Francisco
acorda com o nascer do sol. A mãe já acordou há muito e movimenta-se com
cuidado pela casa, em silêncio. Há pão, feito no forno de lenha no início da
semana para matar a fome com um pouco de linguiça e um copo de vinho. Única
companhia um do outro mas quase sem trocar palavra, comem em silêncio sem se
olharem. Francisco levanta-se, encosta a cadeira e pontua o final da refeição
com um arroto. Deixa a mesa desarrumada para que a mãe trate de tudo.
Encaminha-se
para o quintal fazendo um cigarro e chupando das ausências dos dentes os restos
de comida. Instintivamente, avalia a onça de tabaco a fim de averiguar a
quantidade disponível e calcula o momento em que terá que ir à vila comprar uma
nova. Fuma o cigarro no telheiro que construiu com restos de materiais que foi
trazendo dos trabalhos de onde tem sido despedido. Senta-se junto à coelheira,
cofiando o bigode grisalho, já à espera de ouvir o rumor dos coelhos a
agitarem-se de um lado para o outro quando sentem a sua presença. Nessa altura
pensa.
Levanta
os olhos para os montes de onde se anuncia chuva. Por um lado, pensa, é bom
para as ervilhas e para as favas. Vai ser um ano bom para a horta. Por outro
lado é mais aborrecido ir à vila comprar tabaco e o vinho também se está a
acabar. É que Francisco vai à vila de bicicleta a pedal. Tem alternativa, ir a
pé. Nunca tirou a carta de condução. Teve oportunidade para isso quando, ainda
novo, foi trabalhar para o Algarve na construção. Mas aí descobriu a paixão
pelo vinho e pela cerveja e pelo medronho; e todo o tempo e dinheiro foi
desviado para manter esta caprichosa amante. Motorizadas também não é com ele.
Ainda tem marcas no corpo que lhe lembram todos os dias a razão por que não
anda de motorizada.
Tinha
havido baile na Aldeia dos Fernandes e Francisco, depois de vestir roupa lavada
e fazer a barba, encaminhou-se para a sua Casal Boss para poder distrair um
pouco no baile. A noite foi divertida. Ainda esteve um pouco a dançar com uma
rapariga mas, num intervalo, foi beber uma cerveja para refrescar e não mais
voltou. Encostado ao balcão ficou. Bebeu e ouviu anedotas, bebeu e riu-se,
bebeu e trocou histórias, bebeu e jogou à moeda, bebeu e ganhou, bebeu e
perdeu, bebeu e insultou um e outro, bebeu e levou uns apertos. E, quando às
seis da manhã saiu para o ar fresco da alvorada de Domingo, estava totalmente
embriagado. As duas rodas da mota não conseguiam dar a Francisco a estabilidade
necessária e, ao fim de dez incríveis quilómetros, mais ou menos a meio
caminho, não desfez uma curva e encarou a barreira. Só duas ou três horas
depois foram dar com Francisco. Numa pose contranatura, lembrava uma mosca
presa numa teia de aranha, só que emaranhado numas silvas.
Desde
essa altura, se alguém chegasse à vila e perguntasse pelo Francisco Nascimento,
o certo seria não obter resposta. Mas se perguntassem pelo Mosca, a resposta
seria uma imediata interjeição de reconhecimento: “Ah! Porque é que não disse
logo?” Não que alguém perguntasse por ele. Os amigos de juventude quase que lhe
fugiam. Habituados a ter que rejeitar os seus pedidos de empréstimos de
dinheiro ou a aceitar com um mau grado crescente pagar-lhe um copo ou dar-lhe
um cigarro. Não é que não gostassem dele. “O Mosca não tem mau fundo”
reconhecem todos “mas é um chato de primeira e desde o acidente que amalucou de
todo.”
Francisco
não ignora o que dele se diz na vila. Em alguns momentos até sente o ímpeto de
concordar com eles. Quando, como agora enquanto fuma o cigarro, pensa na sua
vida vê que as escolhas que fez não foram as melhores mas sente que talvez não
seja o único culpado. Percebe a razão pela qual as tabernas e o café se começam
a esvaziar com a sua chegada até ficar apenas ele e o taberneiro, com um ar
conformado atrás do balcão.
“Ela
também teve culpa.” É esta a conclusão a que normalmente chega a sua reflexão.
