Sempre
um cigarro esquecido ao canto da boca, às vezes apagado há muito. A cinza vai
caindo por si própria. Ocupado com a colher e a talocha, constrói. Olha, olhos
franzidos por causa do fumo, óculos embaciados, e vê mais que todos os outros.
Todos veem o que está construído, ele, qual profeta, vê o futuro. Um artista,
ouvi chamar-lhe algumas vezes.
De
manhã, levanta-se sempre sem um queixume. O trabalho chama e manda mais que o resto. Rói um pedaço de
pão com queijo. Poucas palavras, observa e fuma. Mais raros os sorrisos, quase
sempre irónicos. Cético, por natureza. Desconfiado, por experiência, porque há
por aí muito “pantomineiro”.
Vejo-o,
chegado do trabalho. Na marquise ou no quintal, junto à coelheira, de camisa
interior de alças, remexe as mãos enquanto revê os pensamentos, insondável. Um
homem seco e de aparência enganadoramente frágil.
À
mesa, sempre frugal. A minha avó afadiga-se na cozinha, à roda do
fogão, a fazer os seus pratos favoritos. Mas, de um frango de fricassé, ele come apenas a
ponta de uma asa, de um carapau de escabeche, pouco mais que a cabeça. A seguir, com o prato
quase intocado, sempre pão com queijo, menos vezes fruta.
Dizem
muitas vezes que as pessoas não morrem, que continuam vivas em quem as lembra.
Treta, lugar comum, banalidade. Sempre pensei isso. Não deixo de o pensar. Por
muito que os lembremos, não lhes damos vida. E o ato de rememorar, acaba por se
erodir. Vamos perdendo a imagem geral e fica, aqui e ali, um pormenor. A
memória é lente que rapidamente se desfoca e perde a nitidez.
Mas,
no espelho, às vezes, no meu perfil, reconheço cada vez mais o dele. Acabo uma refeição, como
pão com queijo e sinto a sua presença, a sua aprovação. Raros disparos, acidentais. E penso que os lugares comuns, afinal, terão algum vestígio de verdade.
No comments:
Post a Comment