Mãos atrás das costas, inclinado para a frente, calças muito acima da cintura. A cesta da horta em cima da mesa da cozinha cheia de batatas, feijão verde, couves ou cebolas. O boné usado de forma sóbria, num ângulo perfeito. A voz grave mas fresca como água tirada do poço do monte da Masmorra. A minha atenção, de férias e na minha cozinha, mas como se estivesse na escola. Ouvia falar de História, de reis, do Condestável, da Ínclita Geração, o Príncipe Perfeito, "A Arte de Cavalgar Toda a Sela", D. Sebastião, Sebastião de José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal; Manuel Barbosa du Bocage, uma anedota. De Geografia, as capitais, uma viagem à Argentina, Carlos Gardel. Para Lima, Santiago e La Paz, de seguida, percorrendo os Andes. George Washington e Benjamin Franklin era como se os estudasse na escola, o pára-raios inventado por um dos pais da nação americana. Literatura, de novo Bocage, Elmano Sadino, mas agora mais a sério, Camões e o folclore biográfico.
Os comboios, a sua vida toda desde que fez o exame da quarta-classe com uma botas emprestadas, as viagens pelo país e por Espanha, a bitola, as linhas ativas e desativadas. As idas com ele a Lisboa, eu meio bilhete e ele sem pagar, comboio, barco, Cais das Colunas, Terreiro do Paço, Rua Augusta, Chiado, uma ginjinha para ele, um capilé para mim que tentava absorver tudo com a mesma avidez com que me refrescava com a bebida. Pescada cozida com batatas e feijão verde ao almoço em Póvoa de Santa Iria. A Expo 98 ainda na incubadora. A viagem de regresso a jogar à sueca com os restantes reformados da CP, rabugentos e intolerantes para com as minhas juvenis renúncias.
O jornal do dia debaixo do braço, já lido e deixado, dobrado, na mesa da cozinha para eu ler. A parte lúdica, o concurso, uma moeda de 100 escudos, às vezes 200, estendida para quem acerte às três perguntas da chamada cultura geral. A sua definição "O que fica depois de se esquecer tudo o que se aprendeu." "Esqueci-me", "Esquece muito a quem não sabe". Eu a ajudar o meu irmão a acertar as perguntas dele, já com 100 escudos no bolso, "Não vale telefones..."
Anos depois, os livros dele. Depois de morto, os sobrinhos a dividirem a biblioteca. Capas bonitas para uns, o resto, os mais gastos, os mais lidos, para mim. Revistas "Vida Mundial", "Vida Soviética", Programas Eleitorais dos partidos para as primeiras eleições livres, "Depoimento" de Marcelo Caetano, livros raros e documentos que a sua inteligência proibiu de irem para o lixo. Tudo isto ficou, e do homem, fora o que escrevi, só sei o nome, Francisco Masmorra.
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