Como uma menina
de 50 anos. Era assim Ágata, na véspera da “excursão” como teimava chamar à
visita de estudo apesar das constantes correções, primeiros dos formadores e
depois dos colegas. Quase não dormiu. Andou às voltas na cama de ferro, a
sonhar mas acordada com as maravilhas que iria contemplar na excurs… visita de
estudo. Mas pensava também, com pesar, que este período estava a chegar ao fim.
A rotina da vida
no monte tinha sido interrompida havia poucos anos. Ágata pouco estudara na
infância e a adolescência já a encontrara adulta, casada e com filhos. Mesmo
assim, considerava, sabia muita coisa. Quando um dia chegou o carteiro com um
envelope que dizia “IEFP” no remetente, ela teve muita dificuldade em perceber
para que era aquela carta. Colocava a cabeça para trás para aumentar a
distância entre o pedaço de papel e os seus olhos ampliados pelos óculos, como
se isso o tornasse mais inteligível. Compreendeu três coisas e nada mais: era
necessária a sua presença em tal dia e em tal sítio. Por isso foi. Mas não em
três palavras.
Qualquer visita
à vila era precedida de uma longa e penosa rotina que começava ainda na
véspera. Ágata tinha que deixar o almoço para o marido, tinha que se lavar com
mais cuidado e tinha que vestir outra coisa que não a bata com que passava a
vida costumeira no monte. Depois ainda tinha que se levantar de noite, mesmo
quando os dias eram maiores, para dar de comer à criação ou regar a horta pela
fresca. Só depois, fazia mais de um quilómetro a pé até à paragem do autocarro que
a levaria até à vila.
Quando,
finalmente, o dia mencionado na carta chegou, foi com curiosidade e
desconfiança que saiu em direção à vila. Não conhecia ninguém no autocarro por
isso olhava à sua volta e escutava com interesse as conversas. Havia sobretudo
crianças e jovens a caminho da escola e alguns idosos que iam ao Centro de
Saúde ou à Segurança Social. Ouvia os garotos e percebia pouco do que diziam,
pareciam falar uma língua estrangeira: playstation,
facebook, minecraft, fortnite, instagram, lol. Escutava as palavras mas
não as percebia, não lhes espremia o sumo.
Apresentou-se na
morada indicada à hora certa com uma multidão de caras confusas e expectantes.
A Doutora chegou pouco depois num carro com motorista. Fumou, vagarosamente, um
cigarro, observada por dezenas de pares de olhos indecisos e avançou lentamente
para a sala com um sorriso ensaiado. Ágata olhou em volta e viu, nos seus
pares, o mesmo desconforto, homens de chapéu iam descobrindo a cabeça à medida
que entravam, mulheres com um luto carregado iam-se sentando nos lugares
disponíveis, rapazes mais jovens fixavam a Doutora com um ar de desafio e
revolta e outros ainda mais jovens pareciam estar ali deslocados. A Doutora
começou a falar. Disse que estavam ali para um curso. Que iam aprender a
cozinhar, a pintar ou a tratar de jardins enquanto ficavam com mais
escolaridade. Várias mãos se levantaram mas a Doutora cortou-lhes a palavra.
“No fim falaremos de questões particulares” e continuou a falar de como era uma
boa oportunidade para eles, de como lhes pagavam as deslocações, subsídio de
refeição, bolsa de formação e o infantário aos filhos. “E aos netos?”,
perguntou um dos anciãos mais irrequietos. “Sim”, respondeu a Doutora, “no caso
de os netos estarem a seu cargo”. Ágata via a Doutora a ficar cada vez mais enervada
com as interrupções, com os apartes a que era puxada, com os comentários
lançados para o ar e com os apelos a que não fossem chamados porque tinham os
pais ou sogros em casa doentes e não podiam vir. Reparou que a Doutora sofria
mais com os últimos. Ágata não falava, escutava, mas parecia que estava outra
vez no autocarro a ouvir os garotos. As palavras passavam-lhe por dentro mas
parecia não compreendê-las de novo: “EFA”, “B2”, “B3”, “NS”, “qualificação”,
“certificação”…. Por isso, foi perguntar, a medo, porque estava ali. “Vem para
um curso de cozinha, começa para a semana.”
