Monday, September 24, 2018

Operários do Sonho

Teria dez, onze anos. O meu primo tão pouco mais e o meu irmão tão pouco menos que não faz diferença nenhuma para a história que relembro. Passou-se nas férias de verão, esse período em que os dias são como grandes lagartos: longos, vagarosos e preguiçosos. Dias que pareciam não ter fim para serem repetidos uma e outra vez na eternidade daquele calor abrasador.

O quintal dos meus avós era um mundo que tínhamos já explorado de cabo a rabo. Todos os recantos desde a parte de baixo, encostada à marquise com as suas duas nespereiras, ao muro que o limitava lá em cima com telhas, tijoleiras e vigas que o meu avô lá guardava a servirem-lhe de guarda de honra. O galinheiro e as colheiras não guardavam novidade para os três. Não nos surpreendiam já os movimentos rápidos dos coelhos quando nos aproximávamos e acostumámo-nos às remelas que chagavam aqueles afetados pelo “mal dos coelhos”. A cerca onde, por vezes, estavam alguns borregos, que o meu avô criava e depois vendia porque não tinha coragem de matar, tinha tido o seu potencial para a brincadeira esgotado. Não inventávamos mais touradas com bois sonhados nem a nossa imaginação conseguia já lobrigar ali um forte de índios, um castelo ou um navio de piratas. O casão onde o meu avô guardava as ferramentas há muito que se abrira também e conhecíamos o lugar das talochas, colheres de pedreiro, pás, carrinhos de mão e toda a sorte de utensílios de que o meu avô fazia uso para ganhar o pão.

Nas horas de calor, quando os adultos se fechavam em casa após nos chamarem insistente e inutilmente, o quintal era só nosso. Sem supervisão, em liberdade total naquele mundo limitado. Corríamos por ali como pequenos selvagens com os joelhos sempre escalavrados e os calções imundos. Formávamos os três uma espécie de tribo com uma hierarquia bem definida em que os poucos meses que espaçavam os nossos nascimentos ditavam a liderança. Por isso, foi como se fosse uma ordem de um capitão que, quando o meu primo teve a ideia, nós decidimos lançarmo-nos à obra. Algo brilhante, tão brilhante que até parecia um absurdo nunca termos pensado nisso. Anunciado como se fosse tão banal como colher uma romã da romãzeira: “hoje vamos fazer uma piscina”. Mesmo assim, uma empreitada. Naquele momento, nenhum de nós ousava imaginar outro cenário para o dia seguinte que não implicasse mergulhos e braçadas no quintal dos meus avós.

No casão estava tudo o que fazia falta. Não tínhamos necessidade de projetos ou plantas. Com uma cana afiada, o nosso mestre-de-obras sulcou no chão, aquilo que seriam os limites da piscina. E, enquanto a minha avó, no fresco da casa, dormia a ver a novela, nós começámos a nossa missão. Eu com um sacho, o meu primo com a enxada e o meu irmão com a pá, íamos lutando contra o calor, o chão duro e seco e acrescentando cada vez mais o buraco. O meu irmão ia tirando, às pazadas, a terra num esforço sincronizado e fraterno. Suados e com os membros mais e mais pesados, íamos assistindo ao evoluir do nosso trabalho. Encorajávamo-nos uns aos outros em silêncio com o foco na recompensa que era, para nós um sonho. O calor que sentíamos era refrescado com a perspetiva de um oásis no meio do quintal.

Quando chegou o meu avô, irado e impressionado em igual medida, ficou a obra embargada. Na minha memória, era uma piscina já descomunal, talvez olímpica, e tínhamos escavado a um ponto em que saímos de lá com dificuldade. Mas, o mais certo é ter sido menos que uma cova. Um fracasso total tendo em conta a ambição do projeto.


Recordando esta empresa, não é o fracasso a ideia que retenho. Tanto que, ao dar à manivela ao mecanismo da memória, revivo-a amavelmente. Pensando bem, não se perdeu nada. Até porque acredito que nadar na piscina nos trouxesse menos satisfação que aquela jornada de trabalho.

Sunday, September 16, 2018

Encruzilhadas


Na tradição popular, pejada de superstição misturada com saber feito da experiência de muitas gerações, as encruzilhadas são lugares de magia e maldição. Negoceia-se com o diabo em figura de gente e, contava o meu avô, era onde os lobisomens, que ao contrário dos de Hollywood se transformavam também em bestas de carga, deixavam as roupas ao abandonar a forma humana.

O caminhante que vem de uma longa e árdua jornada perde ali a certeza da direção a tomar. Mas tem que decidir. Em caso algum pode, como canta o Jorge Palma, chamar "casa a esse lugar". Ao demorar-se ali, a maldição começa a ganhar força e a dúvida destrói-o por dentro. 

As certezas são sobrevalorizadas, começo a descobrir. Mais vale uma convicção. Até um palpite, em muitas ocasiões, é preferível. O que há a fazer é olhar, analisar, escolher e avançar. E, sobretudo, não olhar para trás. Como Ló e as suas filhas em fuga de Sodoma e Gomorra, avançando sempre e deixando atrás de si a estátua de sal da sua mulher.

Há quem argumente que a encruzilhada nos dá a ilusão do livre arbítrio. Quem tem fé, pode confiar a decisão a deus ou ao destino. Ao resto de nós, resta crer na nossa capacidade de olhar para a realidade e projetar o futuro.

Encontramos todos encruzilhadas na nossa vida, fazem-nos crescer. Fazem parte do nosso caminho. Ficamos mais fortes, mais experientes e mais sábios de cada vez que as ultrapassamos. Passamos por elas mas é como se elas também passassem por nós. Não saímos delas iguais. Sairemos melhores se conseguirmos, sobretudo, resistir a olhar para as opções que declinámos. Se soubermos que olhar para trás só nos acrescenta azedume e é inútil. Já não estamos lá. Melhor será projetar hipotéticos novos cruzamentos onde, de novo, teremos que decidir com um palpite ou uma fezada. E a vida é feita disto. E de novo Jorge Palma, desta vez, penso eu, mais certeiro: "enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar".