Wednesday, December 18, 2019

A Lenda da Ferrenha


Da rocha, brota tranquila e solenemente um fio de água. Um mistério. Uma pessoa fica a olhar e a perguntar-se a sua origem e porque vem ao mundo naquele lugar. Os locais, durante séculos, têm adorado aquele sítio. Mesmo hoje, quando lhes basta acionar uma banal torneira em sua casa e têm água à sua disposição, frequentemente rumam ou romam à Ferrenha para lhe prestar tributo. A aumentar o fascínio pela fonte, o sabor da sua água que, certamente, terá contribuído para o seu batismo. Um sabor a metal. Não chega a ser desagradável, mas quase. A mim, sempre me lembrou, sei lá porquê, o sabor a sangue novo.

Em todos os locais, ouço lendas. Associadas a um castelo, a um monte, a uma ribeira, a um fragão e, claro, a fontes. Da Ferrenha, nunca tinha ouvido nenhuma, embora seja um local icónico para qualquer escouralense. Ir à Ferrenha é viajar nas memórias íntimas e nas memórias comuns. Seguir a ribeira que ela alimenta, da vila até à nascente, é como retornar à primeira infância, numa viagem familiar por afetos e lembranças. Um retorno impossível ao útero materno. Como Bernardim Ribeiro, “ao longo da ribeira que vai polo pé da serra”, assim vamos, como se aquela ribeira fosse a nossa ligação à Ferrenha.

Pareceu-me mal vê-la assim, órfã de aition, e, acometido de indignação por esta injustiça, longo tempo pensei em descobrir um mito fundador para esta fonte. Pensei que pudesse estar ligado à presença dos primeiros hominídeos que aqui procuraram abrigo. Mas se não escreviam e não deixaram tradição oral, não me pareceu possível. Ocorreu-me que pudesse estar associado a outro mito, o da residência do Santo Condestável, D. Nun’ Álvares Pereira, mas estive quase a desistir dessa ideia também.

D. Nuno ter-se-á retirado na mesma altura que a vila foi fundada. Diz-se que foi viver numa casa senhorial no monte que, por isso mesmo, ficou com o nome de “Cavaleiro”. Porém, após 1423, D. Nuno dividiu as suas propriedades pelos seus homens de confiança e abraçou a vida monástica. Não possuindo, apesar de santo, o dom da ubiquidade, não será provável que tenha vivido no Cavaleiro ao mesmo tempo que se internou no Convento do Carmo, de onde distribuía esmola pelos pobres da capital e cunhava a célebre expressão “uma lança em África”. Mas a minha pesquisa descobriu que terá vivido no Cavaleiro ainda antes da fundação da vila.

Num controverso manuscrito apócrifo encontrado nas ruínas do Mosteiro de Nossa Senhora do Castelo das Covas do Monfurado, dos Monges Eremitas Descalços de São Paulo, é descrita a vida do santo neste período. Estes monges fixaram-se, oficialmente, no Monfurado no início do século XVIII, mas desconfia-se que já por lá viviam há muitos anos, eremitas, nas lapas subterrâneas da serra. O manuscrito sobreviveu à destruição provocada pelo grande terramoto de 1755 que arrasou este aziago mosteiro, mas perdeu-se.  Há quem diga que está esquecido no Arquivo Nacional da Torre do Tombo ou que foi destruído. Há também quem diga que é uma fantasia que algum mentiroso ou sonhador tenha inventado. Ficou, ainda assim, a história conhecida por alguns. Foi-se multiplicando, passada dentro das famílias, como preciosa herança.

Conta-se, então que, cansado das batalhas em que passara boa parte da vida, quase tanto como das honrarias e homenagens a que depois o obrigaram, D. Nuno tomara a mansão no Monfurado como um refúgio. A um homem como ele, sempre lhe parecera que a guerra era uma obrigação, algo que os homens fazem uns contra os outros com o fim último de a tornarem o mais breve possível. O que mais esperava, agora que os Castelhanos tinham feito a paz e aceite o seu D. João I, era que não lhe lembrassem o horror da guerra. Queria o esquecimento das ordens que deram para matar e morrer, dos corpos ensanguentados e sem vida que jaziam no campo de batalha e lhe assombravam as noites. Odiava até que lhe chamassem Condestável, cargo com que fora agraciado. No Monfurado, era apenas o senhor. A vida era mais simples. Caçava, lia e tratava da correspondência que chegava sempre com muita dificuldade.

Apreciava as caminhadas pela serra, sozinho, contemplando os vales e a planície que se estendia a partir do Monfurado como um mar imenso pelo Alentejo fora. Nessas caminhadas, parava sempre numa pequena nascente de onde a água brotava da rocha. Aí bebia e ficava longas horas até anoitecer. Os servos encontravam-no, contemplativo e alheado da realidade. Essa água, com um sabor férreo, era a nascente mais próxima da sua casa e, naturalmente, era de onde se abasteciam para todos os gastos domésticos, dos banhos à alimentação. Mas esta água levava-o sempre de regresso ao frémito da batalha, o sabor lembrava os ferros que levantava contra os castelhanos e os seus partidários, entre eles, alguns irmãos lusos. A água, parecia-lhe ter um sabor ao sangue que tinha ordenado derramar nos Atoleiros ou Aljubarrota. Foi a fonte a que o povo deu o nome de “Ferrenha” que levou D. Nuno à decisão de se tornar carmelita. Entregou o Cavaleiro a um dos seus mais fiéis homens e, embora mantendo a cota de malha por baixo do hábito, tomou o nome de irmão Nuno de Santa Maria e entrou, para aquela que seria a sua derradeira morada, o Convento do Carmo. O irmão Nuno dedicou a vida à mendicidade, pedindo para os pobres, até ao Dia de Todos os Santos de 1431 em que, na presença d’el Rei e dos infantes, abandonou este mundo.

Era este, estripado dos detalhes e riqueza da linguagem, o conteúdo do manuscrito. Muitos questionam, mais que a autenticidade, a sua existência. Pouco importa para a Ferrenha, que antes de D. Nuno já lá estava e continua séculos depois. A água da Ferrenha levou D. Nuno à beatificação, não o deixando esquecer o seu passado. A nós, lembra-nos o nosso, o sítio de onde viemos. Como a água do Lete, um dos rios de Hades cuja água provoca o completo esquecimento, só que ao contrário.

Wednesday, November 27, 2019

Menina Anita


Quando os sinos começavam a tocar a anunciar a ida de algum habitante desta para melhor, era quando a menina Anita se sentia mais viva. Saía à rua a saber quem era o finado. Voltava para casa, aborrecida, se era alguém com quem tinha pouca lidação ou pessoa com que estava desavinda por razões próprias ou familiares. Quando era um moço ou moça da sua criação, parente próximo ou afastado, aí sim! Já tinha planos para o serão. Tinha como passatempo passar a noite a velar os falecidos e a confortar os seus familiares.

Solteira e com poucas distrações apropriadas ao estado civil, suportava melhor o frio ora da igreja ora da casa mortuária, conforme a notoriedade do morto. Diziam as más línguas, que as há em todo o lado, que era por ter a cama fria que não lhe faziam diferença essas noites insones e geladas sentada em frente aos caixões. Só que a menina Anita era bem-avisada, e apresentava-se sempre com um xaile bem grosso, um gibão quente, uma manta de lã para pôr aos joelhos e uma almofada para aquecer e proteger o avantajado traseiro da rijeza das cadeiras de pau. E enquanto os restantes amigos e parentes do finado, amadores nestas lides, batiam o queixo, estava ela bem aquecida e até com umas cores nas faces.

Os dias até podiam ser monótonos e tristes, com a papada encostada ao postigo da sua rua que, por infelicidade, não tinha muito movimento. Tristes era também os serões nos dias em que calhava a não morrer ninguém. O telejornal com notícias que sentia não lhe dizerem respeito, uma telenovela brasileira a que prestava pouca atenção, uma caneca de leite morno e cama. Mas se havia morto para velar, Anita era mais feliz. Havia conversas para escutar, viúvas e órfãos a quem confortar e podia olhar à sua volta, analisando todos os detalhes de cada um, da indumentária à profundidade da dor. Ocupados como estavam, ninguém daria pelo seu olhar inquisidor.

Entrava com um ar de compaixão e benzia-se cerimoniosamente em frente ao corpo. Olhava a cara do defunto antes de proclamar: "está tal e qual como ele era." Rezava um padre nosso de olhos fechados e, quando os abria, procurava a família para lhes oferecer os pêsames. Era uma profissional nesta área, dirigia-se aos cônjuges e aos filhos daquele ou daquela que ia arrefecendo e, numa voz que evocava lágrimas e lamentos, dizia solenemente: “os meus sentimentos!” Uma performance digna de nota que ensaiava muitas vezes no quarto, em frente ao espelho.

Não se pense que a menina Anita se acostumou rapidamente a este labor. Não! A quem é que não custa uma noite fora do camalho? Foi-se habituando, como um maratonista que começa a ignorar as dores nos músculos e a vontade de desistir. Fosse acompanhar os mortos um desporto olímpico e a menina Anita estaria coberta de ouro, apesar da sua compleição pouco atlética. Nunca fora magra, nem em moça. Os pais eram proprietários de uma venda, metade taberna e metade mercearia, pelo que tinha sempre maneira de remendar a fome com que via andar os outros colegas na escola. As irmãs foram casando e saindo de casa e ela ficou a ajudar os pais e para tia de muitos sobrinhos. Quando os pais se foram, vendeu tudo, os supermercados na vila grande tinham acabado com o negócio. Contudo, continuou a atividade da mãe, carpideira encartada, que chorava baba e ranho por todos, desde o mais próximo dos amigos àquele a quem, mesmo na véspera, tinha metido as orelhas a arder. Fora abraçando esse legado e transformara-se, aos poucos, no braço direito da mãe, que morreu orgulhosa de quem lhe seguisse o mister.

Agora, sozinha, encarregava-se de acompanhar os finados da vila, já sem os choros nem dramatismos fora de moda. Em vez disso, tornou-se especialista em tudo o que diz respeito a enterros. Colecionava, com o mesmo ardor que os garotos amealham cromos de futebol ou calendários de bolso, os folhetos com imagens dos falecidos. Inspecionava as coroas de flores e especulava sobre o preço de cada uma delas. Verificava a qualidade da madeira do caixão, área em que era especialista e discutia, entendida, com os proprietários da agência funerária. Analisava os rendilhados que amortalhavam os falecidos. Comparava tudo de enterro para enterro. Vira, a pouco e pouco, a casa mortuária alterar-se. As velas de cera a darem lugar a umas bizarras lâmpadas que imitavam as suas antecessoras. O aparelho de ar condicionado, que tantas discussões causava aos enlutados, fora instalado por cima da cruz, aquecendo ou arrefecendo as noites.

Às vezes, calhava a entrar, altas horas da noite, numa modorra provocada pela falta de sono e chegava a alucinar. O cérebro, cansado, pregava-lhe partidas. Via os fios das extensões elétricas que ligavam as lâmpadas, serpentear, ameaçadoramente. Outras vezes, o morto parecia acordar de um longo sono. Pareceu-lhe em certa ocasião que a cruz, de madeira, derretia. Sabia que nada disso era verdade, que era um truque da imaginação. Chegava a entretê-la naquelas longas horas.

Ocupava também estas noites a planear o seu próprio enterro. O caixão, tinha decidido, seria de mogno escuro. Mas não era só o caixão. Tinha decidido todos os detalhes como uma verdadeira especialista. Numa ocasião, chamou à parte o Sr. Arnaldo, agente funerário que mais trabalhava na vila e com quem tinha muita lidação, e entregou-lhe um envelope. Eram as instruções para quando ela própria morresse. O Sr. Arnaldo, ficou atrapalhado, não era costume ser o morto a decidir estas questões, e ficou também admirado com o conhecimento que esta senhora tinha sobre o seu próprio trabalho.

A menina Anita começou a notar que cada vez menos pessoas passavam a noite na casa mortuária. Ouvia-se falar que, noutros sítios, o morto já ficava sozinho de noite, atrás de uma porta trancada. Escândalo! Impensável! E, ainda assim, a menina Anita olhava à roda e via cada vez menos gente noite afora. As caras que a acompanhavam, uma a uma foram também sendo envoltas nas mortalhas, vestindo as suas melhores roupas e deitadas dentro de um caixão. Até que, certa ocasião, a menina Anita se viu a acompanhar um morto, a noite inteira, apenas com o filho do falecido.

O funeral seguinte foi o primeiro na vila em que a porta ficou fechada toda a noite. Não causou indignação à menina Anita, não terá tido já oportunidade de se melindrar. Lá dentro, sem estar acompanhada, sozinha, passou a sua última noite na casa mortuária.  


 



Wednesday, November 13, 2019

Sueca


Os serões de inverno no monte eram mais curtos. Tinha de ser assim. O sol que se punha cedo e o frio a isso obrigavam. No verão, o monte parecia muito diferente. Os homens e mulheres, sentados em cantos opostos, ao relento, conversavam e riam. Contavam anedotas e episódios que, com mais ou menos exagero, se tinham passado com eles que começavam sempre da mesma maneira: “Vou-vos contar uma parte que me aconteceu”. Os garotos corriam por todo o lado, mais ainda se calhava a lua cheia iluminar com o seu clarão o montado, tornando visível a silhueta de todas as coisas. Brincavam às escondidas, à apanhada e a tantas coisas inventadas que nem eles conseguiriam listar.

Quando o sol começava a ficar mais baixo, os dias mirravam e a noite caía ainda os habitantes do monte não tinham largado o trabalho, a rotina mudava. Dentro de cada casa, os chupões tinham sempre lenha a arder e à volta do fogo, as famílias resistiam pouco tempo a acamalharem-se nos colchões listados e recheados a palha. Ainda assim, para manter o hábito e porque de outra distração não dispunham, os quatro homens juntavam-se depois de comerem as sopas. Na maior parte dos dias, falavam pouco. Eram calados por natureza e também pouco havia para partilharem que os outros não soubessem já. O inverno tornava-os taciturnos, cinzentos como os dias frios e húmidos, que tinham que suportar. Trabalhavam juntos, lado a lado na propriedade do senhor coronel. Vidas quase iguais no pouco que conseguiam amealhar no final de uma jornada de trabalho.

Apanhavam agora a azeitona. Sabiam que, em havendo boa colheita e apanhada a azeitona rapidamente, poderiam vir a gozar da generosidade do senhor coronel. O Natal não vinha longe já e qualquer bónus era bem-vindo para ajudar a pôr qualquer coisa no sapatinho, mas mais importante, a pôr qualquer coisa na mesa. Mesmo com os braços doridos de varejar e com o corpo a pedir descanso, faziam a vontade à cabeça que pedia também uma ocupação. Assim, juntavam-se para jogar à sueca. As parcerias estavam já feitas, eram sempre as mesmas para que os perdedores de hoje pudessem ter a desforra no dia seguinte. Um dos mais velhos era parceiro de um dos mais novos para misturar experiência e cautela com atrevimento e arrojo na dose certa para ter sucesso. Como jogavam à sueca, todos esperariam que fossem quatro, afinal são essas as regras do jogo. Mas, já vamos ver que não.

