tag:blogger.com,1999:blog-100639632024-03-28T14:01:42.150+00:00Medos MeusMARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.comBlogger265125tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-9531208307337081042023-10-23T15:19:00.010+01:002024-01-18T14:50:24.169+00:00Formigas de Asa<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJDWVzyAlRWt80j1X7O0ZPPtlLeb3jXiN4OrkD7rCQC4zl9ljlU70ZWMtk3SGeWB_hno-1comsNfmVMrPJx3X1OCpM1zSkGmJbfOeEM9Hr2UrGfMqXHN81_uczO8NqEMVss9dl0jN7qalz7mtw9mxYYnjDCTswnAz1H0IlYpBRYmD0Mo8kokR2xg/s800/22ed.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="731" data-original-width="800" height="292" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJDWVzyAlRWt80j1X7O0ZPPtlLeb3jXiN4OrkD7rCQC4zl9ljlU70ZWMtk3SGeWB_hno-1comsNfmVMrPJx3X1OCpM1zSkGmJbfOeEM9Hr2UrGfMqXHN81_uczO8NqEMVss9dl0jN7qalz7mtw9mxYYnjDCTswnAz1H0IlYpBRYmD0Mo8kokR2xg/s320/22ed.jpg" width="320" /></a></div><br /><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Já não se lembra
do dia, era Outubro, sabe-o porque havia formigas de asa por todo o lado. Esperava-as
todos os anos. Intrigava-se com esta invasão, com a aparente inutilidade das
asas em seres que rastejam sobre e sob o solo. Onde andariam todo o ano e por que motivo apareciam com as primeiras
chuvas do Outono? Provocavam um frenesim nas aves que se alimentavam de forma
prodigiosa com estes parentes longínquos também alados. O avô, homem que apesar
de analfabeto conhecia a cartilha da natureza, dizia que adivinhavam a chuva,
se conhecesse a palavra, melhor diria que eram os seus arautos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Pensava ainda
nisso quando surgiu o primeiro sinal de que estava grávida, dado pelo rebentar
das águas. Não soube logo de que se tratava, apenas via os pés molhados com
aquele líquido de fonte desconhecida. As dores puxaram-lhe um grito que,
saindo-lhe da garganta, parecia vir de um local desconhecido, do baixo-ventre
que era agora uma fornalha. O seu ventre, nove meses carregado em silêncio, era todo alarme. O medo impedia-a de compreender o que se passava. O animal
que era sobrepunha-se à mulher que também era. Sentou-se, as pernas abertas e
arqueadas, os pulsos, primeiro, depois os cotovelos, a susterem o peso do tronco. Respirou fundo, procurando a
calma que a abandonara. Chamou, com uma voz frágil, por alguma companheira da apanha de azeitona
que, mesmo longe, pudesse ter sido alertada pelo seu grito, mas ninguém se
aproximava. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Foi quando
caíram as primeiras lágrimas que conseguiu, enfim, organizar os pensamentos e
trazer alguma luz à sua situação. Revia o mês de janeiro, o encontro furtivo
com o Manuel, rapaz que vinha à aldeia para ajudar nas matanças dos porcos e no
desmanche das carnes. Ela, encantada com aquela arte que transformava animais
em conduto, a seguir os movimentos certeiros da sua faca. Segurava o
instrumento vigorosamente com uma mão, enquanto a outra ora empurrava com
firmeza ora afastava entranhas para conseguir chegar até ao ponto onde o corte era necessário. Achava tudo
estranhamente sensual. Ao final de cada dia, despedia-se sempre com um sorriso
e um “até amanhã, menina” e, mesmo antes de se montar na sua motorizada,
estendia-lhe um pacote embrulhado em papel pardo e dizia “isto é para si,
menina”. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A atenção
fazia-lhe o sangue pulsar, sentia-se desejada, pela primeira vez. Chegava a
casa e abria o pacote, umas vezes os rins ou a papada, outras bochechas, ainda os túbaros.
Entregava tudo à mãe que, mesmo ardendo em curiosidade sobre a origem destes pedaços de porco,
preferia calar-se e melhorar o jantar da família. Dormia deliciosamente, não
sabia dizer se da barriga mais consolada se da vaidade de ser o objeto de
desejo do rapaz. Havendo matança na aldeia, oferecia-se para ajudar se sabia
que era Manuel quem vinha matar e amanhar. Amparava o sangue, agachada e
olhando o rapaz que, com um cigarro ao canto da boca, se concentrava no abate
do animal. Tirava, de vez em quando os olhos do alguidar já cheio quando a guincharia do
bicho acalmava e a morte, enfim, o reclamava, para mirar a face do matador.
Este, se surpreendia o seu olhar, sorria enrugando toda a cara, com um indício
de luxúria.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">No dia de Reis,
o Arcadinho queria matar um porco e veio Manuel tratar do assunto. Ao final do
dia, chamou-a. Levou-a para um recanto perto da ribeira, atrás de uma velha
figueira e disse novamente “isto é para si, menina”. Ela esperava um corte de
carne, mas desta vez parecia ela a ser cortada. Sangrou pouco, e foi uma dor
prazerosa que se repetiu a cada visita de Manuel no resto desse Inverno.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Depois disso,
veio o tempo quente e não houve mais matanças. Veio a seca, não choveu mais
nesse Inverno, março marçagão foi de verão e abril sem águas mil. Maio foi de
trovoadas, mas secas. O estio veio com força, sem pinga de água. Os pastos secavam,
as hortas morriam de sede e chorava-se na aldeia um ano de fome. Sentia o
ventre a crescer, mas escolheu ignorar como fingiu também não perceber que as
regras deixaram de lhe aparecer todos os meses. Esqueceu voluntariamente o
Manuel, desaparecido da aldeia, e vestia roupas largas para se enganar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Sentiu nova vaga
de dor a irradiar-se do ventre para o resto do corpo. Estremeceu. Sabia já o
que estava a acontecer, ou melhor, aceitava que era uma criança que estava
prestes a nascer. Era real, a sua vida haveria de ter um antes e um depois
deste dia. Um marco de sangue e dor no seu curto caminho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Os pensamentos
sucediam-se sem que um se fixasse, até pensar na criança. Que seria das duas?
Como chegaria a casa, se a conseguisse parir, com um recém-nascido nos braços?
Imaginava os pais, estupefactos, primeiro, e depois irados. Adivinhava os nomes
que a mãe lhe iria atirar à cara e o desgosto que provocaria no pai, que sempre
a defendia. Depois disso, a aldeia, a marca que os olhares lhe atribuiriam para
sempre, a criança, rapaz ou rapariga, vista como o resultado de um pecado sujo.
Os pais ajudariam a criá-la ou renunciariam a ambas?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Chorava agora o
destino deste ser que ignorava há minutos e a chuva rebentou com estrondo. A
terra, mesmo sequiosa há meses, não conseguia absorver o dilúvio. A força da
água a embater no chão projetava gotas de lama para as suas pernas descobertas.
Pequenos cursos de água iam-se formando, seguindo os declives do terreno. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Faltavam-lhe as
forças e a coragem para se erguer. Uma dor que parecia a mãe das que vinha a
sentir levou-a ao limite da consciência. O instinto dizia-lhe para fazer força.
Obedeceu, inclinando a cabeça para trás e soltando um rugido, gutural,
animalesco que se misturava com o estrondo dos trovões que soavam pelo vale.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A seguir, o
silêncio. Apenas o som da chuva que continuava a cair. As formigas de asa eram levadas pelo vento e esmagadas contra o chão pela água. Entre as pernas jazia,
ensanguentada e imóvel, uma figura informe, ligada a si por um cordão.
Pegou-lhe, sentindo que era apenas um pedaço de carne. Não respirava, nasceu
sem vida. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Levantou-se,
retirou a faca do saco do farnel e cortou o cordão. Evitando olhar o corpo,
embrulhou-o no talego e, levantando-se a custo, atirou-o ao barranco que corria
engrossado pelas águas vindas de um céu que desabava. O embrulho desapareceu de imediato, levado pela água que corria tresloucada. A recordação de Manuel assombrou-a por instantes, de braço esticado com um embrulho “isto é para si, menina”,
agora repugnando-a. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Não tem dia
certo, quase sempre em outubro, as formigas de asa vêm-lhe lembrar a chegada da
chuva e aquilo que as águas levaram.</span><o:p></o:p></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-7781564467965349182022-06-07T20:48:00.010+01:002023-03-21T20:43:41.886+00:00Poema da esperança relutante<p><span style="font-family: verdana;">Tão curto é o inverno como o verão,</span></p><p><span style="font-family: verdana;">Mesmo quando se arrasta longamente</span></p><p><span style="font-family: verdana;">E mesmo morrendo, deixa a semente</span></p><p><span style="font-family: verdana;">Do retorno ao mesmo chão.</span></p><p><span style="font-family: verdana;"><br /></span></p><p><span style="font-family: verdana;">Tão longo é o verão como o inverno.</span></p><p><span style="font-family: verdana;">A vida inteira pode ser breve,</span></p><p><span style="font-family: verdana;">Depois do sol, vem gelo e neve,</span></p><p><span style="font-family: verdana;">Mas não há um instante eterno.</span></p><p><span style="font-family: verdana;"><br /></span></p><p><span style="font-family: verdana;">É inglória a luta contra a roda</span></p><p><span style="font-family: verdana;">Que, nas suas voltas, ordena o mundo.</span></p><p><span style="font-family: verdana;">A eternidade parece um segundo</span></p><p><span style="font-family: verdana;">Quando o sol aquece e nada te incomoda.</span></p><p><span style="font-family: verdana;"><br /></span></p><p><span style="font-family: verdana;">Tempera com lágrimas a alegria</span></p><p><span style="font-family: verdana;">E sorri com esperança ao que te desafia.</span></p><p><span style="font-family: verdana;"><br /></span></p><p><span style="font-family: verdana;"><br /></span></p><p><br /></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-68727853795500577692022-06-02T12:37:00.010+01:002023-11-10T13:58:25.698+00:00Pequena História da Desordem <p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Na
Europa, divisão IV Sudoeste, 41560BE acabou de acordar. O som do despertador
padronizado arrancou-o ao sono na hora prevista no sistema integrado de
despertamento e elevação do leito (SISIDEL): sete horas da manhã no horário
europeu unificado, seis horas na antiga hora continental portuguesa. Conforme
ordenado pelo guião, levantou-se, colocou o pé direito no chão e dirigiu-se,
dentro do minuto regulamentar, até à casa de banho. Sabe que se irá demorar
entre 15 e 20 minutos na sua higiene diária. O último relatório do SISIDEL
refere que na divisão IV Sudoeste o tempo médio é 19 minutos e 10 segundos,
muito longe dos 17 minutos e 23 segundos da divisão I nordeste, facto apontado
como uma das causas da baixa produtividade dos países da divisão IV em geral e
do Sudoeste em particular. Retirou a roupa de entre as opções do catálogo
padronizado de indumentária (CAPIN): o número 5, camisa azul e calças bege. O
sistema integrado de rotação e seleção de indumentária do CAPIN (SISROSICA)
estabelece o uso obrigatório de todas as combinações disponíveis a cada mês. O
programa aleatório de seleção de indumentária (POSI) gerou esta opção. Não será
a que mais agrada a 41560BE, mas o regulamento é soberano. No muito improvável
caso de desregulação no sistema, deve remeter o formulário regulador de análise
e descarte de erro (FRADE) que será analisado pela mesa de trabalho especial de
reconversão do erro (MesTRE). Tomou o pequeno-almoço obediente ao guião
metodológico de nutrição matutina (GUIMNUM), cereais e leite de soja.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">O
GUIMNUM prevê a possibilidade de refletir na vida enquanto come, 41560BE
aproveitou a oportunidade já que o guião diário o proíbe no resto da jornada.
Caso tenha pensamentos suicidas, sabe que deve preencher o formulário e enviar
para os serviços de dissuasão da automorte (SERDISAM). Fixou o olhar no branco do leite e o pensamento fugiu-lhe,
nesta curta trégua, para 16192AM, a sua ex-mulher. “Nada mais triste do que um
homem velho e só”, concluiu de modo a evitar incumprir com o GUIMNUM. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Dirige-se
para a porta revendo mentalmente os passos do sistema integrado de basculação
orientada domiciliáriolaboral (SISBOD). </span></span><span style="font-family: verdana;">Por
momentos distraído, quase esquece o registo na aplicação pessoal de movimento
de créditos (APEMOC), entra no sistema de avaliação de desempenho
acordar/despertar (SIADAP) e submete o relatório. Ato contínuo, ouve o sistema
eletrónico destrancar a porta e pode, finalmente, sair. O SISBOD tem sido alvo
de grande evolução e aperfeiçoamento que implicou a eliminação de transportes
redundantes. Havendo alternativas coletivas, o transporte individual foi
suprimido. Constatou-se que o acesso generalizado a esta comodidade,
incentivava a indolência para a qual os povos do Sul têm natural inclinação. Os
poucos que receberem classificações de mérito no marcador identitário de
uniformidade europeia (MIUE) poderão, cumpridos os requisitos de idoneidade e
aplicadas a quotas, ser premiados com um automóvel por alguns meses. 41560BE
teve uma classificação adequada que em nada o pode envergonhar. Dá-lhe acesso à
carruagem de segunda classe, pode ir sentado, o que é mais de que muitos se
poderão gabar. É uma justa recompensa que premeia as reincidentes horas
extraordinárias e permanente obediência. 41560BE nunca forçou o seu dirigente
a preencher um único formulário de negação laboral e reivindicação inoportuna
de direito (FORNLARID).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">No
percurso, assiste ao vídeo obrigatório na carruagem, cumprindo o SISBOD. Os
livros há muito foram proibidos e a conversa altamente desaconselhada, exceto
se trate de observações meteorológicas objetivas e concretas, para isso são
remetidos para os dispositivos móveis de identificação pessoal dados sobre a
precipitação, nebulosidade e temperatura. O vídeo lembra as Regras e apresenta
casos de sucesso de cidadãos sorridentes das várias divisões de Europa que
conseguiram, através do Novo Sistema, alcançar os seus objetivos.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Antes
da Grande Organização e Desenvolvimento (GOD), 41560BE era escritor. O
algoritmo, omnisciente, associou-o ao centro de custos 41583, destruição de
objetos irrelevantes: livros, quadros, estátuas, cada vez mais raros, são
procurados pelas forças da polícia de identificação e recolha de objetos
inúteis (PIROI) e levados ao centro de reaproveitamento e obliteração do
irrelevante (CROI). À medida que se aproxima da paragem, acede ao dispositivo
móvel de identificação pessoal para classificar a viagem. “O sistema depende da
monitorização cidadã constante e do envio de contributos” ouve-se no vídeo,
onde todos sorriem, à medida que pressiona “enviar”.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Chega,
finalmente, ao CROI. O trabalho é importante, como todos os de Europa, assim
dizem os novos manuais escolares. 41560BE veste o uniforme de trabalho e segue,
automaticamente, para o seu posto: fornalha de obliteração do
irrelevante (FOI) n.º 249A. Realiza um primeiro exame ao contentor, muitos
livros, algumas pinturas e uma estatueta. Fixa os olhos na estatueta, com a
inscrição “reprodução de Nice de Samotrácia”. É subitamente acometido pela
memória de uma visita, ainda pequeno, anos antes da GOD, a um museu no local
onde é hoje a Europa, divisão I Centro. Não se recorda do nome do museu, mas a
estátua causou-lhe grande excitação. Como a esta miniatura, faltava-lhe a
cabeça. Ainda assim era bela, no conceito da altura, anterior à reorganização
semântica europeia (RSE). Depois da GOD, o adjetivo belo apenas se tornou
associado aos conceitos de organizado, útil e eficiente. Pega nesse objeto sem
uso e atira-o para a fornalha preenchendo o auto de abate de objeto irrelevante
(AAOI).<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Começa
agora a pegar nos livros. Cada vez mais escassos, ainda vão chegando alguns
vindos de casas inspecionadas após denúncias anónimas. Enciclopédias,
dicionários, manuais de matemática e livros técnicos devem ser encaminhados, reaproveitados
e desmaterializados para a grande nuvem (GN) após envio para o sistema
automático de identificação de obra passível de desmaterialização e tradução
digital (SAIOPDTD). Outros livros que possam causar dano por estimulação da
imaginação, devem ter como destino imediato a fornalha: romances, novelas, contos,
poesia, teatro, ensaios, biografias, etc.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">A
GN foi das maiores medidas da GOD. A eliminação da internet foi um passo seguro
na pacificação e uniformização das tendências opinativas dos cidadãos (PUTOC).
Em substituição criou-se a GN, um recurso com vista a disponibilizar conteúdos objetivos
para a promoção da racionalidade: estudos científicos, entradas de dicionário,
exercícios interativos de matemática, e outros estão ao acesso de todos através
dos dispositivos móveis e fixos de identificação pessoal. Um algoritmo sugere a
cada cidadão os conteúdos que melhor se adequam às suas funções, para que um
agente da PIROI não ocupe o seu tempo com estudos sobre geologia ou um mineiro
com documentários sobre enciclopédias. Há ordem e rigor na GOD, todos
contribuem para que seja perfeita o que demonstra a sua perfeição. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">A
sua mão sente primeiro a comoção, antes mesmo de que os olhos, ansiosos, o
confirmem. Quando olha o livro, lê primeiro o nome do autor, “José Saramago”.
Costume encarado como primitivo, este de escolher um nome para os filhos.
41560BE já esqueceu o seu, mas este nome é-lhe familiar. Seria possível que
também ele se chamasse José? Não consegue responder, mas continua a sentir um
estremecimento inexplicável. “Ensaio sobre a Cegueira”. Será um livro de medicina?
