Tinha um aspeto estranho à
primeira vista. Considero-o agora concedendo que, na altura, pela inocência
infantil e pela frequência com que o avistava, não tenha achado fora do normal.
O lábio inferior estava em falta dando a sensação de que se recolhia por alguma
razão. Vestia quase sempre uma pelica de pele de ovelha preta a que, na aldeia,
chamávamos samarra e uma boina. Parecia omnipresente. Era uma figura familiar
mas não tinha sítio certo para o encontrarmos. Calhou muitas vezes saltar-nos
ao caminho na rua do cemitério quando acompanhávamos o meu avô até à Masmorra
para regar a horta mas também junto ao cruzamento da Santa. Outras vezes, estava sentado num dos bancos vermelhos
do Largo da Fonte, ao sol.
Recebia-nos sempre com uma festa. Eu e o meu
irmão andávamos sempre munidos de um pequeno cantil de plástico a imitar uma
cabaça, uma recordação que alguém trouxe de Fátima, um vermelho e outro azul
para não nos enganarmos, e era por aí que se metia connosco. Pedia uma gotinha
de água do nosso cantil e ria-se muito quando lhe respondíamos que havia muita
na fonte.
Não me lembro do nome dele nem de
alguma alcunha. Não me lembro se tinha família ou descendência. Lembro-me de
poucas coisas dessa altura e, desconfio, muitas são memórias artificiais transplantadas
para o meu subconsciente pelas histórias que os meus pais e avós me foram
contando quando era mais velho. Muitas vezes, até misturo memórias reais com
essas sem me aperceber e até memórias de coisas que aconteceram, não comigo,
mas com o meu irmão. Porque a memória é um mecanismo estranho. É máquina que
não conhece o dono. Caprichosa, pode, em determinado dia, ser capaz de nos
levar aos primórdios da nossa existência para, logo de seguida, nos desiludir e
não nos trazer a combinação do cartão de débito. Embaraça-nos quando o
professor nos chama ao quadro para ditar a tabuada e depois consegue o milagre
estúpido de preservar o número de telefone desusado há décadas da casa dos
nossos pais. Escreve na pedra a matrícula de um carro que os nossos pais tinham
quando mal sabíamos ler e escrever e falha na simples missão de armazenar o
nome de um conhecido.
Reflito sobre isso agora porque,
fora o que contei, pouco mais posso lembrar deste homem. Oculta-se-me o local da
aldeia onde morava, a sua ocupação, o nome dos filhos e se os tinha, de que conversava
com o meu avô. Tudo isso é poeira para mim. Mas lembro algo que fazia sempre
parte destes encontros. Uma cantiguinha obscena que, na altura, nos divertia a
todos, aos velhos, sabedores e velhacos, pela letra, e aos gaiatos, inocentes, pela
melodia alegre. E ia assim a cantiga: “As mulheres têm dois buracos, pum! Os
homens só têm um, pum! Eu tapo um, eu tapo um, eu tapo um…”
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