O Paulo usava o cabelo grande. Não era moda, não se pode dizer que imitasse
alguém, nos anos 80, naquela região, nem era assim tão comum. Simplesmente,
gostava de o ter assim: cabelo louro e liso pelos ombros. Também a pele era clara,
como se o sol do Alentejo tivesse decidido poupá-lo ao castigo que destinava a
todos os outros. Paulo tinha um ar angelical. Como é sabido, os anjos não têm
sexo, por isso, quem não o conhecia, passava alguns minutos numa perplexidade
que aprendemos a identificar e nos divertia. Viam uma figura andrógina, bonito
demais para ser moço e com feições ligeiramente grosseiras para ser rapariga.
Indecisos entre chamar-lhe gaiato ou gaiata, acabavam, muitas vezes por não
dizer nada e iam-se embora com os dois pronomes entalados na garganta.
Algumas das senhoras idosas, mais espertas que as outras, tentavam sair
airosamente deste impasse e perguntavam: “Como te chamas?” Mas a entoação que
ele dava ao seu nome, fechando a última vogal, deixava-as na dúvida. Teria dito
“Paulo” ou “Paula”? Não conseguiam perceber. Acho que não fazia de propósito,
mas nós divertíamo-nos a ver a confusão que ele provocava. Alguns ainda ficavam
a remoer rancores vindos de preconceitos contra cabelos grandes, como se o
Paulo fosse uma repetição das frustrações que tinham vivido com os seus
próprios filhos que, agora com idade para serem pais do Paulo, tinham sido hippies, com longas guedelhas, sapatos
de plataforma, horríveis camisas de hiperbólicos colarinhos e calças com boca-de-sino.
No recreio da escola, Paulo gostava de jogar à bola. Não era o primeiro a
ser escolhido quando se faziam equipas, mas também não era o último. Algum
talento tinha para a coisa. Metade das vezes, porém, preferia brincar com as
raparigas às telenovelas, recriando as cenas do capítulo do Roque Santeiro
visto no serão anterior.
Uma observação à indumentária também de pouco servia para que se
conseguisse alcançar qualquer certeza. Paulo, como todos nós, usava a
obrigatória bata branca imposta aos alunos e alunas pelo professor Albino. Para
além da bata, fazia parte do uniforme uma particularidade que servia para
premiar os alunos pelo seu desempenho e motivar para a aquisição permanente do
saber. Todos traziam ao peito um alfinete de dama com várias fitas que contrastavam
com a alvura da bata. Invejávamos o Paulo porque trazia penduradas todas as
fitas, numa infinidade de cores. Uma fita branca para a limpeza, obtida após
análise cuidada das unhas e atrás das orelhas, local onde o sarro era mais
resistente a uma boa esfrega. Uma fita vermelha para a destreza demonstrada no
interrogatório da tabuada. Uma fita amarela para a história, sempre que um
aluno sabia de memória os nomes e cognomes de todos os reis da primeira
dinastia. Uma fita verde para a ortografia, entregue a quem conseguia três
ditados seguidos com zero erros. Mais cores, muitas, para outras tantas tarefas,
deveres e saberes: pontualidade, resolução de problemas de matemática,
caligrafia, criatividade na escrita de composições, presenças na catequese,
enfim, fiquemo-nos por um et cetera. Um autêntico arco-íris
pendurado ao peito que o Paulo e a maior parte de nós mostrávamos com orgulho,
quando havia muitas, ou com vergonha se acaso minguavam.
Um dia, o professor Albino chamou o Paulo ao estrado e disse que lhe iria
retirar a fita branca da limpeza. Burburinho na sala! Estranhámos a situação e
disso demos conta ao colega de carteira que tinha a mesma intenção! Então o
Paulo que era o paradigma da limpeza, sempre com as unhas curtinhas, sem
remelas nos olhos e que, quando estava constipado, limpava o nariz com mil
cuidados e sem nenhum ruído! A sua mesa, magicamente, parecia-nos, nunca tinha
vestígios de borracha, os seus lápis nunca deixavam aparas. Tudo tão limpo e
ordeiro que parecia que nunca era usado. Uma antítese total das nossas
carteiras, sempre escritas, sujas de tinta e todos os vestígios em que os
gaiatos da escola primária são abundantes.
Paulo, humildemente, sem ponta de revolta ou sequer mau humor, perguntou a
razão dessa súbita e inesperada subtração da fita. O professor,
silenciosamente, apontou-lhe para a cabeça. Continuámos sem perceber. O Paulo,
apenas ele, parecia ter adivinhado. Passou as mãos pelo cabelo. O professor
começou a dizer que o cabelo grande era “uma falta de higiene”, que originava
piolhos, que era sinal de desleixo. Perguntei, candidamente, sem vestígio de
ironia, se as raparigas deviam também cortar o cabelo. O professor, confundindo
a minha inocente perplexidade com desafio, ordenou de imediato que me fosse
sentar à janela com orelhas de burro. Concluíu o professor, que “os homens
devem usar o cabelo curto”. Paulo, exposto a todos, baixou a cabeça e começou a
chorar silenciosamente. Isso pareceu irritar o professor que, ato contínuo, lhe
retirou a fita púrpura do bom comportamento dizendo, com um arrependimento
visível a meio da frase: “Um homem não chora”, cujo único efeito foi
multiplicar as lágrimas.
Na semana seguinte, o Paulo foi ao barbeiro, a isso os pais o obrigaram depois de uma conversa com o professor. Não sei se chorou, como na sala, quando as madeixas louras foram caindo à mercê do pente número dois do mestre Ciladas e ficou, por fim, frente ao seu reflexo no espelho, com o escalpe a descoberto.
Quando voltou à escola, estava irreconhecível. Os grandes olhos claros
pareciam desabitados. O professor fazia-lhe perguntas e ele encolhia os ombros,
indiferente aos castigos, às reguadas e puxões de orelhas. Nem reagia enquanto,
uma a uma, as cores do arco-íris que trazia num alfinete ao peito eram
retiradas como as pétalas de um malmequer. Nunca ninguém mais olhou para o
Paulo na dúvida sobre se seria rapaz ou rapariga. Para nós, garotos, nada
mudou. Estava ali o nosso amigo. Mais triste, mas era ele. Para o Paulo, tudo mudou.
Como mudou para Sansão que, conforme contava o Padre Herculano, perdera as
forças à medida que perdera o cabelo. No professor e nos outros adultos,
parecia ter-se instalado um conforto que antes não experimentavam ao encarar o
Paulo. Era um rapaz que ali estava. Não podia ser outra coisa.
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