Um espaço inominável, para lá da consciência, é o único que parece reconhecer o
livro. Levanta os olhos, procurando, em vão na brancura do teto uma resposta
para esta agitação. Baixa-os para o chão com a impressão persistente de que
esse branco se manterá, mas não. Distingue no chão vermelho o seu calçado
regulamentar. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Impressionado
com a situação, pondera por instantes submeter um relatório aos serviços de
manutenção da sanidade (SMS), mas, antes que decida o que fazer, já submeteu o
livro para o SAIOPDTD. 41560BE não tomou ainda consciência do que fez, já a
máquina cataloga o livro, traduz para as línguas oficiais de Europa e
disponibiliza na GN. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">O
algoritmo sugere o livro em primeiro lugar aos oftalmologistas. Estes atribuem
uma pontuação elevada no sistema de avaliação de conteúdos da grande nuvem
(SACGN) que leva a que seja também apresentado aos médicos, enfermeiros e, enfim,
a todos. Apesar das proibições, fala-se do “Ensaio sobre a Cegueira” em todos
os lugares. Quem lê, não resiste à urgência de falar sobre o livro, aqueles que
apenas nessa ocasião dele ouvem falar, não conseguem evitar aproximar-se. As
praças das cidades de toda a Europa enchem-se de gente para escutar a razão deste
anunciamento mágico. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Uns
poucos cidadãos cumpridores preenchem FRADEs abundantemente, mas a MesTRE já
não consegue responder a todos. As praças vão-se enchendo de gente, ignorando
sistemas e ordenações. Os CROI são invadidos em toda a Europa por gente que atira os </span></span><span style="font-family: verdana;">APEMOC para as chamas, celebrando a sua destruição com cantos que tinham esquecido</span><span style="font-family: verdana;">. Multidões abraçam objetos antes destinados à fornalha, repetindo palavras proibidas
que o livro fez relembrar: arte, pensamento, criatividade, liberdade, identidade.</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">41560BE terminou o seu pequeno-almoço e olhou por uns instantes a tigela vazia. Suspirou, sentindo o peso costumeiro do seu corpo, presente, pesado. Tinha deixado o pensamento voar longe demais. Como ave amestrada, a sua consciência regressou, com asas douradas, enfim, à sua gaiola. Estava na hora de ir produzir.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><o:p><span style="font-family: verdana;"> </span></o:p></span></p><br /><p></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-73373075361924341382021-12-01T09:35:00.005+00:002021-12-01T09:35:57.732+00:00Atenas III<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;"> Alguns metros quadrados no topo de uma colina, mas o local mais disputado desta zona do planeta. Apenas Jerusalém foi mais cobiçada. Atenienses, espartanos, persas e romanos foram tomando a Acrópole e a cidade. Os nazis também, mas dois rapazes, Apostolos Santas e Manolis Glezos, fizeram o que todos queriam mas o medo impedia: retiraram a bandeira com a suástica, hoje símbolo do ódio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Os templos resistem estoicamente ao tempo. Atena já não tem sacerdotisas, tão pouco Poseidon. Ascendemos pelo Propylaea sem oferendas para Atena, mas ansiosos por um pouco da sua sabedoria.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Finalmente a cidade, finalmente uma noção concreta de Atenas. Pericles terá realmente sido o primeiro político, o primeiro homem de estado. Para que aquilo que se vê da acrópole tenha resistido 2500 anos, era necessário que se construísse o que está no topo. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Depois Sounion, o cabo das colunas. Neste local onde erigiram um templo a Poseidon e Egeu pôs fim à sua vida, em desgosto. Os dois pais de Teseu assistem à sua chegada. O divino conhecedor da sua vitória, o humano, enganado pela cor das velas, a cumprir a profecia do Oráculo de Delfi e a atirar-se às águas. Aqui esperamos pelo pôr-do-sol sentindo o sopro de Poseidon. Algo em mim muda um pouco. A história, quando tem um espaço concreto ganha verosimilhança. E mais uma peça do meu barco é substituída, melhorada talvez. No mar Egeu não vejo velas, brancas ou negras. Mas Teseu, continuando a ser um mito, é mais real. </span></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-71556552606412825252021-11-30T09:21:00.007+00:002022-08-19T16:42:52.567+01:00Atenas II<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: verdana;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHtmwd067Ok17yvK-b7IY3DEXdK8ukYBkee1eYF31WYQuhsCcMdTYw2d6e8OK9d6kvp_g8rOVsmUxPo_j0LAq8BArh0NZYVFe-w0M4Eske1uPuKgWosKil-CmcWqmgDy5fEIH87ZK1VEelL8UP5QKf2v_0bdlPUjWr2Ss0uWoI6jN2q6gVLvw/s4000/1650999093615.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="4000" data-original-width="3000" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHtmwd067Ok17yvK-b7IY3DEXdK8ukYBkee1eYF31WYQuhsCcMdTYw2d6e8OK9d6kvp_g8rOVsmUxPo_j0LAq8BArh0NZYVFe-w0M4Eske1uPuKgWosKil-CmcWqmgDy5fEIH87ZK1VEelL8UP5QKf2v_0bdlPUjWr2Ss0uWoI6jN2q6gVLvw/s320/1650999093615.jpg" width="240" /></a></span></div><span style="font-family: verdana;"><br />Porto de Pireu. Navios do tamanho de edifícios. Vento, muito vento. Mas estes navios não precisam dele, não têm velas.</span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">As pessoas agitam-se na estação de metro. Alguns turistas, mas sobretudo gente que quer ir trabalhar. O metro talvez esteja em greve ou seja pouco eficiente. Uns voltam para trás e vão para o autocarro, as caras mostram desagrado. Eu sento-me à espera. Por uma vez não tenho pressa. Vejo cada pessoa que entra, voltar a sair com a cara mudada pela contrariedade. A meu lado carregam entulho e à minha frente uma senhora segura o seu quiosque para que não voe com o vento. Lembra-me o guerreiro, no longo regresso a Itaca, amarrado ao mastro do navio para ignorar o apelo irresistível das sereias.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">A carruagem foi-se preenchendo. Tomado por um receio de partir, por equívoco, para uma estação longínqua, por instantes um receio maior do que o do vírus que nos faz cobrir a cara, peço ajuda. Sim, vou para o sítio certo, dizem-me. Só aí verifico a ausência total de desinfetantes e o vírus volta a mandar nos meus receios.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Saio da estação à procura de álcool e sou surpreendido pela visão da acrópole que reina sobre a cidade. Milhares de anos de história em cima daquela colina. Daquela rocha. Homens transformados em deuses e deuses que eram como os homens. Hoje reduzidos à sua representação em imans para frigoríficos, porta chaves e outros souvenirs made in China. Ainda procuro Teseu, Thessias, mas não há. Temos os deuses, Aquiles, olhos azuis e reproduções de edifícios moldados nalgum país asiático. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Plaka é um labirinto de ruas concebido para o turista se sentir perdido. Procuramos perder-nos quando viajamos para irmos ao encontro do cliché da autodescoberta, da viagem interior. Para, no falso alívio após o reencontro do caminho, nos sentirmos como Ulisses quando, uma vida depois, reencontra a costa familiar da sua ilha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Em cada esquina, olhando para cima, de novo a acrópole. Parece desafiadora, altiva. Amanhã irei lá estar. </span></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-48795835441772473162021-11-29T11:08:00.003+00:002021-12-03T23:40:40.995+00:00Atenas I<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Uma oportunidade perdida. Aegean como nome de uma companhia aérea grega é isso mesmo, uma oportunidade perdida. Pegasus, Dedalus, Ajax seriam nomes bem mais apropriados. Icarus já não tanto, descolava bem, voava sem problemas, mas era mais fraco nas aterragens e talvez não desse tanta confiança a potenciais passageiros. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Aterrei agora em Atenas num avião cheio de gregos. A cadência da fala próxima dos latinos, mas a fonética menos familiar. Antes de os ouvirmos, não os conseguimos logo identificar. Parecem portugueses alguns, outros espanhóis, outros ainda turcos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Piso com meus próprios pés a pátria dos mitos, numa altura em que, por coincidência, estes me interessam. Sobretudo Teseu, o herói dos atenienses, o homem forte por excelência. São cinco horas em Portugal, aqui sete. Já é noite. Aterro em Atenas de noite. Os placards publicitários num alfabeto que desconheço. Os símbolos sozinhos ou juntos, indecifráveis. Experimento um misto de uma espécie de analfabetismo com o prazer de me deslocar para um lugar longe e diferente. Não saber sequer ler aqui humilha-me e poder estar aqui exalta-me. São sentimentos que guerreiam entre si. Deixa-los, ausento-me de mim para assistir à batalha.</span></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-50854420017820387672021-10-24T14:50:00.038+01:002023-03-13T13:48:10.921+00:00Labirintos<p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: right;"><span style="font-family: verdana;"><i><span style="line-height: 150%;">Sempre chegamos ao sítio
aonde nos esperam</span></i><span style="line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></span></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: right;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">José Saramago<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;"> <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">No tempo em que vivia ainda em sociedade,
estava sempre a desfazer o mesmo equívoco, Teseu, T-E-S-E-U. Numa aldeia em
que, por tradição, é o padre quem batiza os recém-nascidos, seria de esperar
que houvesse gerações inteiras com nomes retirados dos Testamentos, mas não. O
padre citava Homero com o mesmo fervor que colocava nas leituras dos
evangelhos, de maneira que os nomes dos aldeões remetiam, irremediavelmente,
para a civilização helénica. Os amigos de infância de Teseu partilhavam este
infortúnio que os acompanhou pela vida fora. De Apolo a Zeus eram forçados a
soletrar o nome nas repartições públicas, com grande inconveniente e
desperdício de tempo.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Quem, por improvável acidente, se depara
com Teseu, fica surpreendido. Tentar definir a sua idade é um exercício que nos
confunde. A calma e resignação dos anciãos contrasta com uma face que não se
mostra ainda marcada pela passagem dos anos. A sua vida, embora curta, tem sido
rica em acontecimentos, ora milagrosos, ora trágicos. Recorda-os muitas vezes, perseguem-no
durante as noites insones na sua cela. Nas ocasiões em que adormece, vencido
pelo cansaço, revive esses momentos, incapaz de os alterar ou compreender.
Acabou por aceitá-los, o que lhe trouxe algum conforto.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Órfão de mãe e com pai incógnito, viveu a
sua infância, criado pela avó, perto de uma pequena aldeia chamada Monfurado. A
única lembrança que alguma vez teve de quem o pôs no mundo foi o preto de que
se cobria a avó e uma fotografia da mãe em cima de uma cómoda, ornamento único
na sua humilde casa. A avó, Umbelina, já Teseu apenas conheceu como uma sombra
da rapariga capaz de andar de sol a sol, dobrada, a mondar e ainda chegar a
casa com vagar e disposição para resolver os trabalhos domésticos. Um ataque
qualquer sofrido por altura do nascimento do neto, tinha-a deixado com uma
perna “teimosa” e uma parte da cara paralisada. Umbelina era apenas capaz de
meios sorrisos para o neto, numa expressão gasta e carregada pelo luto.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Em volta desta aldeia existe uma serra com
o mesmo nome onde, séculos atrás, viveu uma comunidade de monges no Mosteiro de
Nossa Senhora do Castelo das Covas de Monfurado. Alguns anos depois de
finalizada a construção, veio o grande terramoto, reduzindo-o a ruínas. Grande
parte dos monges abandonou o local, mas outros dos religiosos, da ordem dos
Monges Eremitas Descalços de São Paulo, ficaram a viver em lapas e grutas,
abundantes na serra, para se penitenciarem. Mais do que estarem expostos aos
elementos e à fome, o maior castigo era o silêncio do céu, a ignorância das
ofensas que teriam causado esta punição divina. Ainda hoje, quase engolidos
pela natureza, há vestígios destes monges: as ruínas e as covas. Este lugar tem
exercido grande atração sobre os locais que, quando jovens, inspirados pela
literatura de aventura e pelos heróis do cinema, sentem a tentação de os
explorar.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Também Teseu ouvia este canto de sereia.
Para o afastar, a avó bem inventava elaboradas fantasias sobre monges que ainda
por lá se escondiam, alimentando-se da carne de meninos desobedientes ou ainda estórias
sobre os fantasmas de religiosos que se finaram, soterrados pelas vigas e cujos
lamentos se conseguiam ouvir em noites de temporal. Pretendia a senhora afastar
o rapaz deste lugar perigoso, mas só lhe fazia crescer o desejo de o explorar.
O convento tinha para Teseu, como para os outros habitantes da aldeia, tanto de
assustador como de sedutor. Qualquer rapaz que se quisesse provar homem tinha
que o visitar, sozinho, para mostrar a sua coragem.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Um dia, chegando tarde a casa, ocupado a
apanhar cogumelos e cardos, a avó fez-lhe nova advertência sobre o mosteiro,
imaginando que teria sido talvez esse o caminho que o rapaz tinha tomado. Sem
saber bem porquê, Teseu adotou, nesse instante, a resolução de, no dia
seguinte, se testar na serra. Umbelina não soube desta decisão do neto nem
calculou que foi o seu aviso que o decidiu a alterar o percurso no dia
seguinte. Mesmo que o viesse a saber, não se culparia pelo que aconteceu.
Acreditava em algo que guiava os nossos passos, em lugares comuns como ser a vida
um livro que contém todos os acontecimentos, do nascimento à morte, do qual
vamos apenas conhecendo, vagarosamente, página a página. “Estava escrito” dizia
às vezes, como se soubesse ler, ela que desconhecia todos os alfabetos. “Calha
assim” era o ponto final das conversas sempre que tinha de justificar uma seca
que arruinava as colheitas, ou a morte de um vizinho ainda novo de uma “doença
manhosa”.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Muitas vezes, ao serão, sobretudo no
inverno, quando as noites frias mais convidavam os corpos a juntarem-se junto à
lareira, as chamas a lançarem sombra e fumo pelas suas caras, Umbelina
evangelizava o neto nesta fé. Pouco sucesso obtinha, Teseu rebelava-se. Então
não era ele um homem? Não estava nas suas mãos o que havia de vencer ou perder?
Seria a vida apenas um lançamento de dados à nascença? Não aceitava, com os
seus escassos anos e tanto por viver, não ser ele o senhor do seu destino.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Assim, quando tudo aconteceu, a avó
entendeu que o sucedido foi congeminado por essa força secreta e Teseu percebeu
uma mão invisível a guiá-lo.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">No dia seguinte, lá marchou. Ao entrar,
satisfeito por tornar-se, afinal, um homem, surpreendeu-se por não sentir medo.
Percorreu a igreja despojada dos símbolos e imagens, descansou no claustro que
a vegetação reclamava, aventurou-se na cripta decifrando as pedras tumulares e
subiu os estreitos degraus que conduziam ao cimo do campanário. Comparava a
paisagem que descobria com o que a sua imaginação lhe arquitetara. Percorria-o
um sentimento de familiaridade, como se conhecesse já aquele lugar. Olhando o
sol, deu pelo avançar das horas e decidiu voltar. Antes disso, atraído por uma
pereira brava, decidiu apanhar alguma fruta. Não tinha a certeza de estar a
roubar. Ainda que estivesse, a fruta roubada sempre lhe soubera melhor. Feita a
colheita, apontou em direção à aldeia.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Era o final de um dia de calor e o céu do
poente parecia explodir de cores atrás da serra, a infinidade de tons entre o
laranja e púrpura lembrava outras tantas possibilidades em aberto. A luz
dourada estava no próprio ar que Teseu respirava, confundia-se com o cheiro a
silvados e montado. O rapaz sentia-se fora do tempo. Acomodava, cuidadosamente,
os soromenhos nos bolsos, quando uma vertigem tomo conta dele. Todo o mundo se
agitou e contorceu. O céu do fim da tarde aparecia e desaparecia de repente. Os
pés, mesmo agitados de modo frenético, não alcançavam o chão. Apenas o choque
do seu corpo contra alguma coisa lhe deu a noção concreta do que tinha
acontecido. Abriu os olhos e deu por si dentro de uma cova, a saída a uma
altura impossível. Debateu-se algum tempo com esta realidade, tentou negá-la.
Talvez fosse um sonho e não tardasse muito que a avó o acordasse. As dores que
sentia, bastante reais, apontavam noutro sentido. Sentindo-se de novo pequeno e
tomando consciência das circunstâncias, foi procurando locais onde se agarrar e
apoiar os pés até aceitar que esta escalada estava para além da sua força e
perícia. A humidade tornava a escalada ainda mais difícil. As mãos, feridas e
desesperadas, foram desistindo aos poucos.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Durante duas noites, Teseu esteve naquele
buraco. Sozinho. Pela primeira vez, realmente sozinho. Exposto ao frio e apenas
com um punhado de peras para se alimentar. Não em três frases como aqui. Longas
foram as quarenta horas em que suportou o medo e a fome. Ouviu no vento que
soprava os lamentos e as fúrias dos frades. A escuridão dava forma aos seus
medos pueris, monstros com formas bestiais: touros, serpentes, javalis. Os
primeiros raios da alvorada em vez de consolo, apenas ofereciam alguma luz à
sua situação. As paredes que tateava de noite, tinham agora a forma concreta de
uma prisão, eram reais. A garganta, cansada de tanto gritar, protestava a cada
nova tentativa de encontrar quem lhe pudesse acudir. Consumidas as peras
bravas, a fome instalava-se aos poucos. Sentindo-se enfraquecer e desmotivar,
Teseu começava a resignar-se à inevitabilidade.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Quem, aos dez anos, poderá já conhecer as
facetas todas do destino? A resposta parece óbvia. Se nem no leito da morte grande
parte da raça humana a chega a encontrar, como poderia Teseu tê-las encarado?
Contudo, a morte não lhe era estranha. O retrato da mãe que não chegara a
conhecer lembrava-lhe, todos os dias, que a morte existe. Para combater o medo,
a fome e o tédio, tentava lembrar-se de todas as pessoas que conhecera e tinham
morrido. Procurava recordar o nome de todos os mortos que velara, arrastado
pela avó. Teseu sabia que tinham sido muitos e seriam ainda mais depois dele.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Os pensamentos iam-se sucedendo, cada vez
mais rebeldes, desobedecendo à sua vontade. Imaginava a avó preocupada por ele
não chegar a casa, a procurá-lo cada vez mais desesperada. Depois a receber a
notícia de que fora encontrado ali, sem vida. Angustiava-se por lhe infligir
esta dor e imaginava-se noutro retrato na cómoda, ao lado da mãe.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">O fim deste tormento veio por fim. Teseu
esperava uma morte em figura de gente, como descrita nos contos da avó, uma
morte com quem se podia conversar e mesmo negociar, mas acabou por ser a cara
sardenta de uma colega da escola, Ariadne, que encontrou ao olhar para cima.
