Wednesday, August 28, 2019

Jadan

Um ano nestas terras parecia muito mais tempo. Aproveitando os raros momentos de solidão, Jadan aproximou-se da porta, descalço e em silêncio, para assistir à alvorada de mais um dia neste país. O nascer do sol deixava adivinhar o calor abrasador no Alentejo. 

Na sua terra, o distante Bangladesh, aproximava-se a época das monções. O Ganges iria transbordar do leito causando destruição e dando origem a nova vida, tornando as terras mais férteis. Jadan fora ensinado a respeitar e a sentir-se grato por este trabalho da natureza que os punha à prova para, mais tarde, poderem colher os frutos de tão dolorosa sementeira. 
Mas aqui não havia chuva, era outro mundo. As cores eram mais tristes, a água não corria livremente por todo o lado, era bem escassa. As cegonhas eram uma pálida sombra do calau bicórnio e os poderosos tigres não caçavam nestas terras.

Há precisamente um ano, Jadan despedia-se dos pais e dos irmãos. Também nessa ocasião acordou mais cedo que todos para ver uma derradeira vez as margens do Ganges e as ruas adormecidas de Sujanagar.
Numa família de tantas bocas era preciso que todos trabalhassem e, mesmo assim, quase não chegava para comprar arroz que sossegasse os estômagos. A solução era ir para uma terra distante. Portugal seria a sua nova casa por uns anos, se tudo corresse bem. 

Via agora, à medida que a luz do sol que se erguia à esquerda e tornava visíveis os contornos de todas as coisas, um imenso mar de plástico, as estufas onde labutava todo o dia. Em breve, estaria no seu interior. De dentro do contentor que partilhava com mais quatro companheiros, ouvia-se já o som familiar de pessoas a levantar-se. Acabava assim este momento só dele. Sem olhar para dentro da sua improvisada habitação, conseguia adivinhar o que se passava. Despertavam apressadamente para tomar um pequeno almoço de arroz cozido, iam à casa de banho apagar da cara os vestígios da noite. Sempre em silêncio, sem conversas entre eles. Os capatazes juntavam-nos ali, pensando que eram conterrâneos. A verdade é que nem falavam a mesma língua. Indianos, tailandeses, vietnamitas comunicavam precariamente.

No último ano, Jadan, só uma vez por semana, falava a sua língua materna. Ao domingo, só trabalhava de manhã, por isso caminhava cinco quilómetros até à praça da vila onde tinha Internet grátis. Na véspera, carregava o telemóvel para que a bateria lhe não falhasse e ia falar com os pais, ouvir os sons que lhe eram familiares. Tinha também um desejo enorme de falar, de se fazer compreender. Falava do trabalho, da dificuldade em respirar dentro do calor abrasador das estufas, dos pequenos arbustos carregados de azeitonas que cobriam o que restava da planície. De tudo quanto era estranho na terra, dos caracóis que via comerem e das saudades que tinha dos cozinhados da mãe e de brincar com os sobrinhos pequenos. Só não encontrava modo de descrever o que sentia na planície, tão só, num contentor tão cheio. Nada conseguia exprimir este sentimento. 

Houve um dia em que, como se reconhecesse o seu rosto num espelho, ouviu algo que traduzia o que lhe ia na alma. Cantavam, ele não conhecia uma palavra mas o sentimento era, não duvidava, o dele. Na praça da aldeia, homens idosos vestiam trajes iguais. Amparados uns nos outros, soltavam um lamento em forma de canto que o comoveu até às lágrimas. Ali, longe de casa e numa língua estrangeira, homens tão diferentes dele pareciam saber exprimir, com sons, o que Jadan sentia. E sentiu-se grato por isso.

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