Tuesday, September 20, 2016

A Aldeia do Colete


Bem cedo, antes do sol se levantar atrás do monte e começar a derreter o gelo que se forma no telhado nas horas em que repousa, Joaquim levanta-se. Dorme quase vestido. Aproveita-se melhor o calor. Trocar de roupa é tarefa aborrecida por mor do frio que um homem apanha. O sol demora tanto a aparecer e depois desaparece num instante neste vale. Já clareia quando abre a porta, com o bacio cheio de dejectos que acumula durante a noite mas, pelos seus cálculos, só daí a uma hora, hora e meia, o seu lugar estará preparado para o receber. É quando o sol tem altura suficiente para começar a derreter a geada deste lado do monte que para lá se dirige. Antes disso, vai até ao talego onde guarda o pão e mata a fome com um pouco de queijo de cabra com cardos. Tem poucos dentes para tão rijo quebra jejum mas Joaquim descobriu truques à medida que o seu raro sorriso foi ficando menos preenchido. Usando a boca como tigela, vai molhando o pão em saliva e faz uma espécie de açorda condimentada com o queijo.

Nos instantes em que come quase mecanicamente, mais por obrigação e rotina do que para fruir dos sabores, Joaquim sente-se sempre mais triste e mais sozinho do que nunca. A hora das refeições, frugais e repetitivas são as suas horas de introspecção. Passa então os olhos pela cozinha, onde também dorme em desarranjo. Prende os olhos uns instantes no retrato da sua mulher, única recordação que lhe resta de quem o acompanhou neste mundo tanto tempo, lhe deu quatro moços fortes e trabalhadores (tão trabalhadores, trabalham tanto que nunca têm tempo para vir ver o pai, e também têm os moços deles para tomar conta…) e tornava aquela casa um lar. Pouco depois da morte da sua Maria, a mancha de fuligem na parede onde faz o fogo de chão foi alastrando como que alimentada pela sua solidão. [Neste instante Joaquim fita-me, surpreendido pelas liberdades deste narrador. Obriga-me a pedir desculpa e continuar com mais rigor]

Cada recanto da pequena casa guarda memórias mais felizes, sempre mais felizes. Ali, o seu filho mais velho a gatinhar, entretido com umas latas de conserva transformadas em brinquedos por força da criatividade de Joaquim. Ali a filha mais pequena a fazer os deveres da escola à luz do candeeiro a petróleo. À porta os gémeos a regressar de uma saída ao campo a montar armadilhas aos pássaros com a pele queimada pelo sol, exaustos e satisfeitos.

Muitas vezes por dia se entretém a recriar estas memórias e elas dão-lhe a sensação de que a sua vida já passou por ele, o tempo se consumiu tão depressa! Mas Joaquim respira fundo como que a afastar estas ideias, a hora aproxima-se e ele não pode faltar. Contraria o reflexo de contar os anos desde que viu pela última vez os seus gémeos, na Suíça há tanto tempo e que nunca mandam notícias. Vai sabendo alguma coisa por primos que têm telefone e passam aqui às vezes para falar com ele sem desligar o motor do carro. A filha, viu-a talvez pela última vez há vinte anos, quando lhe veio mostrar o neto. Opôs-se ao casamento da filha e cortou relações com ela. Nem foi ao casamento. Apenas a viu por uma fresta do postigo fechado naquela ocasião. “Sou um velho casmurro” recrimina-se com arrependimento. Trocava tudo para ver a cara desse neto. “Será que é parecido comigo?”

Mas a hora aproxima-se e o seu lugar espera-o. Olha para o sol que começa a surgir por detrás da serra e avança decidido para o seu lugar. Dificilmente se poderá chamar aldeia ao local onde vive, o próprio Joaquim sempre lhe chamou o monte. São seis casas seguidas, amparadas umas às outras. As restantes cinco estão vazias e o abandono começa a deixar as suas marcas. Paredes de taipa que, sem cal, começam a desfazer-se aos poucos lembram a este narrador a areia numa ampulheta. Mas Joaquim não conhece essa palavra por isso voltemos a ela. A estrada alcatroada fica a três quilómetros, por isso avança até ela que o tempo começa a fugir. O caminho é sempre o mesmo. No Inverno Joaquim toma atenção ao passo para evitar as poças de água e os lamaçais. No Verão é um caminho mais agradável e mais rápido. São, na verdade, três quilómetros sem história. Joaquim conhece a estrada melhor que a palma das suas mãos, seria capaz de encontrar o caminho de olhos fechados, entre outros lugares comuns que se podem usar para dizer o simples – o hábito tornara o caminho tão familiar a Joaquim que era capaz de o descrever melhor do que conseguiria descrever as feições dos gémeos e da filha ingrata que desrespeitara os conselhos do pai.

Depois, já na estrada nova, são mais dois quilómetros até ao seu lugar. Na curva da estrada para a vila grande, ainda a uns vinte quilómetros, Joaquim descobriu um lugar onde construir o seu abrigo. À volta existe uma barreira montanhosa e de vegetação sulcada por alguns barrancos que se enchem no inverno com as águas das chuvas. Tão inclinado que é como se o mundo que o rodeia fosse feito de papel cenário, falso e apenas um fundo onde a história de Joaquim se passa. Com o tempo, Joaquim foi melhorando aquele lugar. Primeiro arrancou as ervas, arranjou depois uma laje que, após escavar um pouco, ajeitou à laia de assento ao lado de um frondoso chaparro. Cortou alguns ramos de maneira a que desimpedissem a vista para a estrada mas permitindo algum abrigo. Para lá levou ervas de cheiro e até uma roseira. Joaquim tem orgulho deste lugar, o mais bonito do seu mundo. Quando o avista, a sua cara quase muda de expressão, há quase um arquear dos lábios de satisfação. Chega e aspira as fragâncias do seu pequeno jardim. O sol começa a bater naquele lugar no preciso momento em que chega. A esta hora da manhã, e ainda que tenha pouca força, é um bálsamo que aquece os seus velhos e descarnados ossos. Pensa: “Que belo local para descansar. Gostava que me enterrassem aqui um dia.” Mas afasta este pensamento por causa de um movimento que não vê mas sente antes da curva. A seguir o rumor de um motor. Vem lá gente.

Começam a surgir os primeiros carros. Pessoas que vêm de longe e de perto a caminho da vila. Entre esses carros, vem aquele que ele espera. Entre esses carros vem aquele que é o propósito da sua deslocação diária até este lugar. O carro que alimenta a ilusão de que um dia, o seu filho mais velho não se limite a acenar mas pare e fale um minuto com o seu pai. Não mais que um minuto. Ainda que seja só um desejo, uma quimera, alimenta esta empresa de Joaquim de, todos os dias, se levantar cedo, enfrentar o frio e a chuva e acenar a todos os motoristas que ali passem. Até que um dia lá não esteja e no dia seguinte também e nunca mais lá eu o veja. Talvez o seu filho se aperceba que o Joaquim lá não está ao fim de uma semana, talvez ao fim de um mês. Talvez se esqueça até que alguém lhe telefonou e diga: “O seu pai morreu”. Joaquim espera que ele não se sinta culpado porque, bem vistas as coisas, o moço não tem vagar.

E eis que lá vem o seu filho. Joaquim prepara-se, enche o peito de ar e levanta a mão numa saudação em que coloca todo o seu ser. O filho, sem sequer erguer os olhos da estrada, levanta os dedos da mão com que segura o volante e segue o seu caminho. Sempre em frente, segue o seu caminho. Joaquim fica na curva da estrada, ainda a acenar.

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