este labor. Não! A quem é que não custa uma noite fora do camalho? Foi-se habituando, como um maratonista que começa a ignorar as dores nos músculos e a vontade de desistir. Fosse acompanhar os mortos um desporto olímpico e a menina Anita estaria coberta de ouro, apesar da sua compleição pouco atlética. Nunca fora magra, nem em moça. Os pais eram proprietários de uma venda, metade taberna e metade mercearia, pelo que tinha sempre maneira de remendar a fome com que via andar os outros colegas na escola. As irmãs foram casando e saindo de casa e ela ficou a ajudar os pais e para tia de muitos sobrinhos. Quando os pais se foram, vendeu tudo, os supermercados na vila grande tinham acabado com o negócio. Contudo, continuou a atividade da mãe, carpideira encartada, que chorava baba e ranho por todos, desde o mais próximo dos amigos àquele a quem, mesmo na véspera, tinha metido as orelhas a arder. Fora abraçando esse legado e transformara-se, aos poucos, no braço direito da mãe, que morreu orgulhosa de quem lhe seguisse o mister.

Agora, sozinha, encarregava-se de acompanhar os finados da vila, já sem os choros nem dramatismos fora de moda. Em vez disso, tornou-se especialista em tudo o que diz respeito a enterros. Colecionava, com o mesmo ardor que os garotos amealham cromos de futebol ou calendários de bolso, os folhetos com imagens dos falecidos. Inspecionava as coroas de flores e especulava sobre o preço de cada uma delas. Verificava a qualidade da madeira do caixão, área em que era especialista e discutia, entendida, com os proprietários da agência funerária. Analisava os rendilhados que amortalhavam os falecidos. Comparava tudo de enterro para enterro. Vira, a pouco e pouco, a casa mortuária alterar-se. As velas de cera a darem lugar a umas bizarras lâmpadas que imitavam as suas antecessoras. O aparelho de ar condicionado, que tantas discussões causava aos enlutados, fora instalado por cima da cruz, aquecendo ou arrefecendo as noites.

Às vezes, calhava a entrar, altas horas da noite, numa modorra provocada pela falta de sono e chegava a alucinar. O cérebro, cansado, pregava-lhe partidas. Via os fios das extensões elétricas que ligavam as lâmpadas, serpentear, ameaçadoramente. Outras vezes, o morto parecia acordar de um longo sono. Pareceu-lhe em certa ocasião que a cruz, de madeira, derretia. Sabia que nada disso era verdade, que era um truque da imaginação. Chegava a entretê-la naquelas longas horas.

Ocupava também estas noites a planear o seu próprio enterro. O caixão, tinha decidido, seria de mogno escuro. Mas não era só o caixão. Tinha decidido todos os detalhes como uma verdadeira especialista. Numa ocasião, chamou à parte o Sr. Arnaldo, agente funerário que mais trabalhava na vila e com quem tinha muita lidação, e entregou-lhe um envelope. Eram as instruções para quando ela própria morresse. O Sr. Arnaldo, ficou atrapalhado, não era costume ser o morto a decidir estas questões, e ficou também admirado com o conhecimento que esta senhora tinha sobre o seu próprio trabalho.

A menina Anita começou a notar que cada vez menos pessoas passavam a noite na casa mortuária. Ouvia-se falar que, noutros sítios, o morto já ficava sozinho de noite, atrás de uma porta trancada. Escândalo! Impensável! E, ainda assim, a menina Anita olhava à roda e via cada vez menos gente noite afora. As caras que a acompanhavam, uma a uma foram também sendo envoltas nas mortalhas, vestindo as suas melhores roupas e deitadas dentro de um caixão. Até que, certa ocasião, a menina Anita se viu a acompanhar um morto, a noite inteira, apenas com o filho do falecido.

O funeral seguinte foi o primeiro na vila em que a porta ficou fechada toda a noite. Não causou indignação à menina Anita, não terá tido já oportunidade de se melindrar. Lá dentro, sem estar acompanhada, sozinha, passou a sua última noite na casa mortuária.  


 



Wednesday, November 13, 2019

Sueca


Os serões de inverno no monte eram mais curtos. Tinha de ser assim. O sol que se punha cedo e o frio a isso obrigavam. No verão, o monte parecia muito diferente. Os homens e mulheres, sentados em cantos opostos, ao relento, conversavam e riam. Contavam anedotas e episódios que, com mais ou menos exagero, se tinham passado com eles que começavam sempre da mesma maneira: “Vou-vos contar uma parte que me aconteceu”. Os garotos corriam por todo o lado, mais ainda se calhava a lua cheia iluminar com o seu clarão o montado, tornando visível a silhueta de todas as coisas. Brincavam às escondidas, à apanhada e a tantas coisas inventadas que nem eles conseguiriam listar.