Duvidou do que via, habituado a supor vultos e iludir-se com vozes na sua
vigília. A cara desapareceu tão depressa como tinha aparecido, o que parecia
confirmar a ideia de uma aparição, mas Ariadne tinha ido chamar ajuda. Passadas
algumas horas, carregado ao colo, entrava triunfalmente na aldeia. A notícia do
seu resgate correra depressa já que todas as almas do local o procuravam
incessantemente desde que a avó dera o alerta. Todos queriam encontrar o
garoto, alguns por genuína preocupação, muitos por vaidade, como se Teseu fosse
um prémio. Por isso, quando se sabia que tinha sido encontrado, perguntavam
quem tinha sido o autor dessa proeza. Todos acharam estranho que o padre se
risse com a resposta.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Teseu nunca mais quis largar de vista a
rapariga que o tinha salvo. Logo que se restabeleceu, procurava estar junto
dela todos os dias. Na escola, encontrava-a ao intervalo, acompanhava-a a casa,
em silêncio, quando saíam. Levava-lhe fruta da época, colhida no pomar que
tinham perto monte. Às vezes, escrevia-lhe curtos bilhetes ou arriscava poemas
que ela amarrotava e deitava fora. Vivia alheado do resto, apenas Ariadne o
ligava a este mundo. Os instantes em que não estava próximo dela eram ocupados
a recordar a sua figura e as constelações de sardas do seu rosto. A rapariga
acabou por habituar-se a esta presença lacónica e àqueles olhos, sempre
apontados aos seus. Durante anos, Teseu foi uma sombra, que Ariadne tolerava
graciosamente porque parecia compreender que algo os unia.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Um dia, Ariadne surpreendeu o olhar de
outro rapaz, Dionísio, e soube que este a amava. Corou e sorriu-lhe
abertamente. Casaram depois de um curto noivado. Tudo tão rápido que Teseu nem sabia o que pensar, sentia
tremer o chão que pisava. Quando viu os noivos sair da pequena igreja da
aldeia, sentiu-se perdido. Pouco depois, Ariadne mudou-se para Vila Nova, para
longe do rapaz que agora a enfastiava. Mesmo assim, tudo na aldeia lhe fazia
lembrar a cara daquela que o obcecava desde o momento em que tinha renascido.
Pensou em partir, buscar outra terra, outras gentes, mas sabia que isso lhe
não traria alívio. Vagueava pelas ruas da aldeia. Quem o via passar, cabelo em desalinho e ar de quem tinha perdido o tino, metia-se em casa,
corria o trinco e benzia-se. Passava à casa onde viveu Ariadne várias
vezes durante o dia. Havia quem jurasse tê-lo visto, enroscado como um cão
abandonado, a dormir à porta da igreja, onde a vira pela última vez.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Procurando um fim para o seu tormento,
percorreu os quilómetros que o separavam da rapariga. Demorou alguns dias a
encontrá-la, percorrendo as ruas de dia e dormindo onde calhava durante a
noite. Encontrou-a à saída de uma mercearia, carregada de sacos e esperanças:<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">— Ariadne… — o tom entre o lamento e a
súplica.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">— Teseu, o que é que… — o olhar da
rapariga não se erguia do chão desde que o vira. Não havia medo, apenas frio. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">— Não sei, precisava de te ver… Preciso de
te ver — procurou ser determinado, mas a voz falhava.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">— Mas porquê? Porque é que tens que estar
sempre atrás de mim? — Ariadne arrastava a voz para que soasse calma. Respirou
fundo, fechou os olhos e colocou as mãos sobre o ventre, acariciando-o.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Teseu deu por todos os gestos. Conhecia-a
melhor que ninguém. Já a tinha observado a tentar disfarçar a irritação com esta
falsa tranquilidade para, de seguida, explodir em fúria. Por isso, decidiu-se a
dizer tudo de uma vez.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">— A cova! Tu encontraste-me! Tu
salvaste-me! Estás ligada a mim…<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">A fúria prevista impediu-o de dizer o
resto:<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">— Estou ligada a ti? Porquê? Deixa-me! Salvei-te, é verdade, foi por minha causa que saíste daquele buraco, mas parece que... Às vezes desejo nunca te ter encontrado, que tivesses ficado lá e
me... </span></span><span style="font-family: verdana;">—</span><span style="font-family: verdana;"> respirou fundo, canalizando toda a calma que conseguia reunir </span><span style="font-family: verdana;">—</span><span style="font-family: verdana;"> nos deixasses em paz!</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">A conversa terminou assim. Ariadne deixou-o
com estas palavras definitivas. A Teseu nunca mais ninguém ouviu a voz. Decidiu guardar os
seus poucos haveres numa saca e encaminhou-se para o mosteiro. Como os
monges Eremitas Descalços de S. Paulo, também este jovem Teseu se adentrou no
coração da serra. Aí, tomando uma vida de silêncio e contemplação, diz-se que
conseguiu, numa cela do mosteiro, encontrar a paz que lhe faltava desde o dia
em que Ariadne o retirou de onde o destino o esperava.<o:p></o:p></span></span></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: right;">
</p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 12pt;"><o:p></o:p></span></span></p><p></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-33034639346975716712021-10-07T20:42:00.004+01:002021-10-07T20:51:55.425+01:00Fragmento sobre Homeless Giant de Eric Drooker<p><span style="font-family: verdana;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"><span style="font-family: verdana;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh9HM36uFhVC4n2vTQgJcMu0NsRsVJHbeZWZlV_Hgx7Q7G06ihEly7_gkqtKVyQSeORjKsSLwV0Myic_cSwk57e2MbTIKW_WxkdkF-f6A00V1VmnaLBDaGMbQM5twK9F-1NJYxGBA/s700/7a0c667f354688b89ae518a22bc9943b.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="700" data-original-width="543" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh9HM36uFhVC4n2vTQgJcMu0NsRsVJHbeZWZlV_Hgx7Q7G06ihEly7_gkqtKVyQSeORjKsSLwV0Myic_cSwk57e2MbTIKW_WxkdkF-f6A00V1VmnaLBDaGMbQM5twK9F-1NJYxGBA/s320/7a0c667f354688b89ae518a22bc9943b.jpg" width="248" /></a></span></div><p style="text-align: center;"><span style="font-family: verdana;"><span style="font-family: verdana;"><br /></span></span></p><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Segura nas mãos esta frágil luz, é tua!</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Tesouro desdenhado por tantos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Na cidade que dorme, agigantas-te,</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Até que a alvorada te diminua. <br /></span></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-65321314835480209562021-10-06T22:34:00.002+01:002021-10-07T20:52:55.738+01:00<p><span style="font-family: verdana; font-size: 12.8px; text-align: justify;">Das maiores injustiças neste mundo, que parece ser capaz de gerá-las a todo o instante, nada me parece pior do que isto: apresentar-se uma opinião sobre quem não se conhece. Os jornais e outros meios de difamação, mais do que de informação, chamaram-lhe “monstro”. Monstruoso, verdadeiramente monstruoso, é o que lhe continuam a fazer.</span></p><p class="MsoNormal" style="font-size: 12.8px; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Quem o conhece bem, entende o ser doce e sensível que o meu Apolo é. Guardo numa gaveta na minha mesa de cabeceira os poemas que me escreveu, um prodígio de sentimento em forma de sonetos. Gostava que os lessem. Não nego que, em certas ocasiões, deixa de ser ele. Não o faz por vontade própria. Tenho percebido que Apolo é muito nervoso. Lembra uma mola que vai sendo comprimida até ao limite e depois explode.</span></p><p class="MsoNormal" style="font-size: 12.8px; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">É hora de fazer um <i>mea culpa</i>. Sou eu a real culpada. Quantas vezes fui a causadora dessa perturbação? Coisas que poderia ter feito na perfeição caso não fosse tão negligente e desastrada, houve tantas! Dizem que me batia, não nego que seja verdade. Fazia-o por amor, para que eu fosse melhor. O monstro, o verdadeiro monstro, sou eu, Dafne Loureiro. Forcei-o a tudo que fez. Tivesse eu mais cuidado e as coisas não chegariam a este ponto.</span></p><p class="MsoNormal" style="font-size: 12.8px; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">Foi por minha causa que aquele homem morreu. Também o senhor teve culpa, afinal ignorou a sabedoria popular e isso nunca é boa ideia. Com toda a certeza que teria já ouvido: “entre marido e mulher não metas a colher”. O que Apolo estava a fazer, fui eu quem o forçou a isso. Por isso digo, é como se tivesse sido eu a puxar o gatilho.</span></p><p class="MsoNormal" style="font-size: 12.8px; text-align: justify;"><span style="font-family: verdana;">É tão injusto que esteja agora o meu amor dentro de uma cela e se preparem para, a reboque do que se diz e escreve, o condenarem a uma vida na prisão. Não aceito este futuro sem ele. Deixo-vos esta carta de despedida. A ti Apolo, meu querido, prometo que serei melhor na eternidade.</span></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-80609382432750455182021-05-31T14:23:00.007+01:002021-06-16T11:35:23.369+01:00Lê lá isto à avó<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Entro
na sala de espera do hospital. Esta é a zona das visitas, cheia a esta hora.
Uns rostos escondem melhor que outros um sentimento que julgo comum a todos: a
ansiedade. Todos esperam notícias, as melhores como os pais que aqui aguardam pelo momento em que passam a ser avós ou as piores como aqueles que estão à beira de se
tornarem órfãos. Nestes locais a solidariedade é muito subtil. Estamos todos no
nosso mundo, mas irmanados por esse sentimento de preocupação com os nossos. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Esperamos pela autorização para entregarmos os nossos cartões de identificação
e recebermos em troca um passe. De seguida, uns dirigem-se aos elevadores e
outros, pelas escadas distribuem-se pelas entranhas deste monstro. Sigo as
indicações até à Unidade de Cuidados Intensivos. Notei a mudança na cara do
segurança, meu amigo, quando lhe pergunto o caminho. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Lembro-me
dos filmes, das séries de televisão para tentar antever a sala onde estou
prestes a entrar. Imagens filmadas com a câmara aos solavancos, cenas agitadas e
gritos a pedirem unidades de sangue, a gritarem para se afastarem quando empunham
o desfibrilhador. Tudo contrasta com a imagem que encontro quando entro. Uma
calma inesperada. As camas dispostas em coroa. Maquinaria cuja função só posso
supor e que produz o único ruído. Apitos ritmados, espaçados, como código Morse aos meus
ouvidos. Ouço os apitos, mas não os compreendo, como se fossem uma língua estrangeira.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Procuro
a minha avó e depressa a encontro. Está desperta, encostada, parece
reconhecer-me, animo-me com isso. Parece-me bom sinal que me reconheça. Esperava encontrá-la tranquila, mas não me parece. Quando lhe seguro a mão, sobressalta-se. Concentro-me nos detalhes, sei
como são fugidios. Confirmo-o agora, quando recordo, tudo tão vago. Na minha memória, as paredes
não conservam cor alguma, os médicos e enfermeiros são apenas batas sem rostos. Os detalhes que aqui coloco, não tenho a certeza de terem existido ou
de os preencher com a imaginação.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Os
olhos claros da minha avó, parecem ainda mais azuis, às vezes esverdeiam. As
mãos não estão quentes nem com aquele frio arrepiante. Tento falar-lhe sem
palavras, só com a forma como lhe seguro a mão, procuro saber o que me quer
dizer com a forma como segura a minha. Olha em volta, procura talvez por outra
pessoa. Penso que esperaria o meu pai que veio à visita anterior. Pergunto-me
se terá consciência do local onde está. Depois
olha para mim, o seu olhar parece conter urgência, como se o que fosse dizer pudesse redimir o mundo. A custo, articula algumas palavras, mastigadas, difíceis de
perceber: “vai-te embora”. Consigo distinguir os sons, mas não entendo o que
quer dizer. Acabei de chegar, quero vê-la, animá-la e consolá-la e diz “vai-te
embora”. Percebe a minha confusão. “Antes que ele volte, o homem. Ele depois
não te deixa abalar a ti também.” Concluo nesse instante que está confusa, a medicação
deixa-a baralhada. Não é para menos, está nesta sala, com máquinas a apitar,
com boiões de soro e medicação à sua volta, os dedos ligados a cabos e os cabos
ligados a máquinas. Pelo menos assim o suponho, hoje, anos depois. Apenas ela é
nítida, o seu rosto que, para mim, é a personificação da generosidade. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Insiste,
separa as sílabas, ela que nunca aprendeu a escrever mais do que o seu nome,
“vai--te, em-bo-ra”. A estranheza que me provocava sempre ela não saber ler. Eu,
com seis ou sete anos e ela a chamar-me: “Lê lá isto à avó”. Uma carta
das finanças e “Lê lá isto à avó”, uma prateleira de um supermercado e
“Lê lá isto à avó”, uma fatura e “Lê lá isto à avó”, a seguir uma receita e “Lê lá isto à avó”. Ela a ir para a escola,
já reformada ou perto disso para aprender as letras. A treinar os a’s, a
assinar o nome, a caneta e o lápis ferramentas estranhas à sua mão, habituadas
a enxadas, sachos e outras alfaias. Depois a desmotivar-se, a achar-se "burra" e a repetir “Lê lá isto à avó”.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Eu a
dizer-lhe que não me ia embora, que ainda agora tinha chegado e queria vê-la a
melhorar e ir para casa. Ela a afastar os olhos, a rodá-los pela sala a dizerem-me
“Lê lá isto à avó” como se só ela soubesse o que queria dizer
aquela sala, aquelas máquinas, aqueles médicos e enfermeiros. Como se fosse eu
quem não soubesse ler e tivesse de me habituar ainda a este alfabeto. A dizer </span></span><span style="font-family: verdana;">“Lê lá isto à avó”, não porque não soubesse, mas porque eu não sabia. </span><span style="font-family: verdana;">Ela, resignada
por eu ali ficar, com uma expressão descrente a ouvir a minha impressão de que
estava melhor e que, não tardava nada, estava em casa. “Ele deve estar a voltar,
vai-te embora”. O médico entra e diz que os visitantes devem sair. A minha avó,
parece aliviada e diz: “vai-te embora, ele não tarda.” Percebo nessa altura que não se refere
ao médico e saio despedindo-me, confuso enquanto a beijo. À porta, volto-me uma
última vez e vejo que me incentiva a ir embora.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">No dia
seguinte vêm notícias do hospital. Junto as letras todas, e consigo, por fim, ler o que ela
me mostrava. “Lê lá isto à avó.”</span><span face="Arial, sans-serif" style="font-size: 12pt;"><o:p></o:p></span></span></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-3909265859017728592021-02-18T19:01:00.004+00:002021-02-18T19:01:52.244+00:00Dr. Ricardo Papa Gaio<p> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Nunca na história da retórica, de
Górgias a Martin Luther King Jr., alguém demonstrou semelhante domínio da
oratória ou desenhou argumentos de forma tão impenetrável como este de que vos
falo hoje: Dr. Ricardo Papa Gaio.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Como os primeiros sofistas, era
capaz de debater qualquer tema sem preparação: política, futebol, religião… de
tudo falava com propriedade. De tal forma lançava os seus argumentos que os
seus interlocutores ficavam sem conseguir articular palavra, limitavam-se a
deixar sair sons incompreensíveis sem correspondência em nenhuma língua humana.
<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Um dia de trabalho inteiro,
perorava sobre temas diversos com a autoridade de um tudólogo. Especialista
disto e daquilo, do que calhava a vir à conversa e do inusitado. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O Dr. Ricardo Papa Gaio era dentista. De
“milagroso” numa mão e espelho na outra, debruçava-se nas cavidades bocais dos
seus pacientes e, enquanto tratava uma cárie ou fazia uma obturação, discutia o
tema que vinha a calhar nesse dia. De manhã ao final da tarde, depositava
argumentação que ia aperfeiçoando ao longo da jornada de trabalho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Os pacientes, entre os quais se
contava este narrador, pouco mais conseguiam fazer que concordar. Era mais
fácil assentir com a cabeça do que contestar um ponto de vista, especialmente
de alguém que tem uma broca dentro da nossa boca. Contudo, cada vez que traçávamos
uma linha vermelha no debate, demonstrávamos que queríamos contra-argumentar e,
para isso, nos preparávamos para cuspir a água que tínhamos acumulada dentro da
boca, vinha a broca com renovado vigor conduzida pelas mãos do doutor,
subitamente, trémulas. <span style="mso-tab-count: 1;"> </span><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Não havia, assim, direito a
contraditório fosse a discutir um hipotético penalti na área do adversário do
campeão nacional ou a mais recente intervenção do governo na salvação de um
banco. Mesmo que não estivéssemos de acordo, uma mirada rápida aos instrumentos
que tinha na mão e uma tomada de consciência perante a nossa posição de
fragilidade, tornava-nos cautelosos e submissos. Às vezes, acabada a consulta e
ainda com o sabor da anestesia na boca, lá ganhávamos coragem e contestávamos.
