Mexia-se como um animal selvagem.
Como um pequeno mamífero carnívoro de espécie indefinida. Furtivo, ágil e
encolhido, tudo vasculhava com os olhos, mesmo que a sua caça fosse tabaco ou
alguma carteira negligenciada. Os outros fugiam dele e, ao vê-lo, apalpavam os
bolsos e as malas para terem a certeza de que traziam tudo com eles. Os seus
bens terrenos emagreciam à mesma medida que ele. Os irmãos vieram buscar a mãe
a quem prestava atenção apenas no dia em que chegava a sua míngua pensão. Desde
esse momento, a casa foi-se esvaziando. Primeiro a televisão porque pouco
interesse tinham as notícias e a ficção não era, de longe o seu escape
preferido. Depois o fogão, sem uso num canto da cozinha. Quando cortaram a
eletricidade por falta de pagamento, arrancou os fios elétricos e vendeu o
cobre por uns tostões. O mesmo destino tiveram os caixilhos das janelas e as
portas. Colocou um lençol no lugar da porta para ocultar de olhares curiosos a
indigência em que morava.
Não ignorava os olhares feitos de
iguais doses de repulsa e compaixão. Abraçava a primeira e revoltava-se com a
segunda mesmo que fosse por pena que conseguia uma moeda ou um cigarro de algum
conhecido. Amigos, nenhum. Perdeu-os como aos dentes que foram caindo por falta
de utilidade. Pouco comia. Almoçava uns tempos num lar, irritava-se e era
expulso, depois passava para uma associação, armava fita e não voltava, comia
no refeitório do Centro de Formação, mas insultava as cozinheiras e deixava de
ter que comer. O jantar, dependia do que encontrava no lixo dos supermercados.
Até o cabelo se tornava escasso e os olhos iam-se enterrando cada vez mais nas
suas fundas covas. As suas feições eram ossos sobre ossos. A roupa tornou-se
larga. Lembrava um espantalho que ia perdendo o enchimento de palha. E
espantava todos. Alguma companhia era acidental. A pessoa olhava à volta quando
ele chegava e lembrava-se de alguma urgência repentina a que tinha de atender
para sair apressadamente da sua presença. Por vezes, era necessário pagar
“portagem”. Um cigarro ou uma moeda antes da fuga para o mais longe possível
dele. As conversas que mantinha comigo ou com qualquer outro, invariavelmente,
acabavam num pedido, numa súplica dita num tom, estudadamente ameaçador, no
limite mínimo do ultimato.
Via-o muitas vezes na estrada. Eu,
de casa para o trabalho ou do trabalho para casa. Ele, numa direção só
conhecida por ele próprio. A pé, junto à berma, mas não muito. Se um carro lhe
batesse era maior o azar do automobilista que o dele.
O seu temperamento era como o tempo
de abril. Ora chuvoso e escuro, ora brilhante e quente. Em dias de trovoada,
vinha pelo meio da rua aos gritos, com os dedos do meio de cada mão esticados
num cumprimento ao contrário. Em dias de sol, normalmente com dinheiro na
carteira e a cabeça onde ele gostava de a ter, fazia planos e promessas que
desapareciam com a primeira nuvem.
Ninguém sabia dele muitas vezes dias a fio.
Não dávamos por isso imediatamente. Íamo-nos dando conta aos poucos e também
não ficávamos muito tempo a pensar nisso. Quando voltava, às vezes
visivelmente maltratado, a cara arranhada ou a arrastar uma perna, recomeçava o
seu ofício de cravar o próximo onde o tinha deixado.
