Tuesday, February 05, 2019

Ágata



Como uma menina de 50 anos. Era assim Ágata, na véspera da “excursão” como teimava chamar à visita de estudo apesar das constantes correções, primeiros dos formadores e depois dos colegas. Quase não dormiu. Andou às voltas na cama de ferro, a sonhar mas acordada com as maravilhas que iria contemplar na excurs… visita de estudo. Mas pensava também, com pesar, que este período estava a chegar ao fim.

A rotina da vida no monte tinha sido interrompida havia poucos anos. Ágata pouco estudara na infância e a adolescência já a encontrara adulta, casada e com filhos. Mesmo assim, considerava, sabia muita coisa. Quando um dia chegou o carteiro com um envelope que dizia “IEFP” no remetente, ela teve muita dificuldade em perceber para que era aquela carta. Colocava a cabeça para trás para aumentar a distância entre o pedaço de papel e os seus olhos ampliados pelos óculos, como se isso o tornasse mais inteligível. Compreendeu três coisas e nada mais: era necessária a sua presença em tal dia e em tal sítio. Por isso foi. Mas não em três palavras.

Qualquer visita à vila era precedida de uma longa e penosa rotina que começava ainda na véspera. Ágata tinha que deixar o almoço para o marido, tinha que se lavar com mais cuidado e tinha que vestir outra coisa que não a bata com que passava a vida costumeira no monte. Depois ainda tinha que se levantar de noite, mesmo quando os dias eram maiores, para dar de comer à criação ou regar a horta pela fresca. Só depois, fazia mais de um quilómetro a pé até à paragem do autocarro que a levaria até à vila.

Quando, finalmente, o dia mencionado na carta chegou, foi com curiosidade e desconfiança que saiu em direção à vila. Não conhecia ninguém no autocarro por isso olhava à sua volta e escutava com interesse as conversas. Havia sobretudo crianças e jovens a caminho da escola e alguns idosos que iam ao Centro de Saúde ou à Segurança Social. Ouvia os garotos e percebia pouco do que diziam, pareciam falar uma língua estrangeira: playstation, facebook, minecraft, fortnite, instagram, lol. Escutava as palavras mas não as percebia, não lhes espremia o sumo.

Apresentou-se na morada indicada à hora certa com uma multidão de caras confusas e expectantes. A Doutora chegou pouco depois num carro com motorista. Fumou, vagarosamente, um cigarro, observada por dezenas de pares de olhos indecisos e avançou lentamente para a sala com um sorriso ensaiado. Ágata olhou em volta e viu, nos seus pares, o mesmo desconforto, homens de chapéu iam descobrindo a cabeça à medida que entravam, mulheres com um luto carregado iam-se sentando nos lugares disponíveis, rapazes mais jovens fixavam a Doutora com um ar de desafio e revolta e outros ainda mais jovens pareciam estar ali deslocados. A Doutora começou a falar. Disse que estavam ali para um curso. Que iam aprender a cozinhar, a pintar ou a tratar de jardins enquanto ficavam com mais escolaridade. Várias mãos se levantaram mas a Doutora cortou-lhes a palavra. “No fim falaremos de questões particulares” e continuou a falar de como era uma boa oportunidade para eles, de como lhes pagavam as deslocações, subsídio de refeição, bolsa de formação e o infantário aos filhos. “E aos netos?”, perguntou um dos anciãos mais irrequietos. “Sim”, respondeu a Doutora, “no caso de os netos estarem a seu cargo”. Ágata via a Doutora a ficar cada vez mais enervada com as interrupções, com os apartes a que era puxada, com os comentários lançados para o ar e com os apelos a que não fossem chamados porque tinham os pais ou sogros em casa doentes e não podiam vir. Reparou que a Doutora sofria mais com os últimos. Ágata não falava, escutava, mas parecia que estava outra vez no autocarro a ouvir os garotos. As palavras passavam-lhe por dentro mas parecia não compreendê-las de novo: “EFA”, “B2”, “B3”, “NS”, “qualificação”, “certificação”…. Por isso, foi perguntar, a medo, porque estava ali. “Vem para um curso de cozinha, começa para a semana.”