Que não era penalti, que os bancos são essenciais para a economia ou que os
ciganos não eram todos bandidos, mas quando, semanas ou meses depois
regressávamos para a consulta, saíamos de lágrimas nos olhos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Quando tentou levar este talento
discursivo para a vida política, o Dr. Ricardo Papa Gaio não obteve o sucesso
que vaticinava para si próprio. Nos debates televisionados, parecia
desorientado por os oponentes lhe darem réplica, desmontarem os seus argumentos
e o ultrapassarem em capacidade oratória. Num dos debates, em que o vi mais
desconcertado, chegou a levar para o estúdio um cortante com que apontava na
direção do adversário no calor do debate.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: helvetica;">Ao fim da quinta eleição perdida,
retirou-se da vida política e voltou ao consultório. Desfeitas as ilusões, só o
passei a ouvir falar do tempo. E não eram grandes discursos, simplesmente
dizia: “está de chuva” se chovia ou “está calor” se realmente estava. E
estávamos sempre de acordo.</span><o:p></o:p></p>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-32153781882059152332020-06-09T12:52:00.004+01:002020-08-17T15:35:14.530+01:00ying-yang<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Os primeiros pensamentos que nos ocorrem numa reflexão por vezes são uma precipitação. O fácil e rápido às vezes pode chegar perfeitamente para uma situação simples, mas o mundo e a humanidade estão cheios de complexidade. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na América, país longínquo, mas sempre presente nos telejornais, George Floyd foi detido por um agente de polícia que usou, manifestamente, excesso de zelo e força despropositada que levou à sua morte. Acontece vezes demais na América, onde os polícias são pouco tolerantes e mais temidos que respeitados, e são-o mais com afro-americanos. Isto não é uma opinião, há dados estatísticos que o comprovam. Por exemplo, um afro-americano tem duas vezes e meia mais probabilidades de ser morto por um polícia que um branco. As mortes por milhão de habitantes às mãos da polícia são o dobro quando se trata de afro-americanos relativamente a caucasianos. E há muitos outros dados que encontrei num site que penso ser insuspeito: www.statista.com. Compreender a indignação de uma boa parte da população com a morte de George Floyd, implica ter uma noção do que é e do que foi a América. Aqui, à distância, nem sempre é fácil. Hollywood mostra-nos uma face glamorosa, mas postiça, os noticiários mostram-nos outra. Ainda assim, é insuficiente. É difícil termos uma perspectiva da diversidade daquele país que é capaz de eleger Trump, mas que também colocou Obama na Casa Branca. É o país do Tiger King e do KKK, mas também de Lincoln e Martin Luther King Jr. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A chegada dos protestos a Portugal veio trazer algumas reacções que, não sendo muito coerentes, devem ser abordadas. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Em primeiro lugar, não há a noção do que é o privilégio. A alguém branco, mesmo nascido numa família com poucos recursos, falta a capacidade de se colocar no lugar de quem tem uma cor de pele diferente. Pode ser uma questão de empatia, mas em tempos de crise, quando somos afetados por problemas sociais, temos tendência para viver na nossa bolha e marginalizar os que são diferentes. Ainda mais quando alguém aparece a responsabilizar os outros pelos nossos problemas. Ou então é uma questão de semântica com a palavra privilégio. O seu significado não é sempre tão linear como parece. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Depois há a questão da bipolarização: os maus e os bons. A obrigatoriedade de escolhermos lados: ou estou com os polícias ou com os bandidos. Como se numa instituição tão grande não houvesse, necessariamente, um número elevado de maus elementos que pertencem a grupos racistas. Certamente que a maior parte são pessoas que seguem uma vocação de proteger e ajudar, mas exigir que os que são racistas sejam responsabilizados e, se possível, expulsos da organização não é atentar contra a dignidade e profissionalismo dos primeiros. É defende-los do mau nome que alguns dão à farda. A única bipolarização que devia existir era entre os racistas e os anti-racistas. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Depois há o folclore das designações. Há os que entendem que a designação de afro-americano é uma invenção do politicamente correcto, esquecendo que veio substituir uma designação extremamente ofensiva como "nigger". Juntam-se depois comparações estapafúrdias como a do cidadão assassinado por um cigano. Como se houvesse comparação entre um homicídio perpetrado por um indivíduo num contexto não conhecido e outro cometido por quem se deveria dedicar a proteger. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Finalmente, aquela que é para mim a questão central, a ideia de que Portugal não é um país racista. Ora, se num país há racistas no parlamento, nas forças da lei e, digo-o com pena, na classe docente, enfim, em toda a sociedade, o país é racista. Isso vê-se todos os dias, até no pacato Alentejo. Vê-se, por exemplo, nos sapos de louça nos serviços públicos, no feed do facebook, nas milhentas páginas de fake news patrocinadas, por ventura, por apoiantes de movimentos racistas e xenófobos, nas caixas de comentários dos jornais, nas anedotas sobre o "preto". É um pequeno racismo, mas está lá e vai crescendo, devagarinho até ficar fora do nosso controlo. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-65483595633952943112020-04-01T15:37:00.011+01:002023-04-06T13:50:29.845+01:00Contos da Quarentena I Confina a mente<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
</div><span face=""><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="color: white;">“</span><span style="font-family: verdana;">Só me falta a farda!” Não conseguiu conter a força do
pensamento de maneira que lhe saiu em voz alta em frente ao espelho. Começava
mais um dia de quarentena e de trabalho para António Oliveira. Apesar de
reformado e fazendo parte dos grupos de maior risco por força da idade, não era
medo que sentia durante esta pandemia. Animava-o uma nova vitalidade, uma
alegria estranha ao ver, nas notícias, os soldados pelas ruas. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Tempos houve, de má memória para António, em que a
tropa na rua era sinónimo de desgraça e degeneração. Mas agora não! Impunham a
ordem que desejava que fosse geral ao país, ao mundo. Durante as horas do dia
em que o corpo não reclamava o descanso, estava na marquise com um olho,
vigilante, na rua, pronto a gritar ordens e imprecações a quem avistasse, e
outro no computador, ligado às redes sociais. Este aparente estrabismo era
alegremente suportado por António que desejava que o livrassem, a ele e aos
outros, desse vício que era a Liberdade, empregando mais músculo na aplicação
de medidas de contenção. “Todos temos que fazer sacrifícios”. Era assim
que colocava as coisas. E, afinal, que sacrifício era este? Ficar em casa,
com todos os confortos da vida moderna: água canalizada, esgotos, eletricidade,
internet! O confinamento nunca foi tão fácil como agora. Com um
telefone ou só com a internet pode-se encomendar de tudo. Fruta,
verduras, carne, peixe, móveis, eletrodomésticos, vinho, medicamentos,
máscaras, álcool gel… Até brinquedos sexuais para os mais pervertidos, António
tinha visto por curiosidade. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Opinava muito, lia bastante, ignorava as notícias
quando os factos reportados não validavam os seus pontos de vista, mas
partilhava muitos rumores e boatos quando eram mais do seu
interesse. Acabara por desenvolver uma capacidade de leitura muito
específica. Não se pode chamar “ler nas entrelinhas”, ia mais além: “ler
nas entreentrelinhas”. Procurar numa notícia um detalhe a que ninguém mais
dava importância e elevá-lo à categoria de parágrafo guia. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Do seu saudoso pai, antigo agente da Polícia
Internacional de Defesa do Estado, herdara não apenas a devoção a São Salazar,
mas também o culto da ordem e do respeito. Enquanto se olhava ao espelho,
procurava nas suas feições vestígios do rosto autoritário do desaparecido progenitor
e concluía que era mais desafortunado por viver nestes tempos. Ao
pai coubera em sorte defender a Pátria da ameaça do comunismo, um
cancro que minava as fábricas e explorações agrícolas. Com que amor pelo Estado
infligia torturas físicas e psicológicas a estes bolcheviques!
Era com espírito de missão que apagava os cigarros nas suas costas ou
lhes arrancava as unhas. Nada melhorava mais a disposição
deste diligente funcionário do que fazer “cantar” um destes vermelhos
à bastonada. Chamavam-lhe “maestro” porque sob a sua “batuta”, todos
acabavam por “cantar” ou então numa cama do hospital. Depois disso,
Tarrafal, lugar do Chão Bom, onde a comida apenas impedia que
caíssem no chão inanimados e os médicos existiam só para assinar
declarações de óbito. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Felizmente que o seu pai tinha sido poupado a estes
tempos. Acabou por morrer cedo, já com o país a festejar
uma pirralha liberdade. Talvez dos nervos que sentia por temer
ser reconhecido na rua por algum comunista dos que tinha
torturado tivesse acelerado a sua partida. Contudo, pensa António, com
alívio, sem remorsos por ter servido o país. A António afligia-o não ter
podido usufruir dessa honra. Tinha feito os 18 anos e estava na tropa quando
veio o destacamento para o ultramar. Guiné. A família via aquilo como uma
sentença de morte. António era enfermiço, não havia doença infantil que o não
tivesse apoquentado e ainda o acompanhava a asma, a rinite e outros achaques
sem fim. Para fazer a recruta, fora o cabo dos trabalhos. Antevendo que António
seria repasto para mosquitos e que o paludismo o mataria mais depressa que as
balas do inimigo, a família empenhou-se em evitar tal fatalidade. O pai era
alguém na polícia política e conhecia as pessoas certas. Sabia muita coisa
sobre muita gente e entre a oferta de favores e a sugestão de uma ameaça,
conseguiu que o filho ficasse pela metrópole. Não teve, assim, o privilégio de
colocar a sua vida entre a pátria amada e aquelas que a queriam ameaçar.<o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">António recordava ainda o confinamento a que o seu pai
fora obrigado durante vários anos após a revolução. Revivia o seu
desanimo ao ver que um homem grande e orgulhoso ia definhando neste abominável
novo mundo. Isso fazia crescer o seu ressentimento para com a Revolução. Lembrava
a quarentena que o pai cumpriu, sem aparecer na rua, a ida para uma aldeia
perdida no mapa em Trás-os-Montes onde ninguém suspeitasse das funções que
desempenhara com tanto zelo, até ao dia em que morreu e António e a mãe
puderam, enfim, regressar ao apartamento vazio no Lumiar. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Lembrava-se e passava a mão pela calva, único vestígio
do cabelo desgrenhado que, contra a sua sensibilidade estética, outrora fora
obrigado a ostentar. Reflete. “eram as máscaras da altura, não se podia sair à
rua de outra maneira.” Eram tempos em que o cabelo curtinho nem a militares
ficava bem visto. As ideias novas saíam, livres, da cabeça e iam deslizando
pelos cabelos, infetando tudo e todos, como piolhos, de novas palavras de ordem
que inspiravam a maior repulsa em António. Cabelo à escovinha e barba aparada
era sinónimo de reacionário e António tinha, na altura, muito medo de que o
identificassem como o filho do PIDE. Hoje, felizmente, pensa, as coisas mudaram
muito. Apareceu finalmente um partido que defende “os portugueses de bem”, que
quer acabar com a “esquerdalha”, que desmonta as mentiras do “jornalixo” e que
aceita todos os que querem acabar com a ameaça vermelha no país: dos
saudosistas do Estado Novo a Neo-nazis todos são essenciais. “Afinal, se a
extrema esquerda pode existir, por que não a extrema direita?!” Tantos anos de
liberdade e ele sem liberdade para dizer o que pensa! Que leveza em poder dizer
que os pretos deviam voltar para África e os ciganos deviam ser exterminados! E
ainda ser aplaudido pelos seus correligionários. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Os dias começavam cedo, tomava um
pequeno-almoço espartano, condizente com a situação, já lendo os destaques do
seu periódico favorito, Alerta da Manhã. Pegava depois no computador
portátil, removendo o sudário de plásticos que o protegiam, para começar o seu
trabalho. Tratava-o com o mesmo desvelo que um atirador furtivo trata a sua
arma. Encontrou uma primeira notícia que lhe chamou a atenção: “Um campo de
refugiados às portas de Beja”. Condicionado para se enervar com a palavra
refugiado, imediatamente abriu a notícia, era afinal sobre ciganos. Ainda
assim, não fora tempo perdido. Clicou em “partilhar” e produziu as
exclamações: “A esta gente nada se lhes pega! O vírus havia era de os levar,
para deixarem de mamar à conta dos nossos impostos!” Ao fim de dez minutos,
verificou, contente, que tinha cinquenta gostos, vários comentários
concordantes e vinte partilhas. Uma onda de prazer percorreu-lhe o corpo, sentimento
inequívoco de dever cumprido. Encontrou depois uma publicação sobre os
mercados de venda de animais para consumo na China, com espécies pouco
ortodoxas para os padrões ocidentais. Nova partilha com a legenda: “Boicote aos
produtos e lojas dos chineses! Raça que não acaba, querem dominar o mundo com
esta doença! Abram os olhos!” Novo coro de aprovação e aclamação. Por
acaso, só por acaso, as notícias eram verdadeiras. António tinha descoberto que
a verdade, nas redes sociais, é sobrevalorizada. Preferia acreditar numa
mentira que lhe agradasse do que numa verdade que lhe fosse amarga. “A
generalidade das pessoas é assim”, refletia, “basta ver como é no futebol,
nunca parece haver falta se o penalti é contra a nossa equipa.” Por isso, mesmo
sabendo que se tratava de uma aldrabice pegada, partilhava as maiores infâmias
sobre os políticos canhotos, sobre ativistas, jornalistas ou aquele que fosse o
inimigo do dia. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">A seguir era a hora dos programas de rádio que
realmente interessavam. As antenas abertas e fóruns públicos. “As pessoas estão
fartas de ouvir falar os doutores e engenheiros, quase todos da extrema
esquerda. É preciso dar a voz aos portugueses autênticos.” Felizmente,
inconsciente da ironia por assim pensar, ele que sempre fora um defensor da limitação
da liberdade de expressão de que a organização de seu pai fora expoente máximo,
lá marcou os números para participar nos dois programas mais populares.
Raramente era escolhido para participar, mas tentava todos os dias. Não
falasse ele e falaria outro António. As pessoas iam perdendo o medo de
chamar bois aos bois. Os temas variavam, mas a António isso era
indiferente. Tinha um guião fixo que apenas necessitava da introdução, essa sim
dependia do tema. O pretexto podia ser futebol, educação, racismo, saúde,
trabalho, pesca, drogas, Europa, o que fosse. António acabaria por falar do 25
de Abril, do fracasso da democracia, da dissolução dos costumes, da
insegurança, das minorias que sugavam o estado social, do marxismo
cultural, da ideologia de género e da corrupção. Quando acontecia entrar em direto, ficava
num estado de excitação anormal que só acalmava muitas horas mais tarde. Sentia
até, apenas nesses momentos, um volume a que já não estava habituado a
crescer-lhe nas calças. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Depois do meio-dia, ouvia a conferência de imprensa
com os últimos dados. Tentava ler nas expressões dos ministros e delegados
de saúde que tipo de novidades vinham relatar. Desejava,
secretamente, que aumentasse o número de infetados e mortos. Quanto
maiores os números, mais sucesso obtinham as suas publicações. Quanto
mais medo, mais fechados ficavam todos. Refletia: “As mais definitivas das
prisões têm sempre o trinco do lado de dentro. Ninguém é aprisionado tão
irremediavelmente como quem o faz de livre vontade”. Pegava nos gráficos e
indignava-se no mundo virtual: “Enquanto não tirarem às pessoas a liberdade de
andarem pela rua, isto não vai ter fim!” Se não era suficiente o medo para
levar ao isolamento, António pensava que devia ser o Estado, pela força.
Se os números calhavam a baixar, era a sorte, a chuva, era a
responsabilidade de alguns cidadãos. Se subiam… bem, se subiam a culpa era dos
deputados de esquerda, viciados na peçonhenta liberdade. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">A seguir ao almoço, alguns dos vizinhos vinham
à rua. Uns passeavam os cães, que ajudavam a morder a solidão, outros
davam pequenos “passeios higiénicos” separados por muitos metros e sem
ajuntamentos. António a todos interpelava, cuspindo-se de raiva, do alto da sua
janela. “Cambada de irresponsáveis! Haviam de ser presos!” <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">De regresso às redes, via que alguém tinha publicado
críticas à classe política e dirigente por não ter aplicado medidas restritivas
mais cedo, as chamadas "sopas depois de almoço". Não era nenhum
especialista, era um antigo colega de trabalho no escritório de contabilidade.
Para António era um calhau com olhos, ainda por cima de esquerda, mas desta vez
estavam de acordo por isso deixou um "gosto" e o seu costumeiro
chiste: “No tempo do Salazar, os políticos eram homens sérios! Agora temos a
extrema-esquerda no poder…” <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Ah, eram dias felizes para António. Ainda mais quando
o Presidente da República e o Primeiro-Ministro anunciaram, por fim, o
endurecer das medidas de contenção. Quem circulasse na rua tinha sempre de ter
um documento que o justificasse. Quem não cumprisse, levava multas pesadas e
penas de cadeia. Faltou apenas a "delação premiada" para que António
ficasse plenamente satisfeito. As ruas, já de si desertas, ficaram ainda mais
vazias. As pessoas que cantavam às janelas desanimavam com o prolongar do
cerco, recolheram-se ainda mais como se a simples visão das ruas, agora
vedadas, lhes provocasse uma angústia insuperável, uma saudade da antiga rotina
que antes lhes parecia desinteressante. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Certo dia, ao executar o seu demorado ritual antes de
dormir, apercebeu-se que se estava a acabar a pomada Viks VapoRub.
António tinha lido algures nas redes sociais que era um medicamento muito
eficaz para prevenir e combater o vírus. Naturalmente, só não era mais
divulgado porque a indústria farmacêutica não tinha interesse em que se
soubesse. As redes sociais pululavam de páginas “pela verdade” que
desmascaravam conspirações de dimensões globais: a rede 5G que controlava o cérebro
da população, a vacina para a enfermidade que iria implantar um chip para
transmitir dados biométricos às grandes corporações, os “Chemtrails” espalhados
pelos aviões que disseminavam químicos pela atmosfera para tornar a população
mais dócil e não questionar os seus líderes reptilianos vindos de outro
planeta. Havia teorias para o menino e para a menina, era à escolha. Sempre que
alguém um pouco mais iluminado chamava a atenção para o absurdo por detrás
dessas ideias, os seus seguidores, mandavam-no, invariavelmente, de volta para
o rebanho. De maneira que, na manhã seguinte, preparou-se com luvas, máscara e
uma garrafa de álcool no bolso e saiu de casa em direção à farmácia com o fito
de comprar alguns frascos. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Ia, feliz por não ter encontrado vivalma no trajeto,
quando foi abordado por uma patrulha da polícia. Dir-se-ia que os dois homens
estavam cansados da situação, enervados por estarem sempre separados das
famílias e expostos aos maiores riscos. Só isso explica que se tenham dirigido
a António, que tinha idade para quase ser seu avô com modos tão rudes: “Olha-me
este! Que é que andas a fazer na rua, ó velho? Mostra lá a tua justificação.”
António empalideceu, não tinha justificação. Começou a explicar que ia comprar
o Viks, que era um método infalível para evitar a doença. Os agentes
começaram a rir, nem disfarçavam o que achavam de António. “Está bem ó
avozinho, diga lá onde mora que vamos levá-lo.” António resistiu, indignou-se,
procurou no telemóvel o artigo para mostrar aos agentes. Estes riram ainda
mais. Chamou-lhes nomes, desrespeitou a farda e trinta por uma linha, até
que um deles perdeu a paciência, atirou-o ao chão com uma facilidade que
António não antevira e o algemou. Colocaram-no no carro à força e levaram-no
para casa. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">À chegada, uma receção surpreendente. Os vizinhos,
todos à varanda. Nas janelas, caras surpreendidas com o
que se via: António saía do carro patrulha algemado
e com a ajuda dos polícias. Foi libertado, mas os seus carcereiros
esperavam que ele se encaminhasse para a porta do prédio. Os vizinhos começaram
então, como que num coro ensaiado, a devolver a António, de uma vez, todos os
impropérios que foram guardando durante a quarentena, numa
enxurrada de raiva artificial, com muito riso contido, que fez o quarteirão estremecer. Entrou
no prédio de cabeça baixa e só saiu para receber a primeira dose da vacina. <o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span face=""Arial",sans-serif" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: verdana;">Nunca mais vi nada publicado por ele nas redes sociais
desde essa altura, mas ainda o vejo todo o dia à marquise, vigilante. Quis-me
vender o computador, estimado como estava e sendo bom o preço, aceitei.