O Olímpio, era o mais velho dos jogadores. Tinha passado já cinquenta invernos no monte, mas parecia mais. Tinha um olho baço que assim estava desde a infância quando uma brincadeira com um pau lhe deixou uma pua de madeira alojada na vista. O bigode também contribuía para um aspeto que metia respeito, para não dizer medo. Era um bigode quase aristocrático e talvez a única coisa de que Olímpio tivesse vaidade. Mas, Olímpio não era o que parecia. Metia, às vezes, medo aos ratinhos que vinham de longe para ajudar nas searas. Tremiam perante a sua presença quando se apresentava como o manageiro para mais tarde descobrirem que tinha um coração mole. Não fugia de discussões e uma vez mesmo houve uma briga que meteu navalhas. Assim que Olímpio viu o adversário estendido com o sangue a jorrar das tripas, pôs-se da cor da cal e teve que sair dali. Diziam depois que dera metade das suas jornas daquele mês à mulher do desgraçado, mesmo tendo sido o outro a puxar primeiro da navalha.

O segundo era o Joaquim Zé. Este não sabia dizer a idade e, sendo dos mais velhos, era dos mais recentes habitantes do monte. Dizia-se que era arraçado de maltês e o tom moreno da pele parecia confirmar essa ideia. De todos, era o que contava mais histórias. Algumas verdadeiras, outras mentiras, certamente, mas todas com o condão de deixar todos a rir e bem-dispostos. Dizia que tinha crescido junto ao mar, no Brejão. E maravilhava todos a falar do oceano, os seus olhos verdes iluminavam-se a descrever aquela vastidão de água que os habitantes do monte nunca tinham visto e nem conseguiam imaginar.  

Havia depois o Vicente, o parceiro do Olímpio. Acabado de regressar ao monte, vindo da tropa, parecia não ter mais nenhum assunto de conversa desde que fora às sortes. Fora um menino e viera um homem para gáudio do pai e desgosto da mãe. A desgraçada via agora o filho emborcar copos de vinho como se fossem água, a beber medronho como os homens e temia que desse em beberrolas. O pai ria-se desses temores maternais e dava palmadas valentes nas costas do moço que se ria também.

O quarto era o parceiro do Joaquim Zé, o Benício. Rapaz de poucas palavras. Parecia não dar conta das pessoas quando o chamavam e, se era obrigado a falar, fazia-o sempre tão baixinho que obrigava o interlocutor a aguçar os ouvidos e fazer força para o entender. Desde pequeno que gostava mais da companhia das bestas do que das pessoas e tinha mesmo mostrado dotes para os animais. De maneira que, ficara o arrieiro do senhor coronel. A mãe dele dizia que era um “paz de alma”, quase parvo, não tinha maldade. Mas o Joaquim Zé respondia logo “Então vá lá vê-lo a jogar à carta para ver o manhoso que ele é!”  

Havia ainda um quinto elemento que fazia parte destes serões. Não era um jogador, mas era presença sempre à mesa onde jogavam. O Ti Armando. O Ti Armando era sogro do Joaquim Zé e ia já perto dos oitenta anos. Sem poder já trabalhar, tentava não estorvar durante o dia ocupando-se de uma pequena horta que tinham junto à ribeira. À noite, para distrair e usufruir de companhia, juntava-se à mesa para ver o jogo e ouvir as conversas, se as havia. Por respeito aos seus cabelos brancos, perguntavam por rotina se o Ti Armando queria jogar mesmo sabendo que a resposta era invariavelmente negativa. Bem, então jogavam eles.

Mas se o Ti Armando se recusava a jogar, não se negava nunca a interromper as jogadas para perorar sobre um falhanço de um deles: ou porque não respeitara o sinal a pedir trunfo do colega, ou porque não contara as cartas e insistira numa jogada que deu em corte, ou porque devia ter destrunfado ou por qualquer outro motivo. E repetia sempre no fim: “Já não se joga à Sueca, como antigamente”. O Joaquim Zé, já com menos educação perguntava de novo se o Ti Armando queria jogar, ao que ele nem se incomodava a responder, rindo.

Os únicos momentos de descanso que tinham era quando o Ti Armando, por causa dos muitos anos e pelo adiantado da hora, adormecia com a manta aos joelhos embalado pelo jogo de cartas. Se acordava, voltava de imediato aos seus comentários quanto à falta de talento de Olímpio, Joaquim Zé, Vicente e Benício para a sueca.

Uma noite em que as críticas de Ti Armando estavam particularmente azedas e azedos estavam também os quatro jogadores, deu-se um acontecimento que havia de ser contado pelas tabernas do Alentejo, de Barrancos a Odemira e de Almodôvar a Portel. O Vicente enganou-se a dar as cartas, “passou-as” e, em vez de dar dez cartas a cada um, distribuiu-as mal e um ficou com nove e outro com onze. Aí o Ti Armando, entre cuspo e gargalhadas, disse tudo como os malucos. Chamou “burricalho” ao rapaz, disse que já tinha visto fazer todo o tipo de asneira àquela mesa e que, com tanto jogar, em vez de melhorar parecia que jogavam pior. Foi de tal maneira que ficaram todos com a cara muito encarnada e só não responderam porque não se responde a um ancião. Perguntou só o Joaquim Zé ao sogro, sem descerrar os dentes que a raiva fazia apertar: “Quer jogar?”. Mas o Ti Armando respondeu apenas: “Não jogo com burricalhos”, insultando agora todos.

Quando o Ti Armando adormeceu, como era seu hábito, os parceiros ficaram aliviados e puderam retomar a partida ainda com a humilhação a arder-lhes nas entranhas. Foi aí que o Benício, o “paz de alma” que “não tinha maldade” teve a ideia. Estranharam todos o Benício ter uma ideia e mais estranharam estar na disposição de falar com os três para contá-la. Mal a partilhou, os outros três abraçaram aquilo com os dois braços e puseram o plano em prática. Sem fazer barulho, o Vicente tapou muito bem o postigo com um rodilho para não entrar luz nenhuma, o Olímpio apagou o fogo com um pouco de água e o Joaquim Zé apagou o candeeiro a petróleo. Rapidamente tudo ficou na mais absoluta escuridão. Então, sentados nos seus lugares, começaram a bater com as cartas na mesa, simulando estarem a jogar. Guerreavam uns com os outros e tudo, levantando cada vez mais a voz a ver se conseguiam que o Ti Armando acordasse. Finalmente conseguiram. O Ti Armando acorda com o barulho, abre os olhos e nada vê. Passa a mão pela cara, estica os braços e grita de susto: “Mãezinha, estou ceguinho!”. Todos desataram a rir, fazendo tanto barulho que as mulheres vieram a ver o que se passava, trazendo os candeeiros. Só aí o Ti Armando percebeu o que tinha acontecido. Ficou envergonhado por não ter dado pela marosca que os moços tinham preparado, mas ao mesmo tempo aliviado. Foi remédio santo, a partir dessa noite a sueca, no monte, passou a ser um jogo de mudos.

