Maria Teresa, a Vida Triste, tia da
minha mãe, irmã da minha avó Henriqueta. Conheci esta tia-avó já ia a infância
a meio caminho. Tanto o meu pai como minha mãe são filhos únicos, por isso
sofri de uma espécie de orfandade de tios. Os meus colegas tinham muitos
primos, os meus eram em segundo grau, mais próximos da idade dos meus pais que
da minha.
Um dia, apareceu a Maria Teresa.
Vinha de uma vida “a servir” em casa de uma “senhora” em Évora num tempo em que
ainda havia criadas domésticas. Hoje ponho-me a imaginá-la ainda criança a
despedir-se da casa humilde dos pais e irmãos para ir trabalhar em Évora. Com
certeza que não para uma mansão como a que vejo nos filmes e séries passados na
época vitoriana, mas penso que, para ela, habituada à pobreza em que viviam os
meus bisavós, lhe tenha parecido algo ainda mais luxuoso. Dessa vida, só me
resta imaginar, nunca me falou de tal coisa.
A imagem que mantenho dela, como de
muitas coisas da minha infância, começa a tornar-se difusa como se o tempo
fosse um filtro opaco que não deixa focar pormenores. Era uma senhora dos seus
cinquenta e alguns anos. Referiam-se a ela como “menina Teresa” porque nunca
casou embora mesmo no Outono da vida não lhe faltassem pretendentes: o Cadicha
que, nós miúdos, conhecíamos por Nesga e a quem faltavam dois dedos na mão
direita e Isidro Parreira que tinha os dedos cobertos de
anéis de ouro. De um e de outro conseguiu rebater as investidas mantendo o
celibato até à morte.
A Vida Triste, assim a batizou o
cunhado, o meu avô Miguel, era baixa, usava o cabelo curto mas sempre bem
arranjado pelas mãos da Bia Bicadas, raramente usava calças. A sua toilette era
sempre completada por uma carteira minúscula que levava para todo o lado mesmo
que, descobrimos muitas vezes, estivesse completamente vazia.
Era a pessoa mais supersticiosa que
já conheci. As forças do oculto eram, para ela, evidentes e via assombrações e
bruxas em cada esquina. Acreditava firmemente que havia neste mundo muito mais
do que os nossos olhos podem ver. Conta-me a minha mãe que algumas vezes foram
de camioneta da carreira a visitar “virtuosas”, bruxas ou charlatãs que a
advertiam contra maus-olhados, maldições e olho gordo.
Era sozinha, a Maria Teresa. Não me
refiro ao facto, objetivo, de que morava só. Mesmo para uma criança, como eu
era, isso parecia óbvio. Duas a três vezes por dia, no mínimo, vinha
visitar-nos a casa. Abria a porta e chamava: “Maria, estás cá?” Sem esperar resposta,
ia entrando e falando. Muitas vezes, não estava a minha mãe, apenas eu e o meu
irmão. Egoístas como as crianças aprendem depressa a ser, calávamo-nos para que
ela fosse embora em vez de vir ter connosco e nos desconcentrasse dos desenhos
animados ou dos jogos de computador. Por vezes, funcionava, andava pelo
rés-do-chão algum tempo, falando sozinha, avaliando o conteúdo da fruteira ou
abrindo o frigorífico. Se a minha mãe tivesse o almoço ao lume, provava e
retificava os temperos ou queixava-se do excesso de sal. Refilava da abundância
se a minha mãe tinha bacalhau de molho a dessalar ou da míngua se houvesse
apenas uma banana onde tinha estado um cacho repleto. Sempre a conversar
consigo própria e reforçando essa ideia que eu tinha de que era só.
Um dia, numa dessas visitas, ao
ouvi-la falar, rimo-nos. Indecisa entre subir as escadas ou ficar, ficou a
olhar para cima no patamar, à escuta. Ao senti-la aproximar, ficámos em
silêncio como se estivéssemos a brincar às escondidas. Então, olhámos em volta
e vimos no chão umas calças que estavam num monte de roupa suja.
Irrefletidamente, pegamos nelas e atiramo-las escada abaixo atingindo a Maria
Teresa na cabeça. Assustada, sem discernir o que a estaria a atacar, saltou em altos
brados para a rua, ainda com as calças na cabeça gaguejando: “É bruxedo! É
bruxedo!”. Nós rimo-nos a espreitar à janela do primeiro andar. A Maria Teresa
não achou piada nenhuma.
A minha mãe recorda ainda, muitas
vezes, a ocasião em que ouvia vozes vindas da televisão mesmo que o aparelho
estivesse já desligado da tomada. Chamou a minha mãe que ficou igualmente
perplexa e, mesmo antes de chamar um padre exorcista, chamou o Chibanga,
entendido em eletricidade que descobriu um pequeno rádio transístor ligado na
gaveta por baixo da televisão. As vozes do outro mundo eram apenas os locutores
da rádio.
Noutra ocasião num estrondo,
caiu-lhe um homem na cozinha, quebrando o telhado. Imagino que dessa vez ela
tivesse crido que era o próprio Belzebu que a atormentava, foi um susto tal que
nessa noite não quis dormir em sua casa e veio dormir com a minha mãe.
Quando estas coisas se explicavam e
a Maria Teresa entendia enfim que nada de sobrenatural lhe tinha acontecido e
que eram apenas coisas que aconteciam a mentes excessivamente ociosas, punha um
ar desconsolado e soltava um lamento que introduzia com um “ai” prolongado e
profundo: “Vida Triste!”. Era esta a bengala que a amparava, repetidamente,
como um mantra. Repenso agora nos motivos que a levariam a adjetivar daquela
forma a vida. Seria a solidão, o medo do sobrenatural? E concluo que a obsessão
com o sobrenatural nascia da solidão. Talvez tivesse
começado como um escape para o tédio, um rabisco que ela desenhava numa folha
de papel que não suportava continuar a ver em branco ou uma conversa que tem
consigo própria para rasgar o silêncio. Com a rotina, com o tempo, talvez o que
imaginava se tenha tornado tão real como uma Vida Triste.
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