Disse-me que já não lhe dava uso. Foi um bom negócio para os dois. Quando o
liguei pela primeira vez, fui ver o histórico de navegação. A última página que
visitou foi a de um jornal que investiga e denuncia notícias falsas, dizia que
era mentira que o Viks prevenisse ou curasse o vírus.<o:p></o:p></span></span></p><p class="Paragraph SCXW45772236 BCX1" paraeid="{1efdb62f-c661-4fa0-b6fb-4bfe12794aa7}{160}" paraid="895325924" style="direction: ltr; margin-left: 0px; margin-right: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; text-align: justify; vertical-align: baseline;">
</p><p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif"><o:p><span style="font-family: verdana;"> </span></o:p></span></p></span><span style="font-family: verdana;">
</span><p class="MsoNormal"><span face=""Arial",sans-serif" style="font-family: verdana;"> </span></p>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-60921726856126740902020-02-14T17:49:00.000+00:002020-02-14T17:49:54.449+00:00Eutanásia, outra vez<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Há cerca de dois anos, pudemos testemunhar um "debate" sobre a despenalização da eutanásia. Então, como hoje, houve muita argumentação inflamada, inquinada pela emoção e até por crenças metafísicas e religiosas. Decidiu-se, na altura, adiar uma decisão para a legislatura seguinte porque o debate terá sido insuficiente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Hoje estamos na segunda semana de uma campanha, que tem maior a instituição religiosa do país no epicentro, em prol de um referendo. Dizem que durante a campanha para as eleições legislativas não houve uma tomada de posição oficial dos partidos políticos e que, como tal "não podemos permitir que alguns deputados queiram decidir por nós."</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em primeiro lugar, recordo este trabalho do Público (https://www.publico.pt/legislativas-2019/nove-temas-seis-lideres) que questiona os líderes dos principais partidos sobre o assunto, conseguindo uma resposta inequívoca. Em segundo lugar, na nossa democracia é exatamente assim que as coisas funcionam: elegemos um parlamento para que os deputados possam exercer, em nossa representação, o poder legislativo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Depois temos ainda a pergunta que querem propor aos portugueses, formulada de forma demagógica e inaceitável: "Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei em quaisquer circunstâncias?"</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na minha opinião, a despenalização da eutanásia é uma inevitabilidade, um avanço civilizacional inexorável. Vai acontecer mais tarde ou mais cedo, com maior ou menor oposição. Mesmo que algumas instituições religiosas tentem instrumentalizar os fiéis e usem celebrações religiosas para fins políticos, ignorando até Cristo que diz em Mateus 22:21: "Dai pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". A laicidade do Estado não deveria ser um tema em 2020, especialmente quando olhamos para a forma como se vive na maior parte dos estados confessionais que ainda subsistem pelo globo. Um estado laico respeita de igual forma todas as religiões, permite a liberdade religiosa sem que esta se sobreponha às leis do país. Mas deve haver reciprocidade. As instituições religiosas devem também respeitar o funcionamento da democracia. Os fiéis, apesar de serem, alegoricamente chamados de rebanho, podem comportar-se com autonomia e usarem o seu pensamento crítico e livre arbítrio para escolherem as forças políticas que melhor representem as suas convicções.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O CDS, o PCP e o PSD deixaram claro que estariam contra a legalização da eutanásia, ressalvando Rio que haveria liberdade de voto no seu partido. Curiosamente, foram os partidos que mais perderam eleitorado. Não estou a afirmar que haja uma relação direta entre as propostas e os resultados, mas é factual.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Há dois anos, como hoje, penso que é uma questão de valores. Temos em oposição a Vida e a Liberdade. Na minha escala de valores, a Liberdade é mais importante. Os próprios mártires da Igreja sacrificaram a sua vida pela liberdade religiosa. Nisso concordo com os perto de 70 milhões de martirizados que se contabilizam desde os tempos de Jesus.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Acima de tudo, a despenalização da eutanásia reforçará a liberdade. Quem prefere, em determinadas condições, terminar com o sofrimento, pode fazê-lo sem temer a perseguição dos que o auxiliarem. Mas quem se opuser a isso, pode continuar a sua vida até ao fim natural, suportando as dores e o sofrimento de que algumas religiões fazem a apologia. De preferência, devem poder contar com os melhores cuidados paliativos que a ciência puder proporcionar. Já contam com um alívio que não menosprezo, o da fé. A fé pode ajudar os crentes a justificar e aceitar o sofrimento, mas e os que não a têm? Por que razão hão-de ter a obrigação de suportar a dor? </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A lei será aprovada, com ou sem referendo, hoje ou daqui a dez anos e depois resta-nos questionar porque demorámos tanto tempo. </span></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-83906663033012707032020-01-24T13:48:00.005+00:002021-01-31T11:19:13.968+00:00Lourenço<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial;"><span face=""verdana" , sans-serif">"A vida é circular". Era assim que falava. Sentenciava da autoridade dos seus oitenta e alguns anos. "Os que a vêem como uma linha que parece reta, enganam-se". </span><br />
<span face=""verdana" , sans-serif"><br /></span>
<span face=""verdana" , sans-serif">Era difícil perceber a que se referia. Os filhos e netos encolhiam os ombros, certos de que a idade trazia já alguma baralhação natural às ideias. Ao mesmo tempo, surpreendidos. Não era costume ouvir-lhe duas frases seguidas. Mas isso não lhe diminuía o entusiasmo. Não lhe interessava se o compreendiam. Sabia que, um dia, chegariam eles próprios à mesma verdade. De que lhe valia tirar-lhes as certezas? Temos que ser nós próprios a abdicar delas, se tentam que as abandonemos, ainda as agarramos com mais força. </span><br />
<span face=""verdana" , sans-serif"><br /></span>
<span face=""verdana" , sans-serif">E embalava na conversa: "Eu também pensava que era uma linha que se ia apagando no fim, mas vejo agora que não." Com o bisneto ao colo, os descendentes atribuíam também à comoção do momento alguma desordem no discurso. "É um círculo, nós é que estamos tão concentrados no que acontece à nossa volta que não damos pela curva. Só quando as linhas se vão fechando e repetindo, percebemos que não se apagam. Unem-se!" </span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial;"><span face=""verdana" , sans-serif">O único que ouvia e parecia compreender tudo era Lourenço, o bisneto com quase dois meses. Este olhava como quem vê sabedoria nas palavras do bisavô, fixava-o com os seus rasgadinhos olhos claros e inocentes de quem ainda não viu todas as faces do destino. Apercebendo-se disso, José, o bisavô, dirigiu-se a ele: "Eu chego ao fim do círculo e tu começas agora. Se isto não é a perfeição, não a há no mundo!" E dos olhos velhos e cansados, enquadrados por farto sobrolho, escorria afeição, aceitação e contentamento em estado líquido. Lourenço expressava, tanto quanto é possível a um recém-nascido, sentimentos semelhantes. </span><br />
<span face=""verdana" , sans-serif"><br /></span>
<span face=""verdana" , sans-serif">Eram os dois uma ilha naquele mar de ignorância. Partilhavam um conhecimento que, em breve, ao mais velho de pouco serviria e o mais novo depressa ia esquecer. Os outros pensavam em outras coisas: na ceia de Natal, presentes e sabe-se lá em que outras ninharias. "Não te peço que te lembres de mim. Acabaste de chegar e eu estou quase de abalada, mas pergunta por mim. Mantém o círculo fechado sempre. Sem memória, somos como os bichos, somos quebrados. O meu nome, no fim do teu, não basta. Tenta saber de onde vens. Tens de o fazer!"</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">E podia acabar aqui, mas não acaba. Na realidade, continua sempre. Com Lourenço, a abrir nova curva e a dizer ao seu bisneto: "A vida é circular".</span></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-50327957706766650942019-12-18T14:47:00.006+00:002021-05-19T16:24:32.957+01:00A Lenda da Ferrenha<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Da rocha, brota tranquila e solenemente um fio de
água. Um mistério. Uma pessoa fica a olhar e a perguntar-se a sua origem e
porque vem ao mundo naquele lugar. Os locais, durante séculos, têm adorado
aquele sítio. Mesmo hoje, quando lhes basta acionar uma banal torneira em sua
casa e têm água à sua disposição, frequentemente rumam ou romam à Ferrenha para
lhe prestar tributo. A aumentar o fascínio pela fonte, o sabor da sua água que,
certamente, terá contribuído para o seu batismo. Um sabor a metal. Não chega a
ser desagradável, mas quase. A mim, sempre me lembrou, sei lá porquê, o sabor a
sangue novo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Em todos os locais, ouço lendas. Associadas a um
castelo, a um monte, a uma ribeira, a um fragão e, claro, a fontes. Da
Ferrenha, nunca tinha ouvido nenhuma, embora seja um local icónico para qualquer
escouralense. Ir à Ferrenha é viajar nas memórias íntimas e nas memórias
comuns. Seguir a ribeira que ela alimenta, da vila até à nascente, é como retornar
à primeira infância, numa viagem familiar por afetos e lembranças. Um retorno
impossível ao útero materno. Como Bernardim Ribeiro, “ao longo da ribeira que
vai polo pé da serra”, assim vamos, como se aquela ribeira fosse a nossa ligação
à Ferrenha. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Pareceu-me mal vê-la assim, órfã de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">aition</i>, e, acometido de indignação por
esta injustiça, longo tempo pensei em descobrir um mito fundador para esta
fonte. Pensei que pudesse estar ligado à presença dos primeiros hominídeos que
aqui procuraram abrigo. Mas se não escreviam e não deixaram tradição oral, não
me pareceu possível. Ocorreu-me que pudesse estar associado a outro mito, o da
residência do Santo Condestável, D. Nun’ Álvares Pereira, mas estive quase a
desistir dessa ideia também. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">D. Nuno ter-se-á retirado na mesma altura que a vila
foi fundada. Diz-se que foi viver numa casa senhorial no monte que, por isso
mesmo, ficou com o nome de “Cavaleiro”. Porém, após 1423, D. Nuno dividiu as
suas propriedades pelos seus homens de confiança e abraçou a vida monástica.
Não possuindo, apesar de santo, o dom da ubiquidade, não será provável que tenha vivido no Cavaleiro ao mesmo tempo que se internou no Convento do Carmo, de
onde distribuía esmola pelos pobres da capital e cunhava a célebre expressão
“uma lança em África”. Mas a minha pesquisa descobriu que terá vivido no
Cavaleiro ainda antes da fundação da vila.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Num controverso manuscrito apócrifo encontrado nas
ruínas do Mosteiro de Nossa Senhora do Castelo das Covas do Monfurado, dos
Monges Eremitas Descalços de São Paulo, é descrita a vida do santo neste
período. Estes monges fixaram-se, oficialmente, no Monfurado no início do
século XVIII, mas desconfia-se que já por lá viviam há muitos anos, eremitas, nas
lapas subterrâneas da serra. O manuscrito sobreviveu à destruição provocada
pelo grande terramoto de 1755 que arrasou este aziago mosteiro, mas
perdeu-se.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Há quem diga que está
esquecido no Arquivo Nacional da Torre do Tombo ou que foi destruído. Há também
quem diga que é uma fantasia que algum mentiroso ou sonhador tenha inventado.
Ficou, ainda assim, a história conhecida por alguns. Foi-se multiplicando,
passada dentro das famílias, como preciosa herança.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Conta-se, então que, cansado das batalhas em que
passara boa parte da vida, quase tanto como das honrarias e homenagens a que
depois o obrigaram, D. Nuno tomara a mansão no Monfurado como um refúgio. A um
homem como ele, sempre lhe parecera que a guerra era uma obrigação, algo que os
homens fazem uns contra os outros com o fim último de a tornarem o mais breve
possível. O que mais esperava, agora que os Castelhanos tinham feito a paz e
aceite o seu D. João I, era que não lhe lembrassem o horror da guerra. Queria o
esquecimento das ordens que deram para matar e morrer, dos corpos
ensanguentados e sem vida que jaziam no campo de batalha e lhe assombravam as
noites. Odiava até que lhe chamassem Condestável, cargo com que fora agraciado.
No Monfurado, era apenas o senhor. A vida era mais simples. Caçava, lia e
tratava da correspondência que chegava sempre com muita dificuldade.</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Apreciava as caminhadas pela serra, sozinho, contemplando
os vales e a planície que se estendia a partir do Monfurado como um mar imenso
pelo Alentejo fora. Nessas caminhadas, parava sempre numa pequena nascente de
onde a água brotava da rocha. Aí bebia e ficava longas horas até anoitecer. Os
servos encontravam-no, contemplativo e alheado da realidade. Essa água, com
um sabor férreo, era a nascente mais próxima da sua casa e, naturalmente, era
de onde se abasteciam para todos os gastos domésticos, dos banhos à alimentação.
Mas esta água levava-o sempre de regresso ao frémito da batalha, o sabor lembrava os ferros que levantava contra os castelhanos e os seus
partidários, entre eles, alguns irmãos lusos. A água, parecia-lhe ter um sabor
ao sangue que tinha ordenado derramar nos Atoleiros ou Aljubarrota. Foi a fonte
a que o povo deu o nome de “Ferrenha” que levou D. Nuno à decisão de se tornar
carmelita. Entregou o Cavaleiro a um dos seus mais fiéis homens e, embora
mantendo a cota de malha por baixo do hábito, tomou o nome de irmão Nuno de
Santa Maria e entrou, para aquela que seria a sua derradeira morada, o Convento
do Carmo. O irmão Nuno dedicou a vida à mendicidade, pedindo para os pobres,
até ao Dia de Todos os Santos de 1431 em que, na presença d’el Rei e dos
infantes, abandonou este mundo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span face=""verdana" , sans-serif" style="font-family: arial;">Era este, estripado dos detalhes e riqueza da
linguagem, o conteúdo do manuscrito. Muitos questionam, mais que a
autenticidade, a sua existência. Pouco importa para a Ferrenha, que antes de D.
Nuno já lá estava e continua séculos depois. A água da Ferrenha levou D. Nuno à
beatificação, não o deixando esquecer o seu passado. A nós, lembra-nos o nosso,
o sítio de onde viemos. Como a água do Lete, um dos rios de Hades cuja água
provoca o completo esquecimento, só que ao contrário.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-22750410558262220432019-11-27T21:17:00.003+00:002019-12-06T14:11:41.325+00:00Menina Anita<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Quando os sinos começavam a tocar a anunciar a ida de algum
habitante desta para melhor, era quando a menina Anita se sentia mais viva.
Saía à rua a saber quem era o finado. Voltava para casa, aborrecida, se era
alguém com quem tinha pouca lidação ou pessoa com que estava desavinda por
razões próprias ou familiares. Quando era um moço ou moça da sua criação,
parente próximo ou afastado, aí sim! Já tinha planos para o serão. Tinha como
passatempo passar a noite a velar os falecidos e a confortar os seus
familiares.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Solteira e com poucas distrações apropriadas ao estado
civil, suportava melhor o frio ora da igreja ora da casa mortuária, conforme a
notoriedade do morto. Diziam as más línguas, que as há em todo o lado, que era
por ter a cama fria que não lhe faziam diferença essas noites insones e geladas
sentada em frente aos caixões. Só que a menina Anita era bem-avisada, e
apresentava-se sempre com um xaile bem grosso, um gibão quente, uma manta de lã
para pôr aos joelhos e uma almofada para aquecer e proteger o avantajado
traseiro da rijeza das cadeiras de pau. E enquanto os restantes amigos e
parentes do finado, amadores nestas lides, batiam o queixo, estava ela bem
aquecida e até com umas cores nas faces.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Os dias até podiam ser monótonos e tristes, com a
papada encostada ao postigo da sua rua que, por infelicidade, não tinha muito
movimento. Tristes era também os serões nos dias em que calhava a não morrer
ninguém. O telejornal com notícias que sentia não lhe dizerem respeito, uma
telenovela brasileira a que prestava pouca atenção, uma caneca de leite morno e
cama. Mas se havia morto para velar, Anita era mais feliz. Havia conversas para
escutar, viúvas e órfãos a quem confortar e podia olhar à sua volta, analisando
todos os detalhes de cada um, da indumentária à profundidade da dor. Ocupados
como estavam, ninguém daria pelo seu olhar inquisidor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Entrava com um ar de compaixão e benzia-se
cerimoniosamente em frente ao corpo. Olhava a cara do defunto antes de proclamar: "está tal e qual como ele era." Rezava um padre nosso de olhos fechados e,
quando os abria, procurava a família para lhes oferecer os pêsames. Era uma
profissional nesta área, dirigia-se aos cônjuges e aos filhos daquele ou
daquela que ia arrefecendo e, numa voz que evocava lágrimas e lamentos, dizia
solenemente: “os meus sentimentos!” Uma performance digna de nota que ensaiava
muitas vezes no quarto, em frente ao espelho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Não se pense que a menina Anita se acostumou
rapidamente a este labor. Não! A quem é que não custa uma noite fora do
camalho? Foi-se habituando, como um maratonista que começa a ignorar as dores
nos músculos e a vontade de desistir. Fosse acompanhar os mortos um desporto
olímpico e a menina Anita estaria coberta de ouro, apesar da sua compleição pouco
atlética. Nunca fora magra, nem em moça. Os pais eram proprietários de uma venda,
metade taberna e metade mercearia, pelo que tinha sempre maneira de remendar a
fome com que via andar os outros colegas na escola. As irmãs foram casando e
saindo de casa e ela ficou a ajudar os pais e para tia de muitos sobrinhos.
