Entro na sala de espera do hospital. Esta é a zona das visitas, cheia a esta hora. Uns rostos escondem melhor que outros um sentimento que julgo comum a todos: a ansiedade. Todos esperam notícias, as melhores como os pais que aqui aguardam pelo momento em que passam a ser avós ou as piores como aqueles que estão à beira de se tornarem órfãos. Nestes locais a solidariedade é muito subtil. Estamos todos no nosso mundo, mas irmanados por esse sentimento de preocupação com os nossos.
Esperamos pela autorização para entregarmos os nossos cartões de identificação
e recebermos em troca um passe. De seguida, uns dirigem-se aos elevadores e
outros, pelas escadas distribuem-se pelas entranhas deste monstro. Sigo as
indicações até à Unidade de Cuidados Intensivos. Notei a mudança na cara do
segurança, meu amigo, quando lhe pergunto o caminho.
Lembro-me
dos filmes, das séries de televisão para tentar antever a sala onde estou
prestes a entrar. Imagens filmadas com a câmara aos solavancos, cenas agitadas e
gritos a pedirem unidades de sangue, a gritarem para se afastarem quando empunham
o desfibrilhador. Tudo contrasta com a imagem que encontro quando entro. Uma
calma inesperada. As camas dispostas em coroa. Maquinaria cuja função só posso
supor e que produz o único ruído. Apitos ritmados, espaçados, como código Morse aos meus
ouvidos. Ouço os apitos, mas não os compreendo, como se fossem uma língua estrangeira.
Procuro
a minha avó e depressa a encontro. Está desperta, encostada, parece
reconhecer-me, animo-me com isso. Parece-me bom sinal que me reconheça. Esperava encontrá-la tranquila, mas não me parece. Quando lhe seguro a mão, sobressalta-se. Concentro-me nos detalhes, sei
como são fugidios. Confirmo-o agora, quando recordo, tudo tão vago. Na minha memória, as paredes
não conservam cor alguma, os médicos e enfermeiros são apenas batas sem rostos. Os detalhes que aqui coloco, não tenho a certeza de terem existido ou
de os preencher com a imaginação.
Os
olhos claros da minha avó, parecem ainda mais azuis, às vezes esverdeiam. As
mãos não estão quentes nem com aquele frio arrepiante. Tento falar-lhe sem
palavras, só com a forma como lhe seguro a mão, procuro saber o que me quer
dizer com a forma como segura a minha. Olha em volta, procura talvez por outra
pessoa. Penso que esperaria o meu pai que veio à visita anterior. Pergunto-me
se terá consciência do local onde está. Depois
olha para mim, o seu olhar parece conter urgência, como se o que fosse dizer pudesse redimir o mundo. A custo, articula algumas palavras, mastigadas, difíceis de
perceber: “vai-te embora”. Consigo distinguir os sons, mas não entendo o que
quer dizer. Acabei de chegar, quero vê-la, animá-la e consolá-la e diz “vai-te
embora”. Percebe a minha confusão. “Antes que ele volte, o homem. Ele depois
não te deixa abalar a ti também.” Concluo nesse instante que está confusa, a medicação
deixa-a baralhada. Não é para menos, está nesta sala, com máquinas a apitar,
com boiões de soro e medicação à sua volta, os dedos ligados a cabos e os cabos
ligados a máquinas. Pelo menos assim o suponho, hoje, anos depois. Apenas ela é
nítida, o seu rosto que, para mim, é a personificação da generosidade.
Insiste,
separa as sílabas, ela que nunca aprendeu a escrever mais do que o seu nome,
“vai--te, em-bo-ra”. A estranheza que me provocava sempre ela não saber ler. Eu,
com seis ou sete anos e ela a chamar-me: “Lê lá isto à avó”. Uma carta
das finanças e “Lê lá isto à avó”, uma prateleira de um supermercado e
“Lê lá isto à avó”, uma fatura e “Lê lá isto à avó”, a seguir uma receita e “Lê lá isto à avó”. Ela a ir para a escola,
já reformada ou perto disso para aprender as letras. A treinar os a’s, a
assinar o nome, a caneta e o lápis ferramentas estranhas à sua mão, habituadas
a enxadas, sachos e outras alfaias. Depois a desmotivar-se, a achar-se "burra" e a repetir “Lê lá isto à avó”.
Eu a dizer-lhe que não me ia embora, que ainda agora tinha chegado e queria vê-la a melhorar e ir para casa. Ela a afastar os olhos, a rodá-los pela sala a dizerem-me “Lê lá isto à avó” como se só ela soubesse o que queria dizer aquela sala, aquelas máquinas, aqueles médicos e enfermeiros. Como se fosse eu quem não soubesse ler e tivesse de me habituar ainda a este alfabeto. A dizer “Lê lá isto à avó”, não porque não soubesse, mas porque eu não sabia. Ela, resignada por eu ali ficar, com uma expressão descrente a ouvir a minha impressão de que estava melhor e que, não tardava nada, estava em casa. “Ele deve estar a voltar, vai-te embora”. O médico entra e diz que os visitantes devem sair. A minha avó, parece aliviada e diz: “vai-te embora, ele não tarda.” Percebo nessa altura que não se refere ao médico e saio despedindo-me, confuso enquanto a beijo. À porta, volto-me uma última vez e vejo que me incentiva a ir embora.
No dia
seguinte vêm notícias do hospital. Junto as letras todas, e consigo, por fim, ler o que ela
me mostrava. “Lê lá isto à avó.”
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