Monday, January 14, 2019

As Horas


Eram as horas no café que tornavam tudo suportável: as longas horas fora de casa, o levantar cedo, o legítimo mau humor da sua esposa por estar tantas horas fora de casa e, sobretudo, a monotonia de muitas horas para passar e pouco com que as ocupar. Lia o jornal diário, lia o jornal desportivo, com um vagar absoluto. Consultava o correio eletrónico sabendo que nada de novo tinha chegado, fazia pesquisas inúteis na Internet e observava as pessoas que entravam. Começou a conhecer-lhes as rotinas e os horários, os gostos e as manias. Um gostava do café cheio, outro pedia pingado. Uma senhora, com um vago sotaque madeirense, pedia sempre adoçante. Uns vinham sozinhos para fumar um cigarro, outros faziam daquele momento um ritual social.

Lembrava-se a todo o momento de um romance que trouxe da biblioteca mas nunca chegou a terminar: “A Colmeia” de Camilo José Cela. Aqui era ele o voyeur. O narrador impertinente e indiscreto que tudo vê e relata.

Naquele ano, viu-se numa situação nova. Como professor, sabia que cada ano podia trazer um desafio diferente. O ano anterior tinha sido de muito trabalho. Agora, porém, o desafio era contrário. Era manter a sanidade, a cem quilómetros de casa, no meio do tédio.

A princípio ocupou-se a escrever. Tinha dentro dele aquela compulsão que faz com que tenha sempre uma história para fixar em papel, uma memória para cristalizar e preservar ou um pensamento que quisesse desenvolver. Mas esse poço depressa secou e via os ponteiros do relógio arrastarem-se num langor que lhe esticava os nervos.

Nunca gostou muito de conversar. Acha que as pessoas, quando as estamos a conhecer são uma ficção. Quanto mais se querem dar a conhecer mais escondem quem são na realidade. Escondem o que julgam ser defeitos e maquilham as pretensas qualidades. A espontaneidade genuína está em vias de extinção. Para as conhecermos realmente, pensa por vezes, temos que ser uma espécie de David Attenborough, camuflado e a observar à distância. Quando fica a conhecer, ou melhor, a compreender as pessoas, é quando perde todo o vestígio de interesse.

Por isso gostava do café. Era como observar a natureza. Os animais comportam-se de maneira diferente quando não estamos a olhar. O rouxinol canta quando pensa não ter público humano mas foge quando avista alguém. No fundo, não somos assim tão diferentes.

Um dia o café fechou. Prometiam fazer umas pequenas obras de remodelação e abrir em breve com nova gerência. A reabertura tardou, por isso despediu-se, entregou o pré-aviso de trinta dias e preparava-se para nunca mais voltar. No último dia dessa interminável espera, ao sair olhou e viu um letreiro colado à porta do café: "Reabre hoje com nova gerência".

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