Surgia-lhe um calor nas tripas e uma força nos dentes, algum resquício de bestialidade quase desaparecida, que o retesava como à corda de um arco. De fora, raro era o que sentia a brasa da fornalha que lhe consumia o baixo ventre. Deitavam-lhe um olhar paternalista, sorriso de padre de barriga cheia, e viravam costas sem desconfiar da chama que deixavam para trás.
Já em moço, sofrera, pouco pacientemente, as zombarias dos colegas da escola quando, gaguejando, errava a tabuada. Sempre mais nervoso por o poderem tomar por parvo do que pelas repreensões e castigos do professor. Às gargalhadas forçadas respondia com um olhar fixo semicerrado, frio e seco, cara fechada, mas fantasiando torcer-lhes o pescoço. Edmundo Dantas conseguia há anos conter o bicho que dentro dele queria sair recorrendo ao mundo do sonho, no qual se afastava de tudo e todos e vivia como um ermitão depois de apertar o papo a todos quanto faziam pouco dele.
Agora, carteiro da vila, ocupava os dias inteiros na entrega da correspondência e a congeminar elaborados planos de vingança que nunca colocaria em prática contra aquele que não lhe falou quando se cruzaram no mercado ou contra aqueloutra que se furtou a dançar com ele no baile de S. João. Por vezes, semanas após alguma provocação que lhe tinham lançado, lembrava-se de uma resposta perfeita e a sua imaginação reconstituía a cena com um final alternativo. Amaldiçoava-se por não ser dotado para o repentismo. Mas passava o resto do dia a imaginar vividamente a cara do opositor ao ouvir a sua tirada.
O perdão era palavra vã para Edmundo Dantas. Quando lhe saía era involuntariamente se acaso pisava alguém ou quando não percebia o que se lhe dizia. A sua vida, desde a primeira infância e desde que tinha memória, era um catálogo de alvos a abater. Visto de fora, pequenas ofensas, mas para Edmundo ousadas afrontas à usa honra e dignidade. Guardava mesmo rancor à sua própria família. À tia que no Natal o presenteava sempre com um par de meias quando o que queria era um brinquedo. À mãe que uma vez lhe dera um par de nalgadas por causa de uma terrina que o seu irmão partiu. Ao pai que lhe levantou a voz e lhe falou grosso no meio do Largo da Fonte. Até contra Deus, de quem começava a descrer, Edmundo nutria um ódio surdo.
Adormecia bastantes vezes a desfazer este novelo de vinganças e retaliações. Embalava-se no sono com imagens de inimigos quebrados, despojados de bens e dignidade a pedirem aquilo que nunca poderiam esperar vir a obter, o seu perdão. De manhã acordava e tudo se mantinha igual à véspera. A raiva que sentia não se diluía com o tempo, antes se depurava, tornava-se mais intensa e concentrada.
Um dia, apareceu na vila para assumir o cargo de chefe dos correios um senhor Ferreira. Homem austero, de aspeto militar e barba republicana veio tomar posse dos seus novos domínios e apresentar-se aos seus subalternos, grupo em que se contava Edmundo Dantas. A impressão que causava nos demais, certamente estudada, era depois confirmada pela forma como se dirigia a todos os funcionários dos correios. De modos bruscos, voz como um trovão, fez saber de imediato o que exigia de todos e o que não admitia a nenhum. A papada do senhor Geraldo, empregado de balcão, tremia e suava perante aquele sermão. Edmundo ficou satisfeito, lembrava-se ainda do vexame que tinha passado certa vez quando, ao sair dos correios com a mala cheia de correspondência, tropeçou, caiu e espalhou as cartas em seu redor. Testemunhas, apenas ele e o senhor Geraldo. Mas, passadas horas, não se falava de outra coisa na vila que não fosse o tralho do carteiro. Fermentou então em Edmundo a certeza de que o colega teria sido o responsável por espalhar a notícia da sua queda e dava-lhe uma pequena satisfação assistir a qualquer revés que o senhor Geraldo sofresse.
Passados dias, viu chegar, no comboio, a família do senhor Ferreira. Instruído pelo chefe para ir ajudar a família a descarregar os pertences, Edmundo Dantas, tentando cair nas suas boas graças, esperava na estação fumando pacientemente um cigarro. Foi quando, pela primeira vez, os seus olhos avistaram Mercedes. Era a antítese do pai. Edmundo dir-se-ia hipnotizado pelo sorriso da rapariga. Os seus dentes, brancos como pérolas deixavam-no alheio a tudo o resto. A custo, abandonou este estado aparvalhado em que se encontrava e dirigiu-se, nervoso e sem jeito a Mercedes e à mãe, apresentando-se e oferecendo a sua ajuda para levar a bagagem de ambas da estação à nova residência da família. Temia causar má impressão, por isso sentia as mãos como algo estranho, não sabia o que lhes fazer. A sua voz soava-lhe estranha, parecia-lhe mais aguda do que o normal. Os sentidos emaranhavam-se, sinestesias alimentadas pelo perfume da rapariga. Colocou, sonâmbulo, as malas da família no carro dos correios, abriu a porta para que entrassem e acomodou-se ao volante. Respirou fundo enquanto rodava a chave na ignição. Sentiu um formigueiro estranho nos lábios. Sem saber o que era, olhou para o espelho retrovisor e viu nascer a curva de um sorriso.
Nessa noite já não adormeceu a ruminar os planos de vingança costumeiros. Foi com a presença, o perfume e o sorriso de Mercedes que deslizou para a terra dos sonhos. Deixou de ocupar os dias com os estéreis e rebuscados planos de retaliação e deslizou pelos dias na esperança de um vislumbre, ou mais, uma palavra de Mercedes. Principalmente a que mais desejava ouvir: "sim".
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