Nessa noite não dormiu. Não sabia sequer como contar ao marido que ia começar a ir para a vila todos os dias. Era uma sensação estranha, receio pelo trabalho concentrado que iria ter na lida do monte com a antecipação de sair de uma rotina de anos que lhe parecia grilhetas. Ao almoço, no dia seguinte, Ágata contou-lhe. Foi um contar a modos de pedir autorização. Foi tudo muito bem estudado. Fez o prato preferido do marido, cozinho de chícharos com carne de porco. Comprou uma garrafa de vinho tinto das mais caras da venda. E, ao contrário do que sempre fazia, passou a manhã calada. Começou por perguntar:
– Lembras-te da carta? Pois parecem que querem que eu cá vá para um curso.
– Curso? Que é isso? – teria que explicar com outras palavras. O marido não sabia destas coisas, só dos porcos, das ovelhas e da horta.
– Escola. Querem que eu vá para a escola para estudar para cozinheira. – E atalhou antes que houvesse objeções. – E se eu não for cortam o rendimento. Já viste a falta que fica a fazer esse dinheiro?
A cara do marido congestionou-se um pouco. O bigode oscilava enquanto mastigava, pensativamente. Os olhos fixaram-se num ponto do teto. Parecia pesar a situação até que perguntou:
– É coisa para durar quanto?
– Eu sei cá. – respondeu Ágata. – Ano e meio foi o que disse a doutora.
– Cá nos havemos de desenrascar.
Ágata soube logo que estava autorizada. Não era preciso um “sim” expresso. Mas também sabia que devia evitar exteriorizar o seu regozijo. Pôs um ar contrafeito como se ir para a vila fosse um infortúnio que não se consegue evitar.

Desde o primeiro dia do curso até agora, Ágata tinha vivido os dias de maior felicidade. Enquanto as colegas se queixavam de que o curso era uma prisão, para ela era uma libertação. O cativeiro a que tinha estado votada no monte tinha agora uma ansiada interrupção. Andava cansada, mas não deixava nada por fazer, nem o marido lho permitiria. “Ele, em não bebendo, é bom para mim. Mas não perdoa falhas. Ai, aquela vez que me esqueci de ligar a lâmpada aos pintos para estarem quentes e morreram dois de frio…” Esse episódio, como outros, ficou bem marcado na sua pele durante semanas.

Tinha aprendido e esquecido os nomes das coisas que fazia na cozinha. Ouvira falar francês e inglês e, inclusivamente sabia dizer je m’appelle Ágata e my name is Ágata. Até já percebia algumas das palavras que os garotos diziam no autocarro. Uma colega mostrou-lhe o facebook. Não ficou a perceber muito bem o que era mas já servia para não fazer papel de parva. “Putas e Cabrões! É o que faz o facebook.” Dizia sentenciosamente. Experimentou novas iguarias nas aulas práticas de cozinha. Coisas com nomes finos que, invariavelmente, deixavam a sua língua enrolada como: profitelores, tarte tatin, bechamel. Conheceu as colegas e conversava muito com elas. Às vezes riam-se muito.
A visita de estudo era no último dia do curso. As colegas iam fazer um estágio em restaurantes da zona, aplicar o que tinham aprendido. Ágata não ia. Os formadores disseram que não podia ir porque não tinha aprendido tudo mas ela convenceu-se a si própria que não queria ir. “Trabalhar de graça, sabe-se! De graça nem os cães vão à caça!” Por isso a visita de estudo a Lisboa era, para ela, como aquele prato chinês que o professor de cozinha tinha ensinado “Ai como é que aquilo se chama? Frango agridoce.”

A Doutora também foi na visita de estudo. No final de um dia de absoluto delírio e alegria infinita, Ágata chamou-a à parte e pediu-lhe o contrário do que a Doutora estava habituada a ouvir:
– Sô doutora, pela sua saúde, meta-me outra vez no próximo curso.

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