Quando os pais se foram, vendeu tudo, os supermercados na vila grande tinham
acabado com o negócio. Contudo, continuou a atividade da mãe, carpideira
encartada, que chorava baba e ranho por todos, desde o mais próximo dos amigos
àquele a quem, mesmo na véspera, tinha metido as orelhas a arder. Fora
abraçando esse legado e transformara-se, aos poucos, no braço direito da mãe,
que morreu orgulhosa de quem lhe seguisse o mister.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Agora, sozinha, encarregava-se de acompanhar os
finados da vila, já sem os choros nem dramatismos fora de moda. Em vez disso,
tornou-se especialista em tudo o que diz respeito a enterros. Colecionava, com
o mesmo ardor que os garotos amealham cromos de futebol ou calendários de bolso,
os folhetos com imagens dos falecidos. Inspecionava as coroas de flores e
especulava sobre o preço de cada uma delas. Verificava a qualidade da madeira
do caixão, área em que era especialista e discutia, entendida, com os
proprietários da agência funerária. Analisava os rendilhados que amortalhavam
os falecidos. Comparava tudo de enterro para enterro. Vira, a pouco e pouco, a
casa mortuária alterar-se. As velas de cera a darem lugar a umas bizarras
lâmpadas que imitavam as suas antecessoras. O aparelho de ar condicionado, que
tantas discussões causava aos enlutados, fora instalado por cima da cruz,
aquecendo ou arrefecendo as noites.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Às vezes, calhava a entrar, altas horas da noite, numa
modorra provocada pela falta de sono e chegava a alucinar. O cérebro, cansado,
pregava-lhe partidas. Via os fios das extensões elétricas que ligavam as
lâmpadas, serpentear, ameaçadoramente. Outras vezes, o morto parecia acordar de
um longo sono. Pareceu-lhe em certa ocasião que a cruz, de madeira, derretia.
Sabia que nada disso era verdade, que era um truque da imaginação. Chegava a
entretê-la naquelas longas horas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Ocupava também estas noites a planear o seu próprio enterro.
O caixão, tinha decidido, seria de mogno escuro. Mas não era só o caixão. Tinha
decidido todos os detalhes como uma verdadeira especialista. Numa ocasião,
chamou à parte o Sr. Arnaldo, agente funerário que mais trabalhava na vila e
com quem tinha muita lidação, e entregou-lhe um envelope. Eram as instruções
para quando ela própria morresse. O Sr. Arnaldo, ficou atrapalhado, não era
costume ser o morto a decidir estas questões, e ficou também admirado com o
conhecimento que esta senhora tinha sobre o seu próprio trabalho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">A menina Anita começou a notar que cada vez menos
pessoas passavam a noite na casa mortuária. Ouvia-se falar que, noutros sítios,
o morto já ficava sozinho de noite, atrás de uma porta trancada. Escândalo!
Impensável! E, ainda assim, a menina Anita olhava à roda e via cada vez menos
gente noite afora. As caras que a acompanhavam, uma a uma foram também sendo
envoltas nas mortalhas, vestindo as suas melhores roupas e deitadas dentro de
um caixão. Até que, certa ocasião, a menina Anita se viu a acompanhar um morto,
a noite inteira, apenas com o filho do falecido. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">O funeral seguinte foi o primeiro na vila em que a
porta ficou fechada toda a noite. Não causou indignação à menina Anita, não
terá tido já oportunidade de se melindrar. Lá dentro, sem estar acompanhada,
sozinha, passou a sua última noite na casa mortuária.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<br />MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-31411205024024070862019-11-13T19:06:00.004+00:002019-11-14T10:55:54.233+00:00Sueca<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os serões de inverno no monte eram mais curtos. Tinha
de ser assim. O sol que se punha cedo e o frio a isso obrigavam. No verão, o
monte parecia muito diferente. Os homens e mulheres, sentados em cantos
opostos, ao relento, conversavam e riam. Contavam anedotas e episódios que, com
mais ou menos exagero, se tinham passado com eles que começavam sempre da mesma
maneira: “Vou-vos contar uma parte que me aconteceu”. Os garotos corriam por
todo o lado, mais ainda se calhava a lua cheia iluminar com o seu clarão o
montado, tornando visível a silhueta de todas as coisas. Brincavam às
escondidas, à apanhada e a tantas coisas inventadas que nem eles conseguiriam
listar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando o sol começava a ficar mais baixo, os dias mirravam
e a noite caía ainda os habitantes do monte não tinham largado o trabalho, a
rotina mudava. Dentro de cada casa, os chupões tinham sempre lenha a arder e à
volta do fogo, as famílias resistiam pouco tempo a acamalharem-se nos colchões
listados e recheados a palha. Ainda assim, para manter o hábito e porque de
outra distração não dispunham, os quatro homens juntavam-se depois de comerem
as sopas. Na maior parte dos dias, falavam pouco. Eram calados por natureza e
também pouco havia para partilharem que os outros não soubessem já. O inverno
tornava-os taciturnos, cinzentos como os dias frios e húmidos, que tinham que
suportar. Trabalhavam juntos, lado a lado na propriedade do senhor coronel.
Vidas quase iguais no pouco que conseguiam amealhar no final de uma jornada de
trabalho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Apanhavam agora a azeitona. Sabiam que, em havendo boa
colheita e apanhada a azeitona rapidamente, poderiam vir a gozar da
generosidade do senhor coronel. O Natal não vinha longe já e qualquer bónus era
bem-vindo para ajudar a pôr qualquer coisa no sapatinho, mas mais importante, a
pôr qualquer coisa na mesa. Mesmo com os braços doridos de varejar e com o
corpo a pedir descanso, faziam a vontade à cabeça que pedia também uma
ocupação. Assim, juntavam-se para jogar à sueca. As parcerias estavam já
feitas, eram sempre as mesmas para que os perdedores de hoje pudessem ter a
desforra no dia seguinte. Um dos mais velhos era parceiro de um dos mais novos
para misturar experiência e cautela com atrevimento e arrojo na dose certa para
ter sucesso. Como jogavam à sueca, todos esperariam que fossem quatro, afinal
são essas as regras do jogo. Mas, já vamos ver que não.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O Olímpio, era o mais velho dos jogadores. Tinha
passado já cinquenta invernos no monte, mas parecia mais. Tinha um olho baço que
assim estava desde a infância quando uma brincadeira com um pau lhe deixou uma
pua de madeira alojada na vista. O bigode também contribuía para um aspeto que
metia respeito, para não dizer medo. Era um bigode quase aristocrático e talvez
a única coisa de que Olímpio tivesse vaidade. Mas, Olímpio não era o que
parecia. Metia, às vezes, medo aos ratinhos que vinham de longe para ajudar nas
searas. Tremiam perante a sua presença quando se apresentava como o manageiro
para mais tarde descobrirem que tinha um coração mole. Não fugia de discussões
e uma vez mesmo houve uma briga que meteu navalhas. Assim que Olímpio viu o adversário estendido com o sangue a jorrar das tripas, pôs-se da cor da cal e teve que
sair dali. Diziam depois que dera metade das suas jornas daquele mês à mulher
do desgraçado, mesmo tendo sido o outro a puxar primeiro da navalha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O segundo era o Joaquim Zé. Este não sabia dizer a idade
e, sendo dos mais velhos, era dos mais recentes habitantes do monte. Dizia-se
que era arraçado de maltês e o tom moreno da pele parecia confirmar essa ideia.
De todos, era o que contava mais histórias. Algumas verdadeiras, outras
mentiras, certamente, mas todas com o condão de deixar todos a rir e bem-dispostos.
Dizia que tinha crescido junto ao mar, no Brejão. E maravilhava todos a falar do
oceano, os seus olhos verdes iluminavam-se a descrever aquela vastidão de água que
os habitantes do monte nunca tinham visto e nem conseguiam imaginar. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="mso-spacerun: yes;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Havia depois o Vicente, o parceiro do Olímpio. Acabado
de regressar ao monte, vindo da tropa, parecia não ter mais nenhum assunto de
conversa desde que fora às sortes. Fora um menino e viera um homem para gáudio
do pai e desgosto da mãe. A desgraçada via agora o filho emborcar copos de
vinho como se fossem água, a beber medronho como os homens e temia que desse em
beberrolas. O pai ria-se desses temores maternais e dava palmadas valentes nas
costas do moço que se ria também.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O quarto era o parceiro do Joaquim Zé, o Benício. Rapaz
de poucas palavras. Parecia não dar conta das pessoas quando o chamavam e, se
era obrigado a falar, fazia-o sempre tão baixinho que obrigava o interlocutor a
aguçar os ouvidos e fazer força para o entender. Desde pequeno que gostava mais
da companhia das bestas do que das pessoas e tinha mesmo mostrado dotes para os
animais. De maneira que, ficara o arrieiro do senhor coronel. A mãe dele dizia
que era um “paz de alma”, quase parvo, não tinha maldade. Mas o Joaquim Zé respondia
logo “Então vá lá vê-lo a jogar à carta para ver o manhoso que ele é!” <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="mso-spacerun: yes;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Havia ainda um quinto elemento que fazia parte destes serões.
Não era um jogador, mas era presença sempre à mesa onde jogavam. O Ti Armando.
O Ti Armando era sogro do Joaquim Zé e ia já perto dos oitenta anos. Sem poder
já trabalhar, tentava não estorvar durante o dia ocupando-se de uma pequena horta
que tinham junto à ribeira. À noite, para distrair e usufruir de companhia, juntava-se
à mesa para ver o jogo e ouvir as conversas, se as havia. Por respeito aos seus
cabelos brancos, perguntavam por rotina se o Ti Armando queria jogar mesmo sabendo
que a resposta era invariavelmente negativa. Bem, então jogavam eles.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas se o Ti Armando se recusava a jogar, não se negava
nunca a interromper as jogadas para perorar sobre um falhanço de um deles: ou
porque não respeitara o sinal a pedir trunfo do colega, ou porque não contara
as cartas e insistira numa jogada que deu em corte, ou porque devia ter destrunfado
ou por qualquer outro motivo. E repetia sempre no fim: “Já não se joga à Sueca,
como antigamente”. O Joaquim Zé, já com menos educação perguntava de novo se o
Ti Armando queria jogar, ao que ele nem se incomodava a responder, rindo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os únicos momentos de descanso que tinham era quando o
Ti Armando, por causa dos muitos anos e pelo adiantado da hora, adormecia com a
manta aos joelhos embalado pelo jogo de cartas. Se acordava, voltava de
imediato aos seus comentários quanto à falta de talento de Olímpio, Joaquim Zé,
Vicente e Benício para a sueca.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma noite em que as críticas de Ti Armando estavam
particularmente azedas e azedos estavam também os quatro jogadores, deu-se um acontecimento
que havia de ser contado pelas tabernas do Alentejo, de Barrancos a Odemira e
de Almodôvar a Portel. O Vicente enganou-se a dar as cartas, “passou-as” e, em
vez de dar dez cartas a cada um, distribuiu-as mal e um ficou com nove e outro
com onze. Aí o Ti Armando, entre cuspo e gargalhadas, disse tudo como os
malucos. Chamou “burricalho” ao rapaz, disse que já tinha visto fazer todo o
tipo de asneira àquela mesa e que, com tanto jogar, em vez de melhorar parecia
que jogavam pior. Foi de tal maneira que ficaram todos com a cara muito
encarnada e só não responderam porque não se responde a um ancião. Perguntou só
o Joaquim Zé ao sogro, sem descerrar os dentes que a raiva fazia apertar: “Quer
jogar?”. Mas o Ti Armando respondeu apenas: “Não jogo com burricalhos”, insultando
agora todos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando o Ti Armando adormeceu, como era seu hábito, os
parceiros ficaram aliviados e puderam retomar a partida ainda com a humilhação
a arder-lhes nas entranhas. Foi aí que o Benício, o “paz de alma” que “não
tinha maldade” teve a ideia. Estranharam todos o Benício ter uma ideia e mais
estranharam estar na disposição de falar com os três para contá-la. Mal a
partilhou, os outros três abraçaram aquilo com os dois braços e puseram o plano
em prática. Sem fazer barulho, o Vicente tapou muito bem o postigo com um
rodilho para não entrar luz nenhuma, o Olímpio apagou o fogo com um pouco de
água e o Joaquim Zé apagou o candeeiro a petróleo. Rapidamente tudo ficou na
mais absoluta escuridão. Então, sentados nos seus lugares, começaram a bater
com as cartas na mesa, simulando estarem a jogar. Guerreavam uns com os outros
e tudo, levantando cada vez mais a voz a ver se conseguiam que o Ti Armando
acordasse. Finalmente conseguiram. O Ti Armando acorda com o barulho, abre os
olhos e nada vê. Passa a mão pela cara, estica os braços e grita de susto: “Mãezinha,
estou ceguinho!”. Todos desataram a rir, fazendo tanto barulho que as mulheres
vieram a ver o que se passava, trazendo os candeeiros. Só aí o Ti Armando percebeu
o que tinha acontecido. Ficou envergonhado por não ter dado pela marosca que os
moços tinham preparado, mas ao mesmo tempo aliviado. Foi remédio santo, a
partir dessa noite a sueca, no monte, passou a ser um jogo de mudos.<o:p></o:p></span></div>
<br />MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-37735982256201354992019-10-28T19:26:00.002+00:002019-10-28T19:26:35.159+00:00Deusnossosenhormeperdoe
<br />
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Não fazem pouco de mim, que eu
não deixo. Lá porque são mais espertas que eu… quer dizer, mais espertas não
são, tiveram uma vida melhor. Enquanto elas andavam na escola, de bata branca a
aprenderem a tabuada como umas senhoras, andava eu atrás de um rebanho de
cabras e a trabalhar no campo. Havia eu agora de ter saúde?! Andei muito
curvada a apanhar tomate, a mondar e nas searas. As minhas costas ficaram bem
marcadas, que ainda hoje, em mudando o tempo, é dores em cima de dores. Pensam
o quê? Pois!” </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Então minha querida, está boa?
Gosto tanto de a ver, veio também ao panito, não?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Olha lá aquela. Aqueles brincos
são iguais a uns que eu vi na montra da ourivesaria, estavam marcados a 300
euros! Isso não ganho eu de reforma que trabalhei uma vida inteira. Uma
vergonha! Andam aí mostrando e esfregando na cara das pessoas, feitas
imposturonas. Velhacas! Passassem o que eu passei e queria ver se tinham esse
ouro todo pendurado. Eu conseguir andar na vila sem estar toda esburacada e
ainda me chegar para a farmácia e o supermercado, ainda é uma sorte. Se
sobrasse um bocadinho mais… não era preciso muito que eu, habituada a viver com
pouco, ainda consigo poupar, que lá isso a minha santa mãezinha e o meu pai
sempre me ensinaram, ainda mandava arranjar a placa. Custa-me andar com a boca
neste estado que ainda serve de consolação a gente rir com dentes, mesmo com a
barriga vazia ou remediada com uma sopinha. “</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Então minha linda, está
boazinha? Estava agora mesmo a admirar os seus brincos. Muito bonitos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Falsa. Deve ter sido o amigo que
lhos deu. Pensa que não se sabe, mas eu vejo-o sair da casa dela. Espreita pelo
postigo a ver se vem alguém na rua e não me vê por detrás dos cortinados.
Grande puta! Toda a gente sabe. Eu não sou de conversas, mas há coisas que me
fazem impressão, pronto. O homem é casado, e ela a enfiar-se por debaixo dele
sabendo que tem mulher à espera em casa. Para ganhar uns brincos! Há gente para
tudo. O meu era outro assim. Não podia ver mulher à frente e ficava como um
burro no cio. Isso era como o outro. Que só uma vez lhe disse que me parecia
mal. Agora bater-me como depois deu em bater! Ai isso não, santa paciência.
Ainda aguentei uns anos daquilo, até as moças se acabarem de criar e casarem.
Agora, depois de velha, ainda apanhar porrada? Ninguém merece. Passa-se mal uns
tempos que isto já se sabe, os homens sempre ganham melhor e o dinheiro dele
ficou-me a fazer muita falta para orientar uma casa. Mas antes passar por
dificuldades do que levar porrada sempre que ele lhe apetecia.”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Então vizinha, como está o seu
mocinho?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Mocinho! Um drogado. O marmanjo,
uma pessoa olha para ele e, deusnossosenhormeperdoe, mas vê-se mesmo que é um
drogado ou um paneleiro. Ou as duas coisas! Não gosto nada do estilo dele.
Calças justas, cabelo grande e brincos. Diz ela que este ano vai entrar para a
universidade. Deve de ir sim senhora, e eu sou a Brigite Bardot! Mais certo é
entrar para a prisão. Isto são coisas que não podes dizer a ninguém, Leonor,
mas esta gente… era mandá-los todos para o mar num barco com um furo. E mesmo
assim tinhas que estar uns tempos sem comeres peixe, filha. No tempo do Salazar
não se ouvia falar disto! Havia respeito, R-E-S-P-E-I-T-O, olá se havia! Fazia
falta outro. Eu votava nele que aquilo da tortura e da PIDE é conversa dos
comunistas! Gente que nunca gostou de vergar a mola.”</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Então vizinha, amanhã vamos ao
terço? Lá nos encontramos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Vai rezar o terço para quê esta?
Uma maledicente, corta aí na casaca a meia rua. Ainda no outro dia estava eu a
dizer à Jacinta da fruta que esta menina devia ter espelhos lá em casa.
Vieram-me contar que disse à Toninha que eu cheirava mal dos sovacos. Eu!
Cheirar mal! Tomo banho todos os sábados que não vale a pena andar a tomar
banho mais vezes. Não ando a transpirar. Porca é a língua dela que naquela boca
não há ninguém bom. E depois vai à missa e reza feita badalhoca. O que ela
queria era que o padre lhe desse uns apertos que o marido já não tem força para
nada. É um banana que anda a sustentar-lhe os luxos, para andar aí com o cabelo
arranjado todos os quinze dias. E eu só o lavo à da Júlia uma vez por festa que
isto não estica para mais. Tivesse eu um homem com um ordenado como o dela e
fazia mais vista. Aquilo é só toucinho, só o que tem é manzarulhos de carne,
uma bácora bem manteúda. Na excursão que fizemos da INATEL eu bem vi. Era rolos
e rolos de banha por baixo do fato de banho. Comprou um preto para se notar
menos, mas então! Gorda! Nem se compara cá comigo, tivesse eu a placa amanhada
e ainda arranjava um daqueles velhos viúvos que vão nas excursões.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Então senhor Joaquim, está
melhorzinho da constipação?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Velho dum real cabrão! Rijo,
rijo, rijo e só o que faz é queixar-se. Anda ali como o ferro. Ainda vai
enterrar uma macheia deles mais novos antes de ir para a quinta das tabuletas.