Francisco não gosta de repisar esta história mas é como uma ferida a que não
resiste arrancar a crosta. Amélia era a sua paixão de juventude. Filha do dono
da mercearia. Francisco espantava-se por uma rapariga tão bonita e delicada corresponder
aos seus olhares e aos seus sorrisos. Esperava-a à saída da missa, observava-a
em silêncio enquanto os amigos conversavam nos bailes e ela olhava-o e sorria
com pudor. Um dia, no Entrudo, ganhou coragem e convidou-a para dançar.
Surpreendeu-se com a sua leveza. Amélia parecia não ter peso, flutuava pela
sala guiada pelos seus braços. Quando a dança acabou, Francisco estava
irremediavelmente esmagado pela paixão. Sob o feitiço desta criatura com quem
nunca falara à excepção de uma troca de bons dias, boas tardes e pouco mais.
Nas
semanas seguintes não viu Amélia. Não deixou que se passassem meses sem
perguntar tão discretamente como podia o que se teria passado. A Francisco, não
chegavam notícias. Até que um dia ouviu a Ti Claudina, pessoa que tudo sabia na
vila, a contar à vizinhança que Amélia tinha ido estudar para o Liceu em Beja.
Vivia com uma tia-avó viúva e cuidavam uma da outra.
Nessa
noite não dormiu e, quando a alvorada chegou inundando de luz os seus olhos
insones, tinha já tomado a decisão de ser alguém. A pobreza dos seus pais e os
muitos irmãos eram a principal mas não a única razão de Francisco não
poder também ir estudar no Liceu em Beja. Foi com muita paciência que o
Professor Antunes conseguiu que Francisco aprendesse a ler e a escrever, já nos
números era um pouco mais esclarecido.
Se não
podia ser pelos estudos, pois seria pelo trabalho! Iria trabalhar honradamente,
juntar dinheiro e ser digno de Amélia. Ainda que ela continuasse os estudos e
viesse a ser professora ou enfermeira, teria Francisco à espera, talvez dono de
uma empresa de construção ou comerciante.
Foi esta
ilusão que lhe deu ânimo, que fazia com que Francisco fosse o primeiro a chegar
ao trabalho e continuasse a trabalhar muito depois de os outros partirem. Foi
esse sonho que o levou para a grande cidade, onde os ordenados eram maiores e
depois para o Algarve onde a construção em massa garantia grandes
oportunidades. Mesmo que os anos fossem passando, e já lá iam oito, desde a
noite em que dançara com Amélia, Francisco continuava com a mesma determinação.
Calhava, às vezes, reviver esse momento nos sonhos e Francisco acordava feliz e
com o alento intacto.
Um
dia, essa quimera caiu ao chão e desfez-se em mil cacos. Vinha Francisco de
Olhão para Faro, com um dia de trabalho nas obras a sujar-lhe a roupa e o
corpo. Moído e satisfeito, ia para casa enquanto os camaradas corriam já para
o café para se refrescarem com umas cervejas.
Nesse
instante vê sair da escola primária uma figura familiar. O cabelo e a leveza
que só via nos sonhos. Mas estava acordado! E em Faro! Francisco fica um pouco
apreensivo ao pensar que Amélia o vai ver vestido como está. Analisa as botas
de cor irreconhecível, cobertas de cimento e gastas pelo uso, as calças de
ganga e a camisola imundas de suor. Pensa bem e decide que não se deve
envergonhar com as marcas do seu trabalho, mesmo que não fosse assim que queria
reencontrar Amélia. Fantasiou vários cenários, nunca este. Mas avança
sorridente e confiante.
Amélia parece vê-lo agora. Sorri e acena. Francisco sente o coração bater mais
depressa, as entranhas revolvem-se. Comove-se e avança decidido. Um carro
estacionado atrás de Francisco chama a atenção de Amélia. Segue-o com o olhar
desde que arranca, se desloca alguns metros até ela e se imobiliza. A Francisco
é óbvio agora o que se passa. Amélia abre a porta do carro, senta-se no lugar
do passageiro e debruça-se no condutor beijando-o nos lábios.
O carro
arranca e o olhar de Francisco cai no chão. O seu sorriso murcha. Vira costas e
vai ter com os amigos ao café.
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