Nessa noite não
dormiu. Não sabia sequer como contar ao marido que ia começar a ir para a vila
todos os dias. Era uma sensação estranha, receio pelo trabalho concentrado que
iria ter na lida do monte com a antecipação de sair de uma rotina de anos que
lhe parecia grilhetas. Ao almoço, no dia seguinte, Ágata contou-lhe. Foi um
contar a modos de pedir autorização. Foi tudo muito bem estudado. Fez o prato
preferido do marido, cozinho de chícharos com carne de porco. Comprou uma
garrafa de vinho tinto das mais caras da venda. E, ao contrário do que sempre
fazia, passou a manhã calada. Começou por perguntar:
– Lembras-te da
carta? Pois parecem que querem que eu cá vá para um curso.
– Curso? Que é
isso? – teria que explicar com outras palavras. O marido não sabia destas
coisas, só dos porcos, das ovelhas e da horta.
– Escola. Querem
que eu vá para a escola para estudar para cozinheira. – E atalhou antes que
houvesse objeções. – E se eu não for cortam o rendimento. Já viste a falta que
fica a fazer esse dinheiro?
A cara do marido
congestionou-se um pouco. O bigode oscilava enquanto mastigava, pensativamente.
Os olhos fixaram-se num ponto do teto. Parecia pesar a situação até que
perguntou:
– É coisa para
durar quanto?
– Eu sei cá. –
respondeu Ágata. – Ano e meio foi o que disse a doutora.
– Cá nos havemos
de desenrascar.
Ágata soube logo
que estava autorizada. Não era preciso um “sim” expresso. Mas também sabia que devia
evitar exteriorizar o seu regozijo. Pôs um ar contrafeito como se ir para a
vila fosse um infortúnio que não se consegue evitar.
Desde o primeiro
dia do curso até agora, Ágata tinha vivido os dias de maior felicidade.
Enquanto as colegas se queixavam de que o curso era uma prisão, para
ela era uma libertação. O cativeiro a que tinha estado votada no monte tinha
agora uma ansiada interrupção. Andava cansada, mas não deixava nada por fazer,
nem o marido lho permitiria. “Ele, em não bebendo, é bom para mim. Mas não
perdoa falhas. Ai, aquela vez que me esqueci de ligar a lâmpada aos pintos para
estarem quentes e morreram dois de frio…” Esse episódio, como outros, ficou bem
marcado na sua pele durante semanas.
Tinha aprendido
e esquecido os nomes das coisas que fazia na cozinha. Ouvira falar francês e
inglês e, inclusivamente sabia dizer je
m’appelle Ágata e my name is Ágata.
Até já percebia algumas das palavras que os garotos diziam no autocarro. Uma
colega mostrou-lhe o facebook. Não
ficou a perceber muito bem o que era mas já servia para não fazer papel de
parva. “Putas e Cabrões! É o que faz o facebook.”
Dizia sentenciosamente. Experimentou novas iguarias nas aulas práticas de
cozinha. Coisas com nomes finos que, invariavelmente, deixavam a sua língua
enrolada como: profitelores, tarte tatin,
bechamel. Conheceu as colegas e conversava muito com elas. Às vezes riam-se
muito.
A visita de
estudo era no último dia do curso. As colegas iam fazer um estágio em
restaurantes da zona, aplicar o que tinham aprendido. Ágata não ia. Os
formadores disseram que não podia ir porque não tinha aprendido tudo mas ela
convenceu-se a si própria que não queria ir. “Trabalhar de graça, sabe-se! De
graça nem os cães vão à caça!” Por isso a visita de estudo a Lisboa era, para
ela, como aquele prato chinês que o professor de cozinha tinha ensinado “Ai
como é que aquilo se chama? Frango agridoce.”
A Doutora também
foi na visita de estudo. No final de um dia de absoluto delírio e alegria infinita, Ágata chamou-a à parte e pediu-lhe o contrário do que
a Doutora estava habituada a ouvir:
– Sô doutora,
pela sua saúde, meta-me outra vez no próximo curso.
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