Tivesse ele diabetes como eu, ou as articulações no estado em que tenho as
minhas e logo via o que era penar. E a médica de família, aquela bêbada, que
não me manda fazer análises. E ainda diz que eu estou muito bem. Deusnossosenhormeperdoe,
mas isto era ela ter as minhas dores uma semana para ver se aprendia. Quem diz
uma semana diz um mês. Quando a apanho antes do almoço a coisa, às vezes,
escapa. Agora depois de se encharcar na pinga, da parte da tarde, mais vale nem
lá ir. Bêbada! E este velho, cheio de genica que eu nunca vi um velho de 80
anos a fazer o que este faz, a queixar-se de dores. O mal é da idade, sua
carcaça. Eu, com os meus 64 também já vou tendo dores, que é que ele julga?
Vejam lá se me pergunta se estou melhor? Viu-me vir da farmácia com um saco
cheio de medicamentos e nem perguntou se estava doente! Falta de educação, isto
ninguém quer saber de ninguém. Fora tu, Leonor que és uma santa. Todas como tu
Leonor!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<b></b><i></i><u></u><sub></sub><sup></sup><strike></strike><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-9582948155633180632019-10-24T15:57:00.001+01:002019-10-27T10:03:35.328+00:00Açorda <br />
<div dir="ltr">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">A casa está em silêncio. Mas não para Joaquim. Quase na obscuridade, ficciona ruídos passados, no presente. Justapõe realidades. Senta-se no cadeirão da sala, velho e gasto como ele, de olhos fechados para melhorar a concentração. Assim consegue convencer-se melhor que ouve realmente. É um exigente exercício na casa deserta. Da cozinha, imagina um som com uma cadência constante. É o som dos sábados de manhã. Pum, espaço, pum, espaço, pum... O ritmo não é apressado, mas nunca atrasa. A mão responsável pelo som mostra determinação e mestria, hábito feito de muitos anos. É a mão de Umbelina, a sua mulher, que prepara o almoço. É dia de açorda. Bate os alhos e os coentros enquanto coze os ovos e um rabo de bacalhau. Para que o efeito seja perfeito, Joaquim sincroniza o bater do seu coração com esse som que resgata a memória de dias felizes. É com este compasso que a porta se abre, de forma quase mágica, para que outras memórias contagiem o presente.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">
</span><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">São os últimos dias da sua vida, ele pressente-o, tanto quanto é possível a alguém saber que o fim se aproxima. São dias amargos. Mas este mecanismo que descobriu permite que sejam agridoces as horas, longas, que se vão arrastando sem sentido. Com o metrónomo que é o seu coração em funcionamento, aos poucos, vão-se juntando outros sons a esta sinfonia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">
</span><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">Atrás de si, no corredor, o som de crianças a correr, sons quentes de riso e alegria. Poderia ser, diria um cínico, o som de uma motorizada que aumenta e diminui ao ritmo do punho do seu condutor. O vizinho até tem uma Famel bem barulhenta. Mas não é nenhuma motorizada, são os filhos que andam a jogar à apanhada, de novo perto dele. Esquece, por momentos, que andam longe. Estão com as suas novas famílias, sistemas solares nos quais teve o mesmo destino de Plutão, despromovido a planeta anão. Será que às vezes pensam nele? Será que também fecham os olhos e recordam o seu agora velho pai, outrora forte, maior que eles? Emociona-se e quase quebra o encantamento. Retoma o foco no bater do coração e da açorda.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">
</span><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">Ouve agora um novo som. Quem, como nós, vê a cena de fora, poderia pensar que são os pássaros nas figueiras do quintal a fazer a corte às suas companheiras. Mas é a filha, que, no seu quarto, canta. Joaquim nunca gostou particularmente de música. Sempre foi mais apreciador do silêncio e do sossego, mas qualquer coisa sempre se comoveu nele ao ouvir a sua filha cantar. Era a mais nova, tinha uma ligação diferente com o pai. Chamava-lhe “a minha melra” por a surpreender muitas vezes a cantar. Tanto dava a Joaquim qual era a canção. Podia ser uma moda alentejana, um hino da igreja ou uma música popular, daquelas que tocam na rádio, queria era ouvir a voz da filha. A sua melra fechava-se no quarto, a fazer os trabalhos de casa ou a coser, talvez a escrever uma carta a alguma amiga e ele vinha, caminhando ligeiro pôr-se à escuta. Aí ficava até que ela se calasse ou alguém viesse chamá-lo. Quando dava pelo pai, ficava envergonhada, mas sorria quando ele lhe dizia: “que bem que canta a minha melra”.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">
</span><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">Joaquim emociona-se. Umbelina morreu há cinco anos depois de ter estado outros tantos acamada num lar. Os filhos estão longe. Um na cidade grande, o outro Joaquim nem sabe, e a sua melra na Suíça. Uma chamada telefónica por semana. A Joaquim, quase surdo, pouco proveito lhe faz. Na presença das pessoas, ainda consegue ler algum rasto de palavras nos lábios, mas por telefone nada compreende. Às vezes uma entoação que dá ideia de final de conversa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">
</span><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; text-align: justify;">No meio da agitação, perde o foco e os sons desvanecem. Tem que começar tudo de novo. Concentra-se no bater do coração e na açorda que nasce na cozinha, mas não consegue. Não ouve o bater dos alhos. Não sente o bater do coração. Não ouve nada. De repente, do silêncio, uma voz chama. Abre os olhos, inundam-se de luz, está sentado à mesa da cozinha. Umbelina serve-lhe, a sorrir, a maior fatia de pão da açorda. A mesa está posta para cinco, mas só os pratos dos dois têm comida. Joaquim devolve-lhe o sorriso e come com satisfação.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-53028063134876669242019-09-30T19:22:00.006+01:002023-04-14T09:56:22.545+01:00Arco-Íris ao Peito<span face=""verdana" , sans-serif"></span><div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;"><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">O Paulo usava o cabelo grande. Não era moda, não se pode dizer que imitasse
alguém, nos anos 80, naquela região, nem era assim tão comum. Simplesmente,
gostava de o ter assim: cabelo louro e liso pelos ombros. Também a pele era clara,
como se o sol do Alentejo tivesse decidido poupá-lo ao castigo que destinava a
todos os outros. Paulo tinha um ar angelical. Como é sabido, os anjos não têm
sexo, por isso, quem não o conhecia, passava alguns minutos numa perplexidade
que aprendemos a identificar e nos divertia. Viam uma figura andrógina, bonito
demais para ser moço e com feições ligeiramente grosseiras para ser rapariga.
Indecisos entre chamar-lhe gaiato ou gaiata, acabavam, muitas vezes por não
dizer nada e iam-se embora com os dois pronomes entalados na garganta. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Algumas das senhoras idosas, mais espertas que as outras, tentavam sair
airosamente deste impasse e perguntavam: “Como te chamas?” Mas a entoação que
ele dava ao seu nome, fechando a última vogal, deixava-as na dúvida. Teria dito
“Paulo” ou “Paula”? Não conseguiam perceber. Acho que não fazia de propósito,
mas nós divertíamo-nos a ver a confusão que ele provocava. Alguns ainda ficavam
a remoer rancores vindos de preconceitos contra cabelos grandes, como se o
Paulo fosse uma repetição das frustrações que tinham vivido com os seus
próprios filhos que, agora com idade para serem pais do Paulo, tinham sido <i>hippies</i>, com longas guedelhas, sapatos
de plataforma, horríveis camisas de hiperbólicos colarinhos e calças com boca-de-sino.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">No recreio da escola, Paulo gostava de jogar à bola. Não era o primeiro a
ser escolhido quando se faziam equipas, mas também não era o último. Algum
talento tinha para a coisa. Metade das vezes, porém, preferia brincar com as
raparigas às telenovelas, recriando as cenas do capítulo do Roque Santeiro
visto no serão anterior.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Uma observação à indumentária também de pouco servia para que se
conseguisse alcançar qualquer certeza. Paulo, como todos nós, usava a
obrigatória bata branca imposta aos alunos e alunas pelo professor Albino. Para
além da bata, fazia parte do uniforme uma particularidade que servia para
premiar os alunos pelo seu desempenho e motivar para a aquisição permanente do
saber. Todos traziam ao peito um alfinete de dama com várias fitas que contrastavam
com a alvura da bata. Invejávamos o Paulo porque trazia penduradas todas as
fitas, numa infinidade de cores. Uma fita branca para a limpeza, obtida após
análise cuidada das unhas e atrás das orelhas, local onde o sarro era mais
resistente a uma boa esfrega. Uma fita vermelha para a destreza demonstrada no
interrogatório da tabuada. Uma fita amarela para a história, sempre que um
aluno sabia de memória os nomes e cognomes de todos os reis da primeira
dinastia. Uma fita verde para a ortografia, entregue a quem conseguia três
ditados seguidos com zero erros. Mais cores, muitas, para outras tantas tarefas,
deveres e saberes: pontualidade, resolução de problemas de matemática,
caligrafia, criatividade na escrita de composições, presenças na catequese,
enfim, fiquemo-nos por um <i>et cetera</i>. Um autêntico arco-íris
pendurado ao peito que o Paulo e a maior parte de nós mostrávamos com orgulho,
quando havia muitas, ou com vergonha se acaso minguavam.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Um dia, o professor Albino chamou o Paulo ao estrado e disse que lhe iria
retirar a fita branca da limpeza. Burburinho na sala! Estranhámos a situação e
disso demos conta ao colega de carteira que tinha a mesma intenção! Então o
Paulo que era o paradigma da limpeza, sempre com as unhas curtinhas, sem
remelas nos olhos e que, quando estava constipado, limpava o nariz com mil
cuidados e sem nenhum ruído! A sua mesa, magicamente, parecia-nos, nunca tinha
vestígios de borracha, os seus lápis nunca deixavam aparas. Tudo tão limpo e
ordeiro que parecia que nunca era usado. Uma antítese total das nossas
carteiras, sempre escritas, sujas de tinta e todos os vestígios em que os
gaiatos da escola primária são abundantes. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Paulo, humildemente, sem ponta de revolta ou sequer mau humor, perguntou a
razão dessa súbita e inesperada subtração da fita. O professor,
silenciosamente, apontou-lhe para a cabeça. Continuámos sem perceber. O Paulo,
apenas ele, parecia ter adivinhado. Passou as mãos pelo cabelo. O professor
começou a dizer que o cabelo grande era “uma falta de higiene”, que originava
piolhos, que era sinal de desleixo. Perguntei, candidamente, sem vestígio de
ironia, se as raparigas deviam também cortar o cabelo. O professor, confundindo
a minha inocente perplexidade com desafio, ordenou de imediato que me fosse
sentar à janela com orelhas de burro. Concluíu o professor, que “os homens
devem usar o cabelo curto”. Paulo, exposto a todos, baixou a cabeça e começou a
chorar silenciosamente. Isso pareceu irritar o professor que, ato contínuo, lhe
retirou a fita púrpura do bom comportamento dizendo, com um arrependimento
visível a meio da frase: “Um homem não chora”, cujo único efeito foi
multiplicar as lágrimas.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: verdana;"><span style="line-height: 150%;"> </span>Na semana seguinte, o Paulo foi ao barbeiro, a isso os pais o obrigaram
depois de uma conversa com o professor. Não sei se chorou, como na sala, quando
as madeixas louras foram caindo à mercê do pente número dois do mestre Ciladas
e ficou, por fim, frente ao seu reflexo no espelho, com o escalpe a descoberto.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 8pt;"><span style="line-height: 150%;"><span style="font-family: verdana;">Quando voltou à escola, estava irreconhecível. Os grandes olhos claros
pareciam desabitados. O professor fazia-lhe perguntas e ele encolhia os ombros,
indiferente aos castigos, às reguadas e puxões de orelhas. Nem reagia enquanto,
uma a uma, as cores do arco-íris que trazia num alfinete ao peito eram
retiradas como as pétalas de um malmequer. Nunca ninguém mais olhou para o
Paulo na dúvida sobre se seria rapaz ou rapariga. Para nós, garotos, nada
mudou. Estava ali o nosso amigo. Mais triste, mas era ele. Para o Paulo, tudo mudou.
Como mudou para Sansão que, conforme contava o Padre Herculano, perdera as
forças à medida que perdera o cabelo. No professor e nos outros adultos,
parecia ter-se instalado um conforto que antes não experimentavam ao encarar o
Paulo. Era um rapaz que ali estava. Não podia ser outra coisa.</span><span style="font-family: Times New Roman, serif; font-size: 12pt;"><o:p></o:p></span></span></p></div>
<b></b><i></i><u></u><sub></sub><sup></sup><strike></strike><span face=""verdana" , sans-serif"></span><span face=""helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif"></span>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-89289649098024682172019-09-17T18:45:00.002+01:002019-10-08T14:06:27.113+01:00O Mentiroso de Cuba<br />
<div dir="ltr">
</div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Há vários tipos de mentirosos. De todos, destaco dois: o que mente em proveito próprio e o, chamemos-lhe, mentiroso recreativo. Tenho, como muita gente, pouca estima pelo primeiro, sempre atarefado em subir vertiginosamente a escada de um sucesso ilusório e efémero às costas de outros, mas, em relação ao segundo, reservo até alguma admiração. </span><br />
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Deste tipo de aldabrão, o maior de que ouvi falar foi o Lúcio Alves. Viveu há muitas décadas em Cuba, no Alentejo. A mentira deixava-lhe sempre um sabor mais doce na boca. A verdade saía em sons estranhos articulados com as entranhas e que o deixavam como que vazio e sem jeito. De maneiras que era mais frequente mentir que dizer a verdade. Começou por exagerar a realidade, com grande sucesso. As pessoas no café até se calavam e juntavam-se para o ouvir. Quando se foram apercebendo que nem tudo o que luzia era ouro, começaram a dar o devido desconto, mas continuaram a ouvir com interesse e a pagar-lhe um copo. Com o tempo deixou de lhe bastar. Inventava acontecimentos de raiz. Estórias pouco verosímeis, fantasiosas que chegavam a incluir lobisomens e outros medos, mas também acontecimentos banais inspirados em anedotas que ouvia os homens contar na taberna.</span></div>
<span style="font-size: 1,00em;"></span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 1,00em;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Soubesse ele escrever e Cuba passaria a ser o berço de, não um, mas dois talentos literários. Para além de Fialho de Almeida, seria também célebre Lúcio Alves. Porém, analfabeto como era, aguçou-se nele o talento para a oralidade. Dominava uma plateia com pausas dramáticas, sotaques imitados e defeitos na fala simulados.</span></span></div>
<span style="font-size: 1,00em;">
</span>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando o viam chegar, uns reviravam os olhos em busca de paciência para tanta fantasia, outros ficavam ansiosos como os garotos quando, na tourada, soltam o primeiro boi.</span></div>
<span style="font-size: 1,00em;"></span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 1,00em;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Era tolerado por ser aquela espécie de mentiroso que, por muito que compusesse as mais elaboradas aldrabices, nunca resvalava para a difamação, sempre respeitador da honra alheia. Mentiras de alcova, isso nunca! Para esses assuntos, contassem com as beatas à saída da missa e não tinha interesse algum em ceifar em seara alheia. Havia muito quem se ocupasse com os assuntos do coração ou da carne, os quais até considerava abaixo da sua categoria criativa.</span></span></div>
<span style="font-size: 1,00em;">
</span>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O primeiro de abril era para Lúcio como dia de Natal. Um dia em que tendo carta branca, liberdade total sem que ninguém pudesse guardar rancores por ser enganado, preferia recorrer ao adágio popular "com a verdade me enganas". Optava por, durante 24 horas, não se juntar ao coro de mentirosos de ocasião na vila. Narrava apenas as mais inverosímeis histórias, absolutamente verdadeiras, que coleccionava durante todo o ano.</span></div>
<span style="font-size: 1,00em;"></span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 1,00em;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Viam-no chegar e notava-se à légua quando tinha alguma para contar. A velocidade a que caminhava, por mais naturalidade que simulasse, dava a entender uma urgência tremenda em chegar perto de quem o escutasse. Começava com uma pergunta para recolher a atenção dos circundantes: "atão vocemessês sabem da última?" Como nunca ninguém pode ter a certeza, por muito que saiba, de dispor da informação mais recente, a resposta "não" dava azo a mais uma estória mirabolante.</span></span></div>
<span style="font-size: 1,00em;">
</span>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em tempos de fome, as estórias de Lúcio Alves eram um placebo para os cubenses. Não enchiam a barriga, é certo, mas ajudavam a pensar noutra coisa, ainda que momentaneamente. Sabendo disso, e sentindo ele próprio as presas da fome ferrarem-lhe o estômago, depois de uma semana em que apenas açorda condutada com azeitonas lhe tinha passado pelo estreito, criou aquela que seria a sua obra-prima. Estava agachado no bacio quando a ideia lhe surgiu de assalto e não conseguiu conter uma gargalhada. A mãe, mulher séria e pouco dada a risos, ainda perguntou o que era, sem esperar resposta, habituada que estava a desapontar-se com este filho. Levantou-se, limpou-se mal e à pressa e correu porta fora para o Largo do Tribunal. Aí começou a espalhar a sua invenção. Sem conseguir reproduzir a riqueza de detalhes e o colorido da linguagem, este humilde narrador fará aqui um rascunho da paisagem descrita pelo grande mitómano. O comboio das três, entre Alvito e Cuba, tinha colhido um rebanho de borregos, grande número dos quais jazia morto e moribundo junto à linha. Uma grande desgraça, calcula-se, para o pastor que veria subtraído ao seu soldo o preço das cabeças de gado e um contratempo para o proprietário. A estória não teve o sucesso imediato almejado pelo seu autor e sentia que ia esmorecer a qualquer momento. Mas nisto, o Castro chega ao largo e, casualmente, para meter conversa, comenta que o comboio das três chegara com algum atraso. Aí sim! A coincidência fez com que passassem da total descrença para a dúvida, e da dúvida para a certeza, num piscar de olhos. Sem se despedirem conforme mandam as leis da boa educação e movidos pela míngua a que estavam votadas as despensas domésticas, correram todos a buscar uma saca e um bom cutelo para desmanchar carne. Passado menos que um quarto de hora, eram quase três dezenas, junto à linha do comboio, em direcção a Alvito e aos inventados borregos, numa fila ordeira debaixo do sol daquele domingo de Setembro.</span></div>
<span style="font-size: 1,00em;"></span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 1,00em;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Lúcio dir-se-ia extasiado, com um sorriso sardónico, observava. Mas... a eficácia da sua mentira plantou nele também a semente da desconfiança. E se fosse verdade? Não podia ser. Mas e se fosse? Estavam quase trinta homens e mulheres marchando a caminho de Alvito sem que nenhuma prova concreta os movesse? "Se calhar aconteceu mesmo", pensou. Começou então a imaginar. Um ensopado de borrego, batatinhas novas com um pouco de aba, aromatizado com hortelã. Um joelho de borrego assado no forno da padaria, com a carne a descolar-se do osso e a desfazer-se na boca. Sentia-lhe o cheiro e até, quase, o sabor. Por isso, foi. Correu um pouco até alcançar a massa de gente que caminhava ao engano à espera de encontrar os imaginados borregos. </span></span></div>
<span style="font-size: 1,00em;">
</span>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Foi o seu maior triunfo. Nesse dia, Lúcio enganou tanta gente e de maneira tão eficaz que enganou quem nunca esperara enganar, a si próprio.</span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-92157490295056665372019-08-28T15:39:00.000+01:002019-09-30T19:24:36.920+01:00Jadan<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um ano nestas terras parecia muito mais tempo. Aproveitando os raros momentos de solidão, Jadan aproximou-se da porta, descalço e em silêncio, para assistir à alvorada de mais um dia neste país. O nascer do sol deixava adivinhar o calor abrasador no Alentejo. </span></div>
<div dir="ltr" style="font-size: large;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></span></div>
<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na sua terra, o distante Bangladesh, aproximava-se a época das monções. O Ganges iria transbordar do leito causando destruição e dando origem a nova vida, tornando as terras mais férteis. Jadan fora ensinado a respeitar e a sentir-se grato por este trabalho da natureza que os punha à prova para, mais tarde, poderem colher os frutos de tão dolorosa sementeira. </span></div>
<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mas aqui não havia chuva, era outro mundo. As cores eram mais tristes, a água não corria livremente por todo o lado, era bem escassa. As cegonhas eram uma pálida sombra do calau bicórnio e os poderosos tigres não caçavam nestas terras.</span></div>
<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />Há precisamente um ano, Jadan despedia-se dos pais e dos irmãos. Também nessa ocasião acordou mais cedo que todos para ver uma derradeira vez as margens do Ganges e as ruas adormecidas de Sujanagar.<br />Numa família de tantas bocas era preciso que todos trabalhassem e, mesmo assim, quase não chegava para comprar arroz que sossegasse os estômagos. A solução era ir para uma terra distante. Portugal seria a sua nova casa por uns anos, se tudo corresse bem. </span></div>
<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />Via agora, à medida que a luz do sol que se erguia à esquerda e tornava visíveis os contornos de todas as coisas, um imenso mar de plástico, as estufas onde labutava todo o dia. Em breve, estaria no seu interior. De dentro do contentor que partilhava com mais quatro companheiros, ouvia-se já o som familiar de pessoas a levantar-se. Acabava assim este momento só dele. Sem olhar para dentro da sua improvisada habitação, conseguia adivinhar o que se passava. Despertavam apressadamente para tomar um pequeno almoço de arroz cozido, iam à casa de banho apagar da cara os vestígios da noite. Sempre em silêncio, sem conversas entre eles. Os capatazes juntavam-nos ali, pensando que eram conterrâneos. A verdade é que nem falavam a mesma língua. Indianos, tailandeses, vietnamitas comunicavam precariamente.</span></div>
<div dir="ltr" style="font-size: large;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"></span><br /></span></div>
<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No último ano, Jadan, só uma vez por semana, falava a sua língua materna. Ao domingo, só trabalhava de manhã, por isso caminhava cinco quilómetros até à praça da vila onde tinha Internet grátis. Na véspera, carregava o telemóvel para que a bateria lhe não falhasse e ia falar com os pais, ouvir os sons que lhe eram familiares. Tinha também um desejo enorme de falar, de se fazer compreender. Falava do trabalho, da dificuldade em respirar dentro do calor abrasador das estufas, dos pequenos arbustos carregados de azeitonas que cobriam o que restava da planície. De tudo quanto era estranho na terra, dos caracóis que via comerem e das saudades que tinha dos cozinhados da mãe e de brincar com os sobrinhos pequenos. Só não encontrava modo de descrever o que sentia na planície, tão só, num contentor tão cheio. Nada conseguia exprimir este sentimento. </span></div>
<div dir="ltr" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />Houve um dia em que, como se reconhecesse o seu rosto num espelho, ouviu algo que traduzia o que lhe ia na alma. Cantavam, ele não conhecia uma palavra mas o sentimento era, não duvidava, o dele. Na praça da aldeia, homens idosos vestiam trajes iguais. Amparados uns nos outros, soltavam um lamento em forma de canto que o comoveu até às lágrimas. Ali, longe de casa e numa língua estrangeira, homens tão diferentes dele pareciam saber exprimir, com sons, o que Jadan sentia. E sentiu-se grato por isso.</span></div>
MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-12009211917021699862019-07-22T20:05:00.001+01:002019-10-10T20:56:31.639+01:00Desgraça<br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Mexia-se como um animal selvagem.
