Olhando para fora da sala, Mauro
entra no seu mundo interior. Não é necessária uma janela para esta fuga. Pode sair
enquanto olha perdido para o quadro preto e para o professor que sobre o
estrado fala de história ou de contas de multiplicar. Acontece, às vezes, Mauro
sumir-se fixando o crucifixo que contempla, de cima para baixo, os alunos do
professor Albino.
Ninguém sabe onde está o Mauro.
Em boa verdade, nem ele sabe onde o leva a viagem. Lembra um sonâmbulo,
caminhando vendo e não vendo a estrada que separa o Monte dos Três Pulos da
vila do Escoural. Mochila às costas, fato de treino vestido e um olhar
indecifrável. Às vezes nem se apercebe que já passou o cemitério ou o pavilhão
da cooperativa. Nem mesmo nota que o chão que tem debaixo dos pés deixou de ser
de terra batida, alcatroado ou empedrado.
Quando chega à escola vem ainda
envolto em sonhos. Não há transporte desde o monte à vila. No Inverno encolhe o
seu pequeno corpo debaixo de um guarda-chuva enorme. No Verão uma boina vem,
como coroa, sobre os seus cabelos ralos e louros. Mauro é um ser estranho para
os colegas. Um rapaz de aspeto frágil, esbranquiçado e enfermiço num local de
moços robustos e trigueiros.
Os seus olhos claros parecem gastos e criam
estranheza por os encontrarmos num gaiato de sete anos. São os olhos que esperaríamos
encontrar num idoso que viu muita coisa e chorou muitas dores. Mas a verdade é
que, quando o vemos parado a olhar, só podemos especular sobre o que vê
realmente.
Calculo que o seu imaginário seja
parecido com o meu, tirando o facto de eu saber que o monte onde mora o Mauro
não tem televisão. Por isso sei que ele não sabe quem é o Tom Sawyer, o Bocas,
o MacGyver ou o Tintin. Ele também não tem grande desembaraço a ler por isso
antevejo que não conheça os livros de quadradinhos da Disney traduzidos para
português do Brasil. O que tenho em comum com ele, de certeza, é a proximidade
dos avós e as histórias que nos contam. Deduzo isso quase trinta anos depois enquanto
vou lembrando e contado. Mauro usava muitas vezes palavras que o resto dos
gaiatos daquela idade já só ouvia aos avós: “ontiágora” que queria dizer “há
pouco tempo”, “bucha” que queria dizer “lanche”, “pucro” que queria dizer “caneca”
e outras expressões que compreendíamos, mas não reproduzíamos.
Brincávamos muitas vezes e, no
recreio, o Mauro nunca era o Mauro, o seu nome era “Três Pulos”, o nome do
monte onde morava. “Quem vai à baliza?” era a pergunta que iniciava qualquer
desafio de futebol. “O Três Pulos” era a resposta pronta que eu ou outro gaiato
tinha. E ele lá ia, sem reclamar, sem mostrar contentamento ou nervosismo para
o posto. Quando calhava alguém a querer ir à baliza, Mauro já não jogava.
Sentava-se encostado à parede a apanhar sol, com uma mão em pala sobre os
olhos, conformado.
Acontecia muitas vezes ao Mauro
urinar-se. Muitas vezes, mesmo. É normal porque ele não estava cá para sentir a
urgência de ir aliviar-se à casa de banho. Parecia perplexo quando a minha mãe,
a auxiliar lhe ralhava e o fazia regressar desse seu sítio. Invejava-o às
vezes, mesmo quando sentia o cheiro ácido a urina com que ficava o resto do dia
quando se descuidava de manhã. Invejava-o porque o sítio para onde ele saía
devia ser realmente fantástico para nele se demorar tanto e parecer tão pouco
interessado nas coisas deste mundo.
Nunca mais vi o Mauro nem nunca
mais ouvi falar dele. É normal, provavelmente saiu em definitivo para lá.
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