Quando o sol começava a ficar mais baixo, os dias mirravam e a noite caía ainda os habitantes do monte não tinham largado o trabalho, a rotina mudava. Dentro de cada casa, os chupões tinham sempre lenha a arder e à volta do fogo, as famílias resistiam pouco tempo a acamalharem-se nos colchões listados e recheados a palha. Ainda assim, para manter o hábito e porque de outra distração não dispunham, os quatro homens juntavam-se depois de comerem as sopas. Na maior parte dos dias, falavam pouco. Eram calados por natureza e também pouco havia para partilharem que os outros não soubessem já. O inverno tornava-os taciturnos, cinzentos como os dias frios e húmidos, que tinham que suportar. Trabalhavam juntos, lado a lado na propriedade do senhor coronel. Vidas quase iguais no pouco que conseguiam amealhar no final de uma jornada de trabalho.

Apanhavam agora a azeitona. Sabiam que, em havendo boa colheita e apanhada a azeitona rapidamente, poderiam vir a gozar da generosidade do senhor coronel. O Natal não vinha longe já e qualquer bónus era bem-vindo para ajudar a pôr qualquer coisa no sapatinho, mas mais importante, a pôr qualquer coisa na mesa. Mesmo com os braços doridos de varejar e com o corpo a pedir descanso, faziam a vontade à cabeça que pedia também uma ocupação. Assim, juntavam-se para jogar à sueca. As parcerias estavam já feitas, eram sempre as mesmas para que os perdedores de hoje pudessem ter a desforra no dia seguinte. Um dos mais velhos era parceiro de um dos mais novos para misturar experiência e cautela com atrevimento e arrojo na dose certa para ter sucesso. Como jogavam à sueca, todos esperariam que fossem quatro, afinal são essas as regras do jogo. Mas, já vamos ver que não.

O Olímpio, era o mais velho dos jogadores. Tinha passado já cinquenta invernos no monte, mas parecia mais. Tinha um olho baço que assim estava desde a infância quando uma brincadeira com um pau lhe deixou uma pua de madeira alojada na vista. O bigode também contribuía para um aspeto que metia respeito, para não dizer medo. Era um bigode quase aristocrático e talvez a única coisa de que Olímpio tivesse vaidade. Mas, Olímpio não era o que parecia. Metia, às vezes, medo aos ratinhos que vinham de longe para ajudar nas searas. Tremiam perante a sua presença quando se apresentava como o manageiro para mais tarde descobrirem que tinha um coração mole. Não fugia de discussões e uma vez mesmo houve uma briga que meteu navalhas. Assim que Olímpio viu o adversário estendido com o sangue a jorrar das tripas, pôs-se da cor da cal e teve que sair dali. Diziam depois que dera metade das suas jornas daquele mês à mulher do desgraçado, mesmo tendo sido o outro a puxar primeiro da navalha.

O segundo era o Joaquim Zé. Este não sabia dizer a idade e, sendo dos mais velhos, era dos mais recentes habitantes do monte. Dizia-se que era arraçado de maltês e o tom moreno da pele parecia confirmar essa ideia. De todos, era o que contava mais histórias. Algumas verdadeiras, outras mentiras, certamente, mas todas com o condão de deixar todos a rir e bem-dispostos. Dizia que tinha crescido junto ao mar, no Brejão. E maravilhava todos a falar do oceano, os seus olhos verdes iluminavam-se a descrever aquela vastidão de água que os habitantes do monte nunca tinham visto e nem conseguiam imaginar.  

Havia depois o Vicente, o parceiro do Olímpio. Acabado de regressar ao monte, vindo da tropa, parecia não ter mais nenhum assunto de conversa desde que fora às sortes. Fora um menino e viera um homem para gáudio do pai e desgosto da mãe. A desgraçada via agora o filho emborcar copos de vinho como se fossem água, a beber medronho como os homens e temia que desse em beberrolas. O pai ria-se desses temores maternais e dava palmadas valentes nas costas do moço que se ria também.

O quarto era o parceiro do Joaquim Zé, o Benício. Rapaz de poucas palavras. Parecia não dar conta das pessoas quando o chamavam e, se era obrigado a falar, fazia-o sempre tão baixinho que obrigava o interlocutor a aguçar os ouvidos e fazer força para o entender. Desde pequeno que gostava mais da companhia das bestas do que das pessoas e tinha mesmo mostrado dotes para os animais. De maneira que, ficara o arrieiro do senhor coronel. A mãe dele dizia que era um “paz de alma”, quase parvo, não tinha maldade. Mas o Joaquim Zé respondia logo “Então vá lá vê-lo a jogar à carta para ver o manhoso que ele é!”  