Como um pequeno mamífero carnívoro de espécie indefinida. Furtivo, ágil e
encolhido, tudo vasculhava com os olhos, mesmo que a sua caça fosse tabaco ou
alguma carteira negligenciada. Os outros fugiam dele e, ao vê-lo, apalpavam os
bolsos e as malas para terem a certeza de que traziam tudo com eles. Os seus
bens terrenos emagreciam à mesma medida que ele. Os irmãos vieram buscar a mãe
a quem prestava atenção apenas no dia em que chegava a sua míngua pensão. Desde
esse momento, a casa foi-se esvaziando. Primeiro a televisão porque pouco
interesse tinham as notícias e a ficção não era, de longe o seu escape
preferido. Depois o fogão, sem uso num canto da cozinha. Quando cortaram a
eletricidade por falta de pagamento, arrancou os fios elétricos e vendeu o
cobre por uns tostões. O mesmo destino tiveram os caixilhos das janelas e as
portas. Colocou um lençol no lugar da porta para ocultar de olhares curiosos a
indigência em que morava.</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Não ignorava os olhares feitos de
iguais doses de repulsa e compaixão. Abraçava a primeira e revoltava-se com a
segunda mesmo que fosse por pena que conseguia uma moeda ou um cigarro de algum
conhecido. Amigos, nenhum. Perdeu-os como aos dentes que foram caindo por falta
de utilidade. Pouco comia. Almoçava uns tempos num lar, irritava-se e era
expulso, depois passava para uma associação, armava fita e não voltava, comia
no refeitório do Centro de Formação, mas insultava as cozinheiras e deixava de
ter que comer. O jantar, dependia do que encontrava no lixo dos supermercados.
Até o cabelo se tornava escasso e os olhos iam-se enterrando cada vez mais nas
suas fundas covas. As suas feições eram ossos sobre ossos. A roupa tornou-se
larga. Lembrava um espantalho que ia perdendo o enchimento de palha. E
espantava todos. Alguma companhia era acidental. A pessoa olhava à volta quando
ele chegava e lembrava-se de alguma urgência repentina a que tinha de atender
para sair apressadamente da sua presença. Por vezes, era necessário pagar
“portagem”. Um cigarro ou uma moeda antes da fuga para o mais longe possível
dele. As conversas que mantinha comigo ou com qualquer outro, invariavelmente,
acabavam num pedido, numa súplica dita num tom, estudadamente ameaçador, no
limite mínimo do ultimato.</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Via-o muitas vezes na estrada. Eu,
de casa para o trabalho ou do trabalho para casa. Ele, numa direção só
conhecida por ele próprio. A pé, junto à berma, mas não muito. Se um carro lhe
batesse era maior o azar do automobilista que o dele.</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">O seu temperamento era como o tempo
de abril. Ora chuvoso e escuro, ora brilhante e quente. Em dias de trovoada,
vinha pelo meio da rua aos gritos, com os dedos do meio de cada mão esticados
num cumprimento ao contrário. Em dias de sol, normalmente com dinheiro na
carteira e a cabeça onde ele gostava de a ter, fazia planos e promessas que
desapareciam com a primeira nuvem. </span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Ninguém sabia dele muitas vezes dias a fio.
Não dávamos por isso imediatamente. Íamo-nos dando conta aos poucos e também
não ficávamos muito tempo a pensar nisso. Quando voltava, às vezes
visivelmente maltratado, a cara arranhada ou a arrastar uma perna, recomeçava o
seu ofício de cravar o próximo onde o tinha deixado.</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Nos dias de maior fúria, perorava
longamente sobre uma entidade abstrata que nunca, ao certo, concretizava: as
doutoras. As doutoras do lar, as doutoras da segurança social, as doutoras do
centro de formação e as doutoras da câmara. Eram como santos a quem se apela em momentos de aflição e a quem se castiga, como à imagem de Santo António
quando não nos vale. A doutora do lar que lhe tinha dito que lavava a roupa. A
da segurança social que lhe garantiu que lhe pagava o arranjo da casa. A
doutora do centro de formação que o autorizou a almoçar todos os dias e a tomar
banho. A doutora da câmara que dizia que havia um subsídio para pagar a água e
luz. A partir do momento em que enunciavam uma possibilidade, ele começava a
cobrá-la, como uma certeza, com juros elevados. Ele farejava-lhes o medo e
insistia sempre mais. Mas havia também aqueles que não o receavam. Os garotos
então, eram terríveis. Latagões na força da idade, com o sangue a pulsar,
frenético nas veias. Era para eles um ritual de passagem à idade adulta e
bruta, dar uma chapada viril no rosto cheio de arestas deste ser.</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Tinha muitos nomes. Ao ponto de
poucos saberem, ao certo, o nome que a mãe lhe deu. Dirigiam-se-lhe no vocativo
“Oh Desgraça!”. Era dos nomes menos antipáticos que usavam. Dizia-se que estava
doente, uns falavam, em segredo, em SIDA, outros em tuberculose ou em anacrónica
lepra. Aumentou com isso o seu ressentimento em relação ao mundo.
Confidenciou-me, como acontecia, às vezes, antes ou depois de cravar um
cigarro, que as pessoas o diziam por maldade ou ignorância. De acordo com ele,
o hábito de revirar os caixotes do lixo à procura de uma refeição, era uma
roleta russa. Tanto podia apanhar alimentos em bom estado ou uma intoxicação
alimentar. Dependia da sorte. Outras vezes, a comida que lhe doavam, leite e
iogurtes sobretudo, azedava já que a sua casa, do frigorífico, só tinha o
espaço onde estava e este jazia, provavelmente, esventrado nalguma lixeira.</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Um dia, abandonou em definitivo o
casebre na pequena aldeia onde morava e mudou-se de armas e bagagens para a
vila. “Armas e bagagens” é uma maneira de dizer. Não trazia nenhum tipo de
armamento e muito menos bagagens, apenas um saco de plástico. Sem pouso certo,
dormia onde calhava, umas vezes na rua, outras numa casa abandonada e devoluta.
Os da aldeia ficaram alegres. Os da vila, nem por isso. Deu-se então um
fenómeno curioso. Ele tornou-se omnipresente. Estava, constantemente, em todo o
lado. Alguém destruiu uma cabine telefónica em Valdoca. “Foi aquela Desgraça”,
proclamavam logo. Riscaram um carro nos Altos. “Quem terá sido?” perguntavam
ironicamente, sabedores da resposta. Viravam um contentor do lixo. “Quem é que
anda sempre aí rondando como uma ratazana?”. Roubaram a motosserra do
Tramalagana, “A esta hora já se está a drogar à conta do dinheiro da venda.”</span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Calhava, às vezes, ser culpado de
duas coisas que aconteciam ao mesmo tempo em sítios opostos da vila. Quando o
confrontavam, nada negava. Para quê dar-se a esse trabalho? Só enfurecia ainda
mais o acusador. Foi à conta disso que morreu. Digo, que o mataram. De golpe
anónimo nas tripas dado sem ninguém esperar, por uma minudência qualquer que,
na verdade, já ninguém lembra. Nem eu, que até tenho boa memória e, quando ela
me falta, invento. </span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Sem que pudesse ser culpado de fazer
isso a si próprio, a guarda foi obrigada a sair do posto para fazer uma
investigação. Uma chatice. Pouco habituados a que as diligências policiais na vila
fosse mais do que procurá-lo e dar-lhe uns calduços. Por falta de experiência nestas
lides, ou por outra razão qualquer, nunca chegaram a nenhuma conclusão. Podia
ter sido qualquer um, mas acabou por não pagar ninguém. </span></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span><span style="font-size: xx-small;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; line-height: 107%; margin: 0px;">Desde esse dia, sobra sempre mais um
cigarro ao final do dia e voltamos a encontrar uma moeda no bolso quando nos
despimos para deitarmos a cabeça, sossegada, na almofada.</span></div>
<b></b><i></i><u></u><sub></sub><sup></sup><strike></strike>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-10063963.post-62798493056364962262019-06-05T17:30:00.002+01:002019-06-05T17:31:02.736+01:00Faenas<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%; margin: 0px;"><span style="color: white; font-family: "verdana" , sans-serif;">Ainda a hora do calor castigava a terra, já iam saindo de casa a
caminho do campo da bola. Uns ainda mastigavam o fim dos lanches, vinham de
todas as pontas da vila, a pé e de bicicleta. Outros vinham dos montes e
lugares da freguesia. Dos oito aos dezoito, davam vida às ruas desertas
"fardados" para jogar à bola. Iam-se chamando uns aos outros de
maneira que, à medida que se aproximavam do campo da bola, engrossavam o caudal
daquele fio de juventude. </span></span></div>
<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%; margin: 0px;"><span style="color: white; font-family: "verdana" , sans-serif;">As mães, às vezes, quando vinham em grupo chamar algum mais
atrasado, sentindo o calor, mentiam e diziam que não estava. Mas passado algum
tempo lá aparecia ele de calção, meias até ao joelho e camisola de algum clube
comprada no mercado. Enquanto não eram em número suficiente para começar a
jogar, ensaiava-se penaltis, meínhos e rodas sem deixar cair a bola. Bola
levantada e alguém dizia "a bola não pode cair, é o mundo". Vaias
para os que a deixavam cair. E para estes gaiatos, a bola era um mundo. Uns com
mais talento para a coisa que outros, mas todos prontos para uma tardada até
que escurecesse ao ponto de não se conseguirem ver ou até que as vozes das mães
soassem, longínquas, a chamar para jantar. </span></span></div>
<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="color: white;"><span style="line-height: 107%; margin: 0px;">"A professora odiou-me, o futebol é a minha vida",
assegurava um deles, destro, com dois pés esquerdos. O campo era de terra
batida, com tabelas. Quando chovia, era perfeito. Arriscavam-se entradas de
carrinho, pontapés de bicicleta e outras acrobacias sem medo de esfolar os
joelhos ou os cotovelos. Saíam todos enlameados. Se acaso, acabava a partida e
havia um com a roupa ainda impecável, tinha que ir ao chão para ficarem todos
irmanados, envoltos na mesma lama. No Verão, tornava-se duro como pedra e, pelo
menos no princípio, eram mais cuidadosos. Passavam a bola, quando tinham pela
frente um daqueles que davam "no osso".</span> Era demasiado
arriscado tentar uma revirenga ou uma faena.</span></span></div>
<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%; margin: 0px;"><span style="color: white; font-family: "verdana" , sans-serif;">Quase sempre eram mais de quinze. Escolhiam-se três capitães que
selecionavam a equipa. Os restantes na bancada, à sombra, à espera de serem
chamados. Ansiosos por saberem qual era a sua equipa, com medo de serem dos
últimos a serem escolhidos. Às vezes, o orgulho inteiro colocado em causa
quando ninguém queria um "cepo" no seu grupo. Bota fora a dois golos.
Ninguém queria ir à baliza, "vai um golo cada um", era a solução. À
vez, ocupavam resignados o posto desejosos de sofrerem um golo.</span></span></div>
<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%; margin: 0px;"><span style="color: white; font-family: "verdana" , sans-serif;">Um remate desenquadrado, a bola subia, ressaltava na rede e ia
por cima do muro para o meio das vacas. Pausa para descanso enquanto o
rematador subia o poste ou negociava com outro mais ágil o resgate da bola no
meio da manada.</span></span></div>
<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%; margin: 0px;"><span style="color: white; font-family: "verdana" , sans-serif;">Ao final da tarde, distinguiam-se já a custo os vultos. As
pernas cansadas, já sem força arrastavam-se, um ou outro acometido por cãibras,
os pés doridos de tanto chutar e correr. Alguém gritava: "quem marcar este,
ganha" e iam-se buscar forças onde havia exaustão. De repente, uma final
da Liga dos Campeões. Golo e, à vez, glória e desilusão. E voltávamos para casa
com a certeza de que se repetiria. Repetiu-se muitas vezes, menos na última que
não me lembro. Mas sei que nenhum de nós tinha a consciência de que seria aquela
a última vez que fazíamos daquele lugar o nosso santuário, em que comungávamos
daquela alegria simples de jogar à bola. A última vez em que alguém gritava
"grande faena". </span></span></div>
<span style="color: white;"></span><br />
<div style="margin: 0px 0px 10.66px; text-align: justify;">
<span style="line-height: 107%; margin: 0px;"><span style="color: white; font-family: "verdana" , sans-serif;">Acabou, como tudo irremediavelmente acaba, também para o próprio
campo da bola. As redes e as paredes foram tiradas, os muros caíram, a bancada
já não existe, há um poste de eletricidade no meio do campo. Para quem não
conheceu o sítio, não há quem possa suspeitar o que ali se passou. Mas para
nós, que o vivemos, nunca será outra coisa que não o nosso campo da bola.</span></span></div>
<b></b><i></i><u></u><sub></sub><sup></sup><strike></strike><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"></span>MARhttp://www.blogger.com/profile/03818778429971821756noreply@blogger.com0