Ao Domingo de manhã, enquanto muitos frequentam a missa, era figura certa na curva da igreja, frente às casas de banho públicas. Era dos mais idosos na freguesia mas estava bem conservado graças a uma vida salvaguardada dos trabalhos duros do campo. Enquanto que os poucos que restavam da sua idade, entre lamentos das doenças que os afetavam, recordavam as jornadas de sol a sol nas searas debaixo de um sol tórrido, as mondas que lhes vergavam as costas ou as carvoarias que lhes enchiam os pulmões de fuligem, Santos podia olhar para trás e recordar uma vida de privilégio e prestígio ao balcão da farmácia. Agora reformado, a idade era já muito avançada mesmo para um trabalho ligeiro, recordava a autoridade com que, detrás do balcão e em cima do estrado recomendava algum medicamento. Mais importante que o Santos da Farmácia, só o Dr. Capoulas. É que apesar de muito poderem os donos das terras que decidiam se uma família tinha ou não trabalho, o Santos e o Dr. Capoulas podiam salvar vidas. Talvez tivesse até vaidade nisso, até mais do que no dinheiro que fora amealhando ao longo da carreira. Conseguira fazer uma casa na aldeia, uma das maiores e mais bonitas, e tinha carro, objeto inacessível à grande maioria dos habitantes de Santiago. Era o carro o símbolo maior da riqueza e prestígio de Santos. As casas são investimentos que ficam para o futuro e para os filhos, sabe o povo. E sabe também que os carros são o contrário. Por isso, era quase que para recordar aos seus pares e a si próprio que pertencia à categoria dos homens que têm sucesso na vida, que Santos cumpria o ritual domingueiro de lavar o seu Datsun 120Y branco, restituindo-lhe semanalmente a alvura que, antes, ostentava na sua bata de farmacêutico. Depois, sentava-se ao volante, vagarosamente dava à chave e, após ouvir dois ou três roncos do motor, arrancava e dava uma volta triunfal de cerca de meia hora por Santiago.
Quando eu era novo, já Santos era velho. Conheci-o já reformado com a farmácia já fechada mas com esse sufixo sempre colado ao nome: "Santos da Farmácia". A minha mãe contava-me histórias da sua meninice e uma delas envolvia-o. Tinha o meu avô um cão que era um prodígio de inteligência - o Maroto. Tão inteligente que fez despontar na minha mãe um amor pelos animais que ainda hoje se mantém. Santos da Farmácia era caçador e, ao saber das qualidades do cão, quis comprá-lo. O meu avô aceitou 500 escudos pelo Maroto mas o próprio não aceitou bem a mudança. Sempre que conseguia, escapulia-se e ia ter com a minha mãe e o meu avô ao monte da Masmorra. Só quando lhe explicaram que o Santos era o novo dono, Maroto se conformou. Com o dinheiro da venda e para atenuar a culpa própria e o desgosto da minha mãe, o meu avô comprou uma pulseira ou um fio de ouro à filha. Esta história contribuiu para que Santos fosse, para mim, uma mistura de idoso respeitável e vilão de um filme da Disney. Era daquelas pessoas a quem era incentivado a cumprimentar formalmente "Bom dia, Sr. Santos" ou "Como tem passado, Sr. Santos?".
Um dia, alguém se queixou no posto da guarda da volta triunfal domingueira de Santos. Já não via muito bem, os reflexos não eram grande coisa e, por pouco, atropelava alguém. Não sei se houve mais queixas mas quero acreditar que houve até que o cabo Maximino foi falar com o idoso. Pediu-lhe primeiro que não conduzisse mais, depois desse pedido ignorado, proibiu-o, mais tarde tirou-lhe a carta. Já não tinha idade nem capacidade para conduzir. Santos continuou a lavar o carro ao domingo mas nunca mais o conduziu. Aconteceu então um fenómeno estranho: Santos que até então parecia ter interrompido o envelhecimento, parecia agora envelhecer um ano todas as semanas. A cada domingo sentia mais dificuldade em lavar o carro, cada vez demorava mais tempo e com movimentos mais e mais lentos. A pouco e pouco, até o carro, outrora sempre de um branco brilhante, parecia corroído e a acusar a passagem do tempo. A chama que faiscava nos olhos de Santos foi-se apagando aos poucos até que morreu. As pessoas diziam que morreu de desgosto por não ser autorizado a conduzir. Talvez tenha sido isso, digo eu, ou talvez porque em Santiago muitos tinham já carro e o seu Datsun 120Y era tão-só uma velharia bem estimada.
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