Monday, October 28, 2019

Deusnossosenhormeperdoe


“Não fazem pouco de mim, que eu não deixo. Lá porque são mais espertas que eu… quer dizer, mais espertas não são, tiveram uma vida melhor. Enquanto elas andavam na escola, de bata branca a aprenderem a tabuada como umas senhoras, andava eu atrás de um rebanho de cabras e a trabalhar no campo. Havia eu agora de ter saúde?! Andei muito curvada a apanhar tomate, a mondar e nas searas. As minhas costas ficaram bem marcadas, que ainda hoje, em mudando o tempo, é dores em cima de dores. Pensam o quê? Pois!” 

- Então minha querida, está boa? Gosto tanto de a ver, veio também ao panito, não?

“Olha lá aquela. Aqueles brincos são iguais a uns que eu vi na montra da ourivesaria, estavam marcados a 300 euros! Isso não ganho eu de reforma que trabalhei uma vida inteira. Uma vergonha! Andam aí mostrando e esfregando na cara das pessoas, feitas imposturonas. Velhacas! Passassem o que eu passei e queria ver se tinham esse ouro todo pendurado. Eu conseguir andar na vila sem estar toda esburacada e ainda me chegar para a farmácia e o supermercado, ainda é uma sorte. Se sobrasse um bocadinho mais… não era preciso muito que eu, habituada a viver com pouco, ainda consigo poupar, que lá isso a minha santa mãezinha e o meu pai sempre me ensinaram, ainda mandava arranjar a placa. Custa-me andar com a boca neste estado que ainda serve de consolação a gente rir com dentes, mesmo com a barriga vazia ou remediada com uma sopinha. “

- Então minha linda, está boazinha? Estava agora mesmo a admirar os seus brincos. Muito bonitos.

“Falsa. Deve ter sido o amigo que lhos deu. Pensa que não se sabe, mas eu vejo-o sair da casa dela. Espreita pelo postigo a ver se vem alguém na rua e não me vê por detrás dos cortinados. Grande puta! Toda a gente sabe. Eu não sou de conversas, mas há coisas que me fazem impressão, pronto. O homem é casado, e ela a enfiar-se por debaixo dele sabendo que tem mulher à espera em casa. Para ganhar uns brincos! Há gente para tudo. O meu era outro assim. Não podia ver mulher à frente e ficava como um burro no cio. Isso era como o outro. Que só uma vez lhe disse que me parecia mal. Agora bater-me como depois deu em bater! Ai isso não, santa paciência. Ainda aguentei uns anos daquilo, até as moças se acabarem de criar e casarem. Agora, depois de velha, ainda apanhar porrada? Ninguém merece. Passa-se mal uns tempos que isto já se sabe, os homens sempre ganham melhor e o dinheiro dele ficou-me a fazer muita falta para orientar uma casa. Mas antes passar por dificuldades do que levar porrada sempre que ele lhe apetecia.”

- Então vizinha, como está o seu mocinho?

“Mocinho! Um drogado. O marmanjo, uma pessoa olha para ele e, deusnossosenhormeperdoe, mas vê-se mesmo que é um drogado ou um paneleiro. Ou as duas coisas! Não gosto nada do estilo dele. Calças justas, cabelo grande e brincos. Diz ela que este ano vai entrar para a universidade. Deve de ir sim senhora, e eu sou a Brigite Bardot! Mais certo é entrar para a prisão. Isto são coisas que não podes dizer a ninguém, Leonor, mas esta gente… era mandá-los todos para o mar num barco com um furo. E mesmo assim tinhas que estar uns tempos sem comeres peixe, filha. No tempo do Salazar não se ouvia falar disto! Havia respeito, R-E-S-P-E-I-T-O, olá se havia! Fazia falta outro. Eu votava nele que aquilo da tortura e da PIDE é conversa dos comunistas! Gente que nunca gostou de vergar a mola.”

- Então vizinha, amanhã vamos ao terço? Lá nos encontramos.

“Vai rezar o terço para quê esta? Uma maledicente, corta aí na casaca a meia rua. Ainda no outro dia estava eu a dizer à Jacinta da fruta que esta menina devia ter espelhos lá em casa. Vieram-me contar que disse à Toninha que eu cheirava mal dos sovacos. Eu! Cheirar mal! Tomo banho todos os sábados que não vale a pena andar a tomar banho mais vezes. Não ando a transpirar. Porca é a língua dela que naquela boca não há ninguém bom. E depois vai à missa e reza feita badalhoca. O que ela queria era que o padre lhe desse uns apertos que o marido já não tem força para nada. É um banana que anda a sustentar-lhe os luxos, para andar aí com o cabelo arranjado todos os quinze dias. E eu só o lavo à da Júlia uma vez por festa que isto não estica para mais. Tivesse eu um homem com um ordenado como o dela e fazia mais vista. Aquilo é só toucinho, só o que tem é manzarulhos de carne, uma bácora bem manteúda. Na excursão que fizemos da INATEL eu bem vi. Era rolos e rolos de banha por baixo do fato de banho. Comprou um preto para se notar menos, mas então! Gorda! Nem se compara cá comigo, tivesse eu a placa amanhada e ainda arranjava um daqueles velhos viúvos que vão nas excursões.

- Então senhor Joaquim, está melhorzinho da constipação?

“Velho dum real cabrão! Rijo, rijo, rijo e só o que faz é queixar-se. Anda ali como o ferro. Ainda vai enterrar uma macheia deles mais novos antes de ir para a quinta das tabuletas. Tivesse ele diabetes como eu, ou as articulações no estado em que tenho as minhas e logo via o que era penar. E a médica de família, aquela bêbada, que não me manda fazer análises. E ainda diz que eu estou muito bem. Deusnossosenhormeperdoe, mas isto era ela ter as minhas dores uma semana para ver se aprendia. Quem diz uma semana diz um mês. Quando a apanho antes do almoço a coisa, às vezes, escapa. Agora depois de se encharcar na pinga, da parte da tarde, mais vale nem lá ir. Bêbada! E este velho, cheio de genica que eu nunca vi um velho de 80 anos a fazer o que este faz, a queixar-se de dores. O mal é da idade, sua carcaça. Eu, com os meus 64 também já vou tendo dores, que é que ele julga? Vejam lá se me pergunta se estou melhor? Viu-me vir da farmácia com um saco cheio de medicamentos e nem perguntou se estava doente! Falta de educação, isto ninguém quer saber de ninguém. Fora tu, Leonor que és uma santa. Todas como tu Leonor!

Thursday, October 24, 2019

Açorda



A casa está em silêncio. Mas não para Joaquim. Quase na obscuridade, ficciona ruídos passados, no presente. Justapõe realidades. Senta-se no cadeirão da sala, velho e gasto como ele, de olhos fechados para melhorar a concentração. Assim consegue convencer-se melhor que ouve realmente. É um exigente exercício na casa deserta. Da cozinha, imagina um som com uma cadência constante. É o som dos sábados de manhã. Pum, espaço, pum, espaço, pum... O ritmo não é apressado, mas nunca atrasa. A mão responsável pelo som mostra determinação e mestria, hábito feito de muitos anos. É a mão de Umbelina, a sua mulher, que prepara o almoço. É dia de açorda. Bate os alhos e os coentros enquanto coze os ovos e um rabo de bacalhau. Para que o efeito seja perfeito, Joaquim sincroniza o bater do seu coração com esse som que resgata a memória de dias felizes. É com este compasso que a porta se abre, de forma quase mágica, para que outras memórias contagiem o presente.


São os últimos dias da sua vida, ele pressente-o, tanto quanto é possível a alguém saber que o fim se aproxima. São dias amargos. Mas este mecanismo que descobriu permite que sejam agridoces as horas, longas, que se vão arrastando sem sentido. Com o metrónomo que é o seu coração em funcionamento, aos poucos, vão-se juntando outros sons a esta sinfonia.