Nos dias de maior fúria, perorava
longamente sobre uma entidade abstrata que nunca, ao certo, concretizava: as
doutoras. As doutoras do lar, as doutoras da segurança social, as doutoras do
centro de formação e as doutoras da câmara. Eram como santos a quem se apela em momentos de aflição e a quem se castiga, como à imagem de Santo António
quando não nos vale. A doutora do lar que lhe tinha dito que lavava a roupa. A
da segurança social que lhe garantiu que lhe pagava o arranjo da casa. A
doutora do centro de formação que o autorizou a almoçar todos os dias e a tomar
banho. A doutora da câmara que dizia que havia um subsídio para pagar a água e
luz. A partir do momento em que enunciavam uma possibilidade, ele começava a
cobrá-la, como uma certeza, com juros elevados. Ele farejava-lhes o medo e
insistia sempre mais. Mas havia também aqueles que não o receavam. Os garotos
então, eram terríveis. Latagões na força da idade, com o sangue a pulsar,
frenético nas veias. Era para eles um ritual de passagem à idade adulta e
bruta, dar uma chapada viril no rosto cheio de arestas deste ser.
Tinha muitos nomes. Ao ponto de
poucos saberem, ao certo, o nome que a mãe lhe deu. Dirigiam-se-lhe no vocativo
“Oh Desgraça!”. Era dos nomes menos antipáticos que usavam. Dizia-se que estava
doente, uns falavam, em segredo, em SIDA, outros em tuberculose ou em anacrónica
lepra. Aumentou com isso o seu ressentimento em relação ao mundo.
Confidenciou-me, como acontecia, às vezes, antes ou depois de cravar um
cigarro, que as pessoas o diziam por maldade ou ignorância. De acordo com ele,
o hábito de revirar os caixotes do lixo à procura de uma refeição, era uma
roleta russa. Tanto podia apanhar alimentos em bom estado ou uma intoxicação
alimentar. Dependia da sorte. Outras vezes, a comida que lhe doavam, leite e
iogurtes sobretudo, azedava já que a sua casa, do frigorífico, só tinha o
espaço onde estava e este jazia, provavelmente, esventrado nalguma lixeira.
Um dia, abandonou em definitivo o
casebre na pequena aldeia onde morava e mudou-se de armas e bagagens para a
vila. “Armas e bagagens” é uma maneira de dizer. Não trazia nenhum tipo de
armamento e muito menos bagagens, apenas um saco de plástico. Sem pouso certo,
dormia onde calhava, umas vezes na rua, outras numa casa abandonada e devoluta.
Os da aldeia ficaram alegres. Os da vila, nem por isso. Deu-se então um
fenómeno curioso. Ele tornou-se omnipresente. Estava, constantemente, em todo o
lado. Alguém destruiu uma cabine telefónica em Valdoca. “Foi aquela Desgraça”,
proclamavam logo. Riscaram um carro nos Altos. “Quem terá sido?” perguntavam
ironicamente, sabedores da resposta. Viravam um contentor do lixo. “Quem é que
anda sempre aí rondando como uma ratazana?”. Roubaram a motosserra do
Tramalagana, “A esta hora já se está a drogar à conta do dinheiro da venda.”
Calhava, às vezes, ser culpado de
duas coisas que aconteciam ao mesmo tempo em sítios opostos da vila. Quando o
confrontavam, nada negava. Para quê dar-se a esse trabalho? Só enfurecia ainda
mais o acusador. Foi à conta disso que morreu. Digo, que o mataram. De golpe
anónimo nas tripas dado sem ninguém esperar, por uma minudência qualquer que,
na verdade, já ninguém lembra. Nem eu, que até tenho boa memória e, quando ela
me falta, invento.
Sem que pudesse ser culpado de fazer
isso a si próprio, a guarda foi obrigada a sair do posto para fazer uma
investigação. Uma chatice. Pouco habituados a que as diligências policiais na vila
fosse mais do que procurá-lo e dar-lhe uns calduços. Por falta de experiência nestas
lides, ou por outra razão qualquer, nunca chegaram a nenhuma conclusão. Podia
ter sido qualquer um, mas acabou por não pagar ninguém.
Desde esse dia, sobra sempre mais um
cigarro ao final do dia e voltamos a encontrar uma moeda no bolso quando nos
despimos para deitarmos a cabeça, sossegada, na almofada.
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