Monday, November 20, 2017

Três Pulos


Olhando para fora da sala, Mauro entra no seu mundo interior. Não é necessária uma janela para esta fuga. Pode sair enquanto olha perdido para o quadro preto e para o professor que sobre o estrado fala de história ou de contas de multiplicar. Acontece, às vezes, Mauro sumir-se fixando o crucifixo que contempla, de cima para baixo, os alunos do professor Albino.

Ninguém sabe onde está o Mauro. Em boa verdade, nem ele sabe onde o leva a viagem. Lembra um sonâmbulo, caminhando vendo e não vendo a estrada que separa o Monte dos Três Pulos da vila do Escoural. Mochila às costas, fato de treino vestido e um olhar indecifrável. Às vezes nem se apercebe que já passou o cemitério ou o pavilhão da cooperativa. Nem mesmo nota que o chão que tem debaixo dos pés deixou de ser de terra batida, alcatroado ou empedrado.

Quando chega à escola vem ainda envolto em sonhos. Não há transporte desde o monte à vila. No Inverno encolhe o seu pequeno corpo debaixo de um guarda-chuva enorme. No Verão uma boina vem, como coroa, sobre os seus cabelos ralos e louros. Mauro é um ser estranho para os colegas. Um rapaz de aspeto frágil, esbranquiçado e enfermiço num local de moços robustos e trigueiros.

 Os seus olhos claros parecem gastos e criam estranheza por os encontrarmos num gaiato de sete anos. São os olhos que esperaríamos encontrar num idoso que viu muita coisa e chorou muitas dores. Mas a verdade é que, quando o vemos parado a olhar, só podemos especular sobre o que vê realmente.

Calculo que o seu imaginário seja parecido com o meu, tirando o facto de eu saber que o monte onde mora o Mauro não tem televisão. Por isso sei que ele não sabe quem é o Tom Sawyer, o Bocas, o MacGyver ou o Tintin. Ele também não tem grande desembaraço a ler por isso antevejo que não conheça os livros de quadradinhos da Disney traduzidos para português do Brasil. O que tenho em comum com ele, de certeza, é a proximidade dos avós e as histórias que nos contam. Deduzo isso quase trinta anos depois enquanto vou lembrando e contado. Mauro usava muitas vezes palavras que o resto dos gaiatos daquela idade já só ouvia aos avós: “ontiágora” que queria dizer “há pouco tempo”, “bucha” que queria dizer “lanche”, “pucro” que queria dizer “caneca” e outras expressões que compreendíamos, mas não reproduzíamos.

Brincávamos muitas vezes e, no recreio, o Mauro nunca era o Mauro, o seu nome era “Três Pulos”, o nome do monte onde morava. “Quem vai à baliza?” era a pergunta que iniciava qualquer desafio de futebol. “O Três Pulos” era a resposta pronta que eu ou outro gaiato tinha. E ele lá ia, sem reclamar, sem mostrar contentamento ou nervosismo para o posto. Quando calhava alguém a querer ir à baliza, Mauro já não jogava. Sentava-se encostado à parede a apanhar sol, com uma mão em pala sobre os olhos, conformado.

Acontecia muitas vezes ao Mauro urinar-se. Muitas vezes, mesmo. É normal porque ele não estava cá para sentir a urgência de ir aliviar-se à casa de banho. Parecia perplexo quando a minha mãe, a auxiliar lhe ralhava e o fazia regressar desse seu sítio. Invejava-o às vezes, mesmo quando sentia o cheiro ácido a urina com que ficava o resto do dia quando se descuidava de manhã. Invejava-o porque o sítio para onde ele saía devia ser realmente fantástico para nele se demorar tanto e parecer tão pouco interessado nas coisas deste mundo.

Nunca mais vi o Mauro nem nunca mais ouvi falar dele. É normal, provavelmente saiu em definitivo para lá.