Atrás de si, no corredor, o som de crianças a correr, sons quentes de riso e alegria. Poderia ser, diria um cínico, o som de uma motorizada que aumenta e diminui ao ritmo do punho do seu condutor. O vizinho até tem uma Famel bem barulhenta. Mas não é nenhuma motorizada, são os filhos que andam a jogar à apanhada, de novo perto dele. Esquece, por momentos, que andam longe. Estão com as suas novas famílias, sistemas solares nos quais teve o mesmo destino de Plutão, despromovido a planeta anão. Será que às vezes pensam nele? Será que também fecham os olhos e recordam o seu agora velho pai, outrora forte, maior que eles? Emociona-se e quase quebra o encantamento. Retoma o foco no bater do coração e da açorda.


Ouve agora um novo som. Quem, como nós, vê a cena de fora, poderia pensar que são os pássaros nas figueiras do quintal a fazer a corte às suas companheiras. Mas é a filha, que, no seu quarto, canta. Joaquim nunca gostou particularmente de música. Sempre foi mais apreciador do silêncio e do sossego, mas qualquer coisa sempre se comoveu nele ao ouvir a sua filha cantar. Era a mais nova, tinha uma ligação diferente com o pai. Chamava-lhe “a minha melra” por a surpreender muitas vezes a cantar. Tanto dava a Joaquim qual era a canção. Podia ser uma moda alentejana, um hino da igreja ou uma música popular, daquelas que tocam na rádio, queria era ouvir a voz da filha. A sua melra fechava-se no quarto, a fazer os trabalhos de casa ou a coser, talvez a escrever uma carta a alguma amiga e ele vinha, caminhando ligeiro pôr-se à escuta. Aí ficava até que ela se calasse ou alguém viesse chamá-lo. Quando dava pelo pai, ficava envergonhada, mas sorria quando ele lhe dizia: “que bem que canta a minha melra”.


Joaquim emociona-se. Umbelina morreu há cinco anos depois de ter estado outros tantos acamada num lar. Os filhos estão longe. Um na cidade grande, o outro Joaquim nem sabe, e a sua melra na Suíça. Uma chamada telefónica por semana. A Joaquim, quase surdo, pouco proveito lhe faz. Na presença das pessoas, ainda consegue ler algum rasto de palavras nos lábios, mas por telefone nada compreende. Às vezes uma entoação que dá ideia de final de conversa.


No meio da agitação, perde o foco e os sons desvanecem. Tem que começar tudo de novo. Concentra-se no bater do coração e na açorda que nasce na cozinha, mas não consegue. Não ouve o bater dos alhos. Não sente o bater do coração. Não ouve nada. De repente, do silêncio, uma voz chama. Abre os olhos, inundam-se de luz, está sentado à mesa da cozinha. Umbelina serve-lhe, a sorrir, a maior fatia de pão da açorda. A mesa está posta para cinco, mas só os pratos dos dois têm comida. Joaquim devolve-lhe o sorriso e come com satisfação.

Monday, September 30, 2019

Arco-Íris ao Peito

O Paulo usava o cabelo grande. Não era moda, não se pode dizer que imitasse alguém, nos anos 80, naquela região, nem era assim tão comum. Simplesmente, gostava de o ter assim: cabelo louro e liso pelos ombros. Também a pele era clara, como se o sol do Alentejo tivesse decidido poupá-lo ao castigo que destinava a todos os outros. Paulo tinha um ar angelical. Como é sabido, os anjos não têm sexo, por isso, quem não o conhecia, passava alguns minutos numa perplexidade que aprendemos a identificar e nos divertia. Viam uma figura andrógina, bonito demais para ser moço e com feições ligeiramente grosseiras para ser rapariga. Indecisos entre chamar-lhe gaiato ou gaiata, acabavam, muitas vezes por não dizer nada e iam-se embora com os dois pronomes entalados na garganta.

Algumas das senhoras idosas, mais espertas que as outras, tentavam sair airosamente deste impasse e perguntavam: “Como te chamas?” Mas a entoação que ele dava ao seu nome, fechando a última vogal, deixava-as na dúvida. Teria dito “Paulo” ou “Paula”? Não conseguiam perceber. Acho que não fazia de propósito, mas nós divertíamo-nos a ver a confusão que ele provocava. Alguns ainda ficavam a remoer rancores vindos de preconceitos contra cabelos grandes, como se o Paulo fosse uma repetição das frustrações que tinham vivido com os seus próprios filhos que, agora com idade para serem pais do Paulo, tinham sido hippies, com longas guedelhas, sapatos de plataforma, horríveis camisas de hiperbólicos colarinhos e calças com boca-de-sino.

No recreio da escola, Paulo gostava de jogar à bola. Não era o primeiro a ser escolhido quando se faziam equipas, mas também não era o último. Algum talento tinha para a coisa. Metade das vezes, porém, preferia brincar com as raparigas às telenovelas, recriando as cenas do capítulo do Roque Santeiro visto no serão anterior.

Uma observação à indumentária também de pouco servia para que se conseguisse alcançar qualquer certeza. Paulo, como todos nós, usava a obrigatória bata branca imposta aos alunos e alunas pelo professor Albino. Para além da bata, fazia parte do uniforme uma particularidade que servia para premiar os alunos pelo seu desempenho e motivar para a aquisição permanente do saber. Todos traziam ao peito um alfinete de dama com várias fitas que contrastavam com a alvura da bata. Invejávamos o Paulo porque trazia penduradas todas as fitas, numa infinidade de cores. Uma fita branca para a limpeza, obtida após análise cuidada das unhas e atrás das orelhas, local onde o sarro era mais resistente a uma boa esfrega. Uma fita vermelha para a destreza demonstrada no interrogatório da tabuada. Uma fita amarela para a história, sempre que um aluno sabia de memória os nomes e cognomes de todos os reis da primeira dinastia. Uma fita verde para a ortografia, entregue a quem conseguia três ditados seguidos com zero erros. Mais cores, muitas, para outras tantas tarefas, deveres e saberes: pontualidade, resolução de problemas de matemática, caligrafia, criatividade na escrita de composições, presenças na catequese, enfim, fiquemo-nos por um et cetera.  Um autêntico arco-íris pendurado ao peito que o Paulo e a maior parte de nós mostrávamos com orgulho, quando havia muitas, ou com vergonha se acaso minguavam.

Um dia, o professor Albino chamou o Paulo ao estrado e disse que lhe iria retirar a fita branca da limpeza. Burburinho na sala! Estranhámos a situação e disso demos conta ao colega de carteira que tinha a mesma intenção! Então o Paulo que era o paradigma da limpeza, sempre com as unhas curtinhas, sem remelas nos olhos e que, quando estava constipado, limpava o nariz com mil cuidados e sem nenhum ruído! A sua mesa, magicamente, parecia-nos, nunca tinha vestígios de borracha, os seus lápis nunca deixavam aparas. Tudo tão limpo e ordeiro que parecia que nunca era usado. Uma antítese total das nossas carteiras, sempre escritas, sujas de tinta e todos os vestígios em que os gaiatos da escola primária são abundantes.

