Foto de Nuno Antunes |
Quando as carrinhas da junta
começavam a despejar as primeiras iluminações, sabíamos que as férias do verão
estavam a meio. A caminho do campo da bola para as últimas futeboladas antes
que o ringue de futebol de salão se convertesse por uns tempos em salão de
baile ou improvisado recinto de vacadas, víamos o erguer daquelas estruturas
que anunciavam o aproximar da “feira da aldeia”.
Já tínhamos todos,
independentemente das origens mais abastadas ou humildes, uma muda de roupa
para estrear na feira. Era um dos rituais que se cumpria anualmente há talvez
muitas gerações. Ir à feira sem estrear roupa era ir envergonhado. Ainda que
essa roupa ficasse cheia de pó, os sapatos novos a mudar de cor para um tom
mais esbatido sob uma pátina de pó e as costuras das calças de ganga a acumularem
a terra que o vento, que invariavelmente se levantava naquelas noites de final de Julho, empurrava.
Faziam-se mealheiros para gastar nos carrinhos de choque, em bifanas a meio da noite empurradas por garrafas de canada dry, joy de maçã ou laranja ou, mais tarde, quando o buço começava a dar lugar a algo mais definitivo, por imperiais. Os tios e avós eram também chamados a contribuir com uma “notinha” para esse fim. Tinha algo para todos, a feira. As luzes a todos fascinavam, novos e velhos. Quando a noite começava a anunciar-se, depois dos longos dias de verão, a iluminação apontava o caminho para o campo da bola. As famílias chegavam juntas mas depois dividiam-se entre o bar, os carrosséis, a quermesse, as barraca das farturas e do torrão doce, a tenda dos tiros com pressão de ar, o assador de polvo, as vendas de brinquedos, a vacada e o baile.
Faziam-se mealheiros para gastar nos carrinhos de choque, em bifanas a meio da noite empurradas por garrafas de canada dry, joy de maçã ou laranja ou, mais tarde, quando o buço começava a dar lugar a algo mais definitivo, por imperiais. Os tios e avós eram também chamados a contribuir com uma “notinha” para esse fim. Tinha algo para todos, a feira. As luzes a todos fascinavam, novos e velhos. Quando a noite começava a anunciar-se, depois dos longos dias de verão, a iluminação apontava o caminho para o campo da bola. As famílias chegavam juntas mas depois dividiam-se entre o bar, os carrosséis, a quermesse, as barraca das farturas e do torrão doce, a tenda dos tiros com pressão de ar, o assador de polvo, as vendas de brinquedos, a vacada e o baile.
O cheiro a frango assado
(verdadeiros frangos, não os pintos que nos vendem agora) aromatizava a
atmosfera debaixo da estufa que era o improvisado abrigo construído por rede e
pernadas de eucalipto. Grandes alguidares de plástico continham rodelas de
tomate pouco maduro, cebola e pepino à espera de serem pescadas para uma
travessa de inox onde eram temperadas para guarnecer a carne juntamente com
pacotes de batata frita. Voluntários agitavam-se de um lado para o outro, à
volta de descomunais grelhas de carne. Outros lavavam os legumes na torneira
instalada ao lado da baliza oeste do Campo de Jogos 25 de Abril. Atrás do
balcão vendiam-se senhas que eram depois trocadas por comida e bebida. Em mesas
e bancos corridos, que obrigavam a prodígios de contorcionismo e ocupavam todo
o espaço, conversava-se, ria-se a bom rir e reencontravam-se as caras ausentes
durante o resto do ano. De toda a margem sul, do Pinhal Novo à Baixa da Banheira,
chegavam nesta altura os parentes que a vida levou para longe e muitos vinham
também da Suíça, França ou Alemanha para rever os seus familiares e a feira da
aldeia. Abraços, comoção e até choro, que isto de voltar à terra é uma coisa
muito emotiva. Compreendo-o agora.
Os moços corriam o recinto da
feira em bandos. Gastos num instante os mealheiros nos carrinhos de choque,
vagueavam à procura de pais, avós ou tios que lhes pudessem providenciar mais
uma nota de cem escudos. As noites eram mais longas durante a feira, o sono
tardava a vir. As birras eram frequentes durante a feira, só não eram
provocadas pelo sono mas pelo desejo de uma volta num carrossel, de uma pistola
de fulminantes, um saco de soldadinhos verdes de plástico com uma redondela por
baixo que os mantinha em pé ou ainda uma rede cheia de berlindes. Um par de
palmadas ou, como se diz por lá, “nalgadas” bem assentes costumava ter um de
dois efeitos: ou agudizar o tom da birra ou dá-la por terminada.
Era a feira também fértil na
existência de outro tipo de fenómenos: as bebedeiras. Havia de todo o género e
investi algum tempo na sua tipificação. Havia as habituais, os ébrios que não
precisam de nenhum pretexto para beberem demais e para quem a feira era, nesse
aspeto, igual a todos os outros fins de semana. Havia ainda as inesperadas.
Aquelas pessoas que passavam um ano inteiro sem tocar no álcool ou, quando
bebiam, era um copo solitário às refeições ou um digestivo após um almoço
particularmente faustoso. As bebedeiras inesperadas eram as mais surpreendentes
e nos dias seguintes eram motivo de conversa entre o povo. Havia as choronas,
aquelas que terminavam num pranto. Nunca cheguei a saber exatamente por que
choravam, se por desgosto se por comoção por se verem rodeados por tão bons
amigos. Muito apreciado pelo povo era também a bebedeira bailarina pelo
grandioso espetáculo que proporcionava durante o baile com uma dança solitária
que terminava numa queda em câmara lenta. A todos os que se viam nestas circunstâncias era lançada a provocação que
se dirigia, na aldeia, a quem dava mostras de ter bebido mais que a conta:
“Aiê! Vai deitá-la!”.
Quase sempre ficava triste quando
acabava a feira. Afinal, só voltaria a assistir a tudo isto daí a mais doze
meses. Passava algumas tardes nas semanas seguintes a assistir aos trabalhos de
desmontagem da feira deitado por cima do balneário. Os vendedores, no dia seguinte, faziam-se à estrada e
partiam para outro lado. A quermesse e a venda de comes e bebes permaneciam
mais algum tempo, o suficiente para que a explorássemos e chegássemos a
encontrar alguma moeda esquecida. A vida continuava e as férias de verão
também continuavam mas sabíamos que já não faltava muito e, acabado o mês de
Agosto, estávamos de regresso à escola e à normalidade.
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