Havia ainda um quinto elemento que fazia parte destes serões. Não era um jogador, mas era presença sempre à mesa onde jogavam. O Ti Armando. O Ti Armando era sogro do Joaquim Zé e ia já perto dos oitenta anos. Sem poder já trabalhar, tentava não estorvar durante o dia ocupando-se de uma pequena horta que tinham junto à ribeira. À noite, para distrair e usufruir de companhia, juntava-se à mesa para ver o jogo e ouvir as conversas, se as havia. Por respeito aos seus cabelos brancos, perguntavam por rotina se o Ti Armando queria jogar mesmo sabendo que a resposta era invariavelmente negativa. Bem, então jogavam eles.

Mas se o Ti Armando se recusava a jogar, não se negava nunca a interromper as jogadas para perorar sobre um falhanço de um deles: ou porque não respeitara o sinal a pedir trunfo do colega, ou porque não contara as cartas e insistira numa jogada que deu em corte, ou porque devia ter destrunfado ou por qualquer outro motivo. E repetia sempre no fim: “Já não se joga à Sueca, como antigamente”. O Joaquim Zé, já com menos educação perguntava de novo se o Ti Armando queria jogar, ao que ele nem se incomodava a responder, rindo.

Os únicos momentos de descanso que tinham era quando o Ti Armando, por causa dos muitos anos e pelo adiantado da hora, adormecia com a manta aos joelhos embalado pelo jogo de cartas. Se acordava, voltava de imediato aos seus comentários quanto à falta de talento de Olímpio, Joaquim Zé, Vicente e Benício para a sueca.

Uma noite em que as críticas de Ti Armando estavam particularmente azedas e azedos estavam também os quatro jogadores, deu-se um acontecimento que havia de ser contado pelas tabernas do Alentejo, de Barrancos a Odemira e de Almodôvar a Portel. O Vicente enganou-se a dar as cartas, “passou-as” e, em vez de dar dez cartas a cada um, distribuiu-as mal e um ficou com nove e outro com onze. Aí o Ti Armando, entre cuspo e gargalhadas, disse tudo como os malucos. Chamou “burricalho” ao rapaz, disse que já tinha visto fazer todo o tipo de asneira àquela mesa e que, com tanto jogar, em vez de melhorar parecia que jogavam pior. Foi de tal maneira que ficaram todos com a cara muito encarnada e só não responderam porque não se responde a um ancião. Perguntou só o Joaquim Zé ao sogro, sem descerrar os dentes que a raiva fazia apertar: “Quer jogar?”. Mas o Ti Armando respondeu apenas: “Não jogo com burricalhos”, insultando agora todos.

Quando o Ti Armando adormeceu, como era seu hábito, os parceiros ficaram aliviados e puderam retomar a partida ainda com a humilhação a arder-lhes nas entranhas. Foi aí que o Benício, o “paz de alma” que “não tinha maldade” teve a ideia. Estranharam todos o Benício ter uma ideia e mais estranharam estar na disposição de falar com os três para contá-la. Mal a partilhou, os outros três abraçaram aquilo com os dois braços e puseram o plano em prática. Sem fazer barulho, o Vicente tapou muito bem o postigo com um rodilho para não entrar luz nenhuma, o Olímpio apagou o fogo com um pouco de água e o Joaquim Zé apagou o candeeiro a petróleo. Rapidamente tudo ficou na mais absoluta escuridão. Então, sentados nos seus lugares, começaram a bater com as cartas na mesa, simulando estarem a jogar. Guerreavam uns com os outros e tudo, levantando cada vez mais a voz a ver se conseguiam que o Ti Armando acordasse. Finalmente conseguiram. O Ti Armando acorda com o barulho, abre os olhos e nada vê. Passa a mão pela cara, estica os braços e grita de susto: “Mãezinha, estou ceguinho!”. Todos desataram a rir, fazendo tanto barulho que as mulheres vieram a ver o que se passava, trazendo os candeeiros. Só aí o Ti Armando percebeu o que tinha acontecido. Ficou envergonhado por não ter dado pela marosca que os moços tinham preparado, mas ao mesmo tempo aliviado. Foi remédio santo, a partir dessa noite a sueca, no monte, passou a ser um jogo de mudos.