Paulo, humildemente, sem ponta de revolta ou sequer mau humor, perguntou a razão dessa súbita e inesperada subtração da fita. O professor, silenciosamente, apontou-lhe para a cabeça. Continuámos sem perceber. O Paulo, apenas ele, parecia ter adivinhado. Passou as mãos pelo cabelo. O professor começou a dizer que o cabelo grande era “uma falta de higiene”, que originava piolhos, que era sinal de desleixo. Perguntei, candidamente, sem vestígio de ironia, se as raparigas deviam também cortar o cabelo. O professor, confundindo a minha inocente perplexidade com desafio, ordenou de imediato que me fosse sentar à janela com orelhas de burro. Concluíu o professor, que “os homens devem usar o cabelo curto”. Paulo, exposto a todos, baixou a cabeça e começou a chorar silenciosamente. Isso pareceu irritar o professor que, ato contínuo, lhe retirou a fita púrpura do bom comportamento dizendo, com um arrependimento visível a meio da frase: “Um homem não chora”, cujo único efeito foi multiplicar as lágrimas.

 Na semana seguinte, o Paulo foi ao barbeiro, a isso os pais o obrigaram depois de uma conversa com o professor. Não sei se chorou, como na sala, quando as madeixas louras foram caindo à mercê do pente número dois do mestre Ciladas e ficou, por fim, frente ao seu reflexo no espelho, com o escalpe a descoberto.

Quando voltou à escola, estava irreconhecível. Os grandes olhos claros pareciam desabitados. O professor fazia-lhe perguntas e ele encolhia os ombros, indiferente aos castigos, às reguadas e puxões de orelhas. Nem reagia enquanto, uma a uma, as cores do arco-íris que trazia num alfinete ao peito eram retiradas como as pétalas de um malmequer. Nunca ninguém mais olhou para o Paulo na dúvida sobre se seria rapaz ou rapariga. Para nós, garotos, nada mudou. Estava ali o nosso amigo. Mais triste, mas era ele. Para o Paulo, tudo mudou. Como mudou para Sansão que, conforme contava o Padre Herculano, perdera as forças à medida que perdera o cabelo. No professor e nos outros adultos, parecia ter-se instalado um conforto que antes não experimentavam ao encarar o Paulo. Era um rapaz que ali estava. Não podia ser outra coisa.

Tuesday, September 17, 2019

O Mentiroso de Cuba


Há vários tipos de mentirosos. De todos, destaco dois: o que mente em proveito próprio e o, chamemos-lhe, mentiroso recreativo. Tenho, como muita gente, pouca estima pelo primeiro, sempre atarefado em subir vertiginosamente a escada de um sucesso ilusório e efémero às costas de outros, mas, em relação ao segundo, reservo até alguma admiração. 

Deste tipo de aldabrão, o maior de que ouvi falar foi o Lúcio Alves. Viveu há muitas décadas em Cuba, no Alentejo. A mentira deixava-lhe sempre um sabor mais doce na boca. A verdade saía em sons estranhos articulados com as entranhas e que o deixavam como que vazio e sem jeito. De maneiras que era mais frequente mentir que dizer a verdade. Começou por exagerar a realidade, com grande sucesso. As pessoas no café até se calavam e juntavam-se para o ouvir. Quando se foram apercebendo que nem tudo o que luzia era ouro, começaram a dar o devido desconto, mas continuaram a ouvir com interesse e a pagar-lhe um copo. Com o tempo deixou de lhe bastar. Inventava acontecimentos de raiz. Estórias pouco verosímeis, fantasiosas que chegavam a incluir lobisomens e outros medos, mas também acontecimentos banais inspirados em anedotas que ouvia os homens contar na taberna.

Soubesse ele escrever e Cuba passaria a ser o berço de, não um, mas dois talentos literários. Para além de Fialho de Almeida, seria também célebre Lúcio Alves. Porém, analfabeto como era, aguçou-se nele o talento para a oralidade. Dominava uma plateia com pausas dramáticas, sotaques imitados e defeitos na fala simulados.

Quando o viam chegar, uns reviravam os olhos em busca de paciência para tanta fantasia, outros ficavam ansiosos como os garotos quando, na tourada, soltam o primeiro boi.

Era tolerado por ser aquela espécie de mentiroso que, por muito que compusesse as mais elaboradas aldrabices, nunca resvalava para a difamação, sempre respeitador da honra alheia. Mentiras de alcova, isso nunca! Para esses assuntos, contassem com as beatas à saída da missa e não tinha interesse algum em ceifar em seara alheia. Havia muito quem se ocupasse com os assuntos do coração ou da carne, os quais até considerava abaixo da sua categoria criativa.

O primeiro de abril era para Lúcio como dia de Natal. Um dia em que tendo carta branca, liberdade total sem que ninguém pudesse guardar rancores por ser enganado, preferia recorrer ao adágio popular "com a verdade me enganas". Optava por, durante 24 horas, não se juntar ao coro de  mentirosos de ocasião na vila. Narrava apenas as mais inverosímeis histórias, absolutamente verdadeiras, que coleccionava durante todo o ano.

Viam-no chegar e notava-se à légua quando tinha alguma para contar. A velocidade a que caminhava, por mais naturalidade que simulasse, dava a entender uma urgência tremenda em chegar perto de quem o escutasse. Começava com uma pergunta para recolher a atenção dos circundantes: "atão vocemessês sabem da última?" Como nunca ninguém pode ter a certeza, por muito que saiba, de dispor da informação mais recente, a resposta "não" dava azo a mais uma estória mirabolante.

Em tempos de fome, as estórias de Lúcio Alves eram um placebo para os cubenses. Não enchiam a barriga, é certo, mas ajudavam a pensar noutra coisa, ainda que momentaneamente. Sabendo disso, e sentindo ele próprio as presas da fome ferrarem-lhe o estômago, depois de uma semana em que apenas açorda condutada com azeitonas lhe tinha passado pelo estreito, criou aquela que seria a sua obra-prima. Estava agachado no bacio quando a ideia lhe surgiu de assalto e não conseguiu conter uma gargalhada. A mãe, mulher séria e pouco dada a risos, ainda perguntou o que era, sem esperar resposta, habituada que estava a desapontar-se com este filho. Levantou-se, limpou-se mal e à pressa e correu porta fora para o Largo do Tribunal. Aí começou a espalhar a sua invenção. Sem conseguir reproduzir a riqueza de detalhes e o colorido da linguagem, este humilde narrador fará aqui um rascunho da paisagem descrita pelo grande mitómano. O comboio das três, entre Alvito e Cuba, tinha colhido um rebanho de borregos, grande número dos quais jazia morto e moribundo junto à linha. Uma grande desgraça, calcula-se, para o pastor que veria subtraído ao seu soldo o preço das cabeças de gado e um contratempo para o proprietário. A estória não teve o sucesso imediato almejado pelo seu autor e sentia que ia esmorecer a qualquer momento. Mas nisto, o Castro chega ao largo e, casualmente, para meter conversa, comenta que o comboio das três chegara com algum atraso. Aí sim! A coincidência fez com que passassem da total descrença para a dúvida, e da dúvida para a certeza, num piscar de olhos. Sem se despedirem conforme mandam as leis da boa educação e movidos pela míngua a que estavam votadas as despensas domésticas, correram todos a buscar uma saca e um bom cutelo para desmanchar carne. Passado menos que um quarto de hora, eram quase três dezenas, junto à linha do comboio, em direcção a Alvito e aos inventados borregos, numa fila ordeira debaixo do sol daquele domingo de Setembro.

Lúcio dir-se-ia extasiado, com um sorriso sardónico, observava. Mas... a eficácia da sua mentira plantou nele também a semente da desconfiança. E se fosse verdade? Não podia ser. Mas e se fosse? Estavam quase trinta homens e mulheres marchando a caminho de Alvito sem que nenhuma prova concreta os movesse? "Se calhar aconteceu mesmo", pensou. Começou então a imaginar. Um ensopado de borrego, batatinhas novas com um pouco de aba, aromatizado com hortelã. Um joelho de borrego assado no forno da padaria, com a carne a descolar-se do osso e a desfazer-se na boca. Sentia-lhe o cheiro e até, quase, o sabor. Por isso, foi. Correu um pouco até alcançar a massa de gente que caminhava ao engano à espera de encontrar os imaginados borregos. 

Foi o seu maior triunfo. Nesse dia, Lúcio enganou tanta gente e de maneira tão eficaz que enganou quem nunca esperara enganar, a si próprio.


Wednesday, August 28, 2019

Jadan

Um ano nestas terras parecia muito mais tempo. Aproveitando os raros momentos de solidão, Jadan aproximou-se da porta, descalço e em silêncio, para assistir à alvorada de mais um dia neste país. O nascer do sol deixava adivinhar o calor abrasador no Alentejo. 

Na sua terra, o distante Bangladesh, aproximava-se a época das monções. O Ganges iria transbordar do leito causando destruição e dando origem a nova vida, tornando as terras mais férteis. Jadan fora ensinado a respeitar e a sentir-se grato por este trabalho da natureza que os punha à prova para, mais tarde, poderem colher os frutos de tão dolorosa sementeira. 
Mas aqui não havia chuva, era outro mundo. As cores eram mais tristes, a água não corria livremente por todo o lado, era bem escassa. As cegonhas eram uma pálida sombra do calau bicórnio e os poderosos tigres não caçavam nestas terras.

Há precisamente um ano, Jadan despedia-se dos pais e dos irmãos. Também nessa ocasião acordou mais cedo que todos para ver uma derradeira vez as margens do Ganges e as ruas adormecidas de Sujanagar.
Numa família de tantas bocas era preciso que todos trabalhassem e, mesmo assim, quase não chegava para comprar arroz que sossegasse os estômagos. A solução era ir para uma terra distante. Portugal seria a sua nova casa por uns anos, se tudo corresse bem. 

Via agora, à medida que a luz do sol que se erguia à esquerda e tornava visíveis os contornos de todas as coisas, um imenso mar de plástico, as estufas onde labutava todo o dia. Em breve, estaria no seu interior. De dentro do contentor que partilhava com mais quatro companheiros, ouvia-se já o som familiar de pessoas a levantar-se. Acabava assim este momento só dele. Sem olhar para dentro da sua improvisada habitação, conseguia adivinhar o que se passava. Despertavam apressadamente para tomar um pequeno almoço de arroz cozido, iam à casa de banho apagar da cara os vestígios da noite. Sempre em silêncio, sem conversas entre eles. Os capatazes juntavam-nos ali, pensando que eram conterrâneos. A verdade é que nem falavam a mesma língua. Indianos, tailandeses, vietnamitas comunicavam precariamente.

No último ano, Jadan, só uma vez por semana, falava a sua língua materna. Ao domingo, só trabalhava de manhã, por isso caminhava cinco quilómetros até à praça da vila onde tinha Internet grátis. Na véspera, carregava o telemóvel para que a bateria lhe não falhasse e ia falar com os pais, ouvir os sons que lhe eram familiares. Tinha também um desejo enorme de falar, de se fazer compreender. Falava do trabalho, da dificuldade em respirar dentro do calor abrasador das estufas, dos pequenos arbustos carregados de azeitonas que cobriam o que restava da planície. De tudo quanto era estranho na terra, dos caracóis que via comerem e das saudades que tinha dos cozinhados da mãe e de brincar com os sobrinhos pequenos. Só não encontrava modo de descrever o que sentia na planície, tão só, num contentor tão cheio. Nada conseguia exprimir este sentimento. 

Houve um dia em que, como se reconhecesse o seu rosto num espelho, ouviu algo que traduzia o que lhe ia na alma. Cantavam, ele não conhecia uma palavra mas o sentimento era, não duvidava, o dele. Na praça da aldeia, homens idosos vestiam trajes iguais. Amparados uns nos outros, soltavam um lamento em forma de canto que o comoveu até às lágrimas. Ali, longe de casa e numa língua estrangeira, homens tão diferentes dele pareciam saber exprimir, com sons, o que Jadan sentia. E sentiu-se grato por isso.

Monday, July 22, 2019

Desgraça


Mexia-se como um animal selvagem. Como um pequeno mamífero carnívoro de espécie indefinida. Furtivo, ágil e encolhido, tudo vasculhava com os olhos, mesmo que a sua caça fosse tabaco ou alguma carteira negligenciada. Os outros fugiam dele e, ao vê-lo, apalpavam os bolsos e as malas para terem a certeza de que traziam tudo com eles. Os seus bens terrenos emagreciam à mesma medida que ele. Os irmãos vieram buscar a mãe a quem prestava atenção apenas no dia em que chegava a sua míngua pensão. Desde esse momento, a casa foi-se esvaziando. Primeiro a televisão porque pouco interesse tinham as notícias e a ficção não era, de longe o seu escape preferido. Depois o fogão, sem uso num canto da cozinha. Quando cortaram a eletricidade por falta de pagamento, arrancou os fios elétricos e vendeu o cobre por uns tostões. O mesmo destino tiveram os caixilhos das janelas e as portas. Colocou um lençol no lugar da porta para ocultar de olhares curiosos a indigência em que morava.

Não ignorava os olhares feitos de iguais doses de repulsa e compaixão. Abraçava a primeira e revoltava-se com a segunda mesmo que fosse por pena que conseguia uma moeda ou um cigarro de algum conhecido. Amigos, nenhum. Perdeu-os como aos dentes que foram caindo por falta de utilidade. Pouco comia. Almoçava uns tempos num lar, irritava-se e era expulso, depois passava para uma associação, armava fita e não voltava, comia no refeitório do Centro de Formação, mas insultava as cozinheiras e deixava de ter que comer. O jantar, dependia do que encontrava no lixo dos supermercados. Até o cabelo se tornava escasso e os olhos iam-se enterrando cada vez mais nas suas fundas covas. As suas feições eram ossos sobre ossos. A roupa tornou-se larga. Lembrava um espantalho que ia perdendo o enchimento de palha. E espantava todos. Alguma companhia era acidental. A pessoa olhava à volta quando ele chegava e lembrava-se de alguma urgência repentina a que tinha de atender para sair apressadamente da sua presença. Por vezes, era necessário pagar “portagem”. Um cigarro ou uma moeda antes da fuga para o mais longe possível dele. As conversas que mantinha comigo ou com qualquer outro, invariavelmente, acabavam num pedido, numa súplica dita num tom, estudadamente ameaçador, no limite mínimo do ultimato.

Via-o muitas vezes na estrada. Eu, de casa para o trabalho ou do trabalho para casa. Ele, numa direção só conhecida por ele próprio. A pé, junto à berma, mas não muito. Se um carro lhe batesse era maior o azar do automobilista que o dele.

O seu temperamento era como o tempo de abril. Ora chuvoso e escuro, ora brilhante e quente. Em dias de trovoada, vinha pelo meio da rua aos gritos, com os dedos do meio de cada mão esticados num cumprimento ao contrário. Em dias de sol, normalmente com dinheiro na carteira e a cabeça onde ele gostava de a ter, fazia planos e promessas que desapareciam com a primeira nuvem.

Ninguém sabia dele muitas vezes dias a fio. Não dávamos por isso imediatamente. Íamo-nos dando conta aos poucos e também não ficávamos muito tempo a pensar nisso. Quando voltava, às vezes visivelmente maltratado, a cara arranhada ou a arrastar uma perna, recomeçava o seu ofício de cravar o próximo onde o tinha deixado.

Nos dias de maior fúria, perorava longamente sobre uma entidade abstrata que nunca, ao certo, concretizava: as doutoras. As doutoras do lar, as doutoras da segurança social, as doutoras do centro de formação e as doutoras da câmara. Eram como santos a quem se apela em momentos de aflição e a quem se castiga, como à imagem de Santo António quando não nos vale. A doutora do lar que lhe tinha dito que lavava a roupa. A da segurança social que lhe garantiu que lhe pagava o arranjo da casa. A doutora do centro de formação que o autorizou a almoçar todos os dias e a tomar banho. A doutora da câmara que dizia que havia um subsídio para pagar a água e luz. A partir do momento em que enunciavam uma possibilidade, ele começava a cobrá-la, como uma certeza, com juros elevados. Ele farejava-lhes o medo e insistia sempre mais. Mas havia também aqueles que não o receavam. Os garotos então, eram terríveis. Latagões na força da idade, com o sangue a pulsar, frenético nas veias. Era para eles um ritual de passagem à idade adulta e bruta, dar uma chapada viril no rosto cheio de arestas deste ser.

Tinha muitos nomes. Ao ponto de poucos saberem, ao certo, o nome que a mãe lhe deu. Dirigiam-se-lhe no vocativo “Oh Desgraça!”. Era dos nomes menos antipáticos que usavam. Dizia-se que estava doente, uns falavam, em segredo, em SIDA, outros em tuberculose ou em anacrónica lepra. Aumentou com isso o seu ressentimento em relação ao mundo. Confidenciou-me, como acontecia, às vezes, antes ou depois de cravar um cigarro, que as pessoas o diziam por maldade ou ignorância. De acordo com ele, o hábito de revirar os caixotes do lixo à procura de uma refeição, era uma roleta russa. Tanto podia apanhar alimentos em bom estado ou uma intoxicação alimentar. Dependia da sorte. Outras vezes, a comida que lhe doavam, leite e iogurtes sobretudo, azedava já que a sua casa, do frigorífico, só tinha o espaço onde estava e este jazia, provavelmente, esventrado nalguma lixeira.

Um dia, abandonou em definitivo o casebre na pequena aldeia onde morava e mudou-se de armas e bagagens para a vila. “Armas e bagagens” é uma maneira de dizer. Não trazia nenhum tipo de armamento e muito menos bagagens, apenas um saco de plástico. Sem pouso certo, dormia onde calhava, umas vezes na rua, outras numa casa abandonada e devoluta. Os da aldeia ficaram alegres. Os da vila, nem por isso. Deu-se então um fenómeno curioso. Ele tornou-se omnipresente. Estava, constantemente, em todo o lado. Alguém destruiu uma cabine telefónica em Valdoca. “Foi aquela Desgraça”, proclamavam logo. Riscaram um carro nos Altos. “Quem terá sido?” perguntavam ironicamente, sabedores da resposta. Viravam um contentor do lixo. “Quem é que anda sempre aí rondando como uma ratazana?”. Roubaram a motosserra do Tramalagana, “A esta hora já se está a drogar à conta do dinheiro da venda.”

Calhava, às vezes, ser culpado de duas coisas que aconteciam ao mesmo tempo em sítios opostos da vila. Quando o confrontavam, nada negava. Para quê dar-se a esse trabalho? Só enfurecia ainda mais o acusador. Foi à conta disso que morreu. Digo, que o mataram. De golpe anónimo nas tripas dado sem ninguém esperar, por uma minudência qualquer que, na verdade, já ninguém lembra. Nem eu, que até tenho boa memória e, quando ela me falta, invento.

Sem que pudesse ser culpado de fazer isso a si próprio, a guarda foi obrigada a sair do posto para fazer uma investigação. Uma chatice. Pouco habituados a que as diligências policiais na vila fosse mais do que procurá-lo e dar-lhe uns calduços. Por falta de experiência nestas lides, ou por outra razão qualquer, nunca chegaram a nenhuma conclusão. Podia ter sido qualquer um, mas acabou por não pagar ninguém.

Desde esse dia, sobra sempre mais um cigarro ao final do dia e voltamos a encontrar uma moeda no bolso quando nos despimos para deitarmos a cabeça, sossegada, na almofada.

Wednesday, June 05, 2019

Faenas


Ainda a hora do calor castigava a terra, já iam saindo de casa a caminho do campo da bola. Uns ainda mastigavam o fim dos lanches, vinham de todas as pontas da vila, a pé e de bicicleta. Outros vinham dos montes e lugares da freguesia. Dos oito aos dezoito, davam vida às ruas desertas "fardados" para jogar à bola. Iam-se chamando uns aos outros de maneira que, à medida que se aproximavam do campo da bola, engrossavam o caudal daquele fio de juventude.

As mães, às vezes, quando vinham em grupo chamar algum mais atrasado, sentindo o calor, mentiam e diziam que não estava. Mas passado algum tempo lá aparecia ele de calção, meias até ao joelho e camisola de algum clube comprada no mercado. Enquanto não eram em número suficiente para começar a jogar, ensaiava-se penaltis, meínhos e rodas sem deixar cair a bola. Bola levantada e alguém dizia "a bola não pode cair, é o mundo". Vaias para os que a deixavam cair. E para estes gaiatos, a bola era um mundo. Uns com mais talento para a coisa que outros, mas todos prontos para uma tardada até que escurecesse ao ponto de não se conseguirem ver ou até que as vozes das mães soassem, longínquas, a chamar para jantar.

"A professora odiou-me, o futebol é a minha vida", assegurava um deles, destro, com dois pés esquerdos. O campo era de terra batida, com tabelas. Quando chovia, era perfeito. Arriscavam-se entradas de carrinho, pontapés de bicicleta e outras acrobacias sem medo de esfolar os joelhos ou os cotovelos. Saíam todos enlameados. Se acaso, acabava a partida e havia um com a roupa ainda impecável, tinha que ir ao chão para ficarem todos irmanados, envoltos na mesma lama. No Verão, tornava-se duro como pedra e, pelo menos no princípio, eram mais cuidadosos. Passavam a bola, quando tinham pela frente um daqueles que davam "no osso". Era demasiado arriscado tentar uma revirenga ou uma faena.

Quase sempre eram mais de quinze. Escolhiam-se três capitães que selecionavam a equipa. Os restantes na bancada, à sombra, à espera de serem chamados. Ansiosos por saberem qual era a sua equipa, com medo de serem dos últimos a serem escolhidos. Às vezes, o orgulho inteiro colocado em causa quando ninguém queria um "cepo" no seu grupo. Bota fora a dois golos. Ninguém queria ir à baliza, "vai um golo cada um", era a solução. À vez, ocupavam resignados o posto desejosos de sofrerem um golo.

Um remate desenquadrado, a bola subia, ressaltava na rede e ia por cima do muro para o meio das vacas. Pausa para descanso enquanto o rematador subia o poste ou negociava com outro mais ágil o resgate da bola no meio da manada.

Ao final da tarde, distinguiam-se já a custo os vultos. As pernas cansadas, já sem força arrastavam-se, um ou outro acometido por cãibras, os pés doridos de tanto chutar e correr. Alguém gritava: "quem marcar este, ganha" e iam-se buscar forças onde havia exaustão. De repente, uma final da Liga dos Campeões. Golo e, à vez, glória e desilusão. E voltávamos para casa com a certeza de que se repetiria. Repetiu-se muitas vezes, menos na última que não me lembro. Mas sei que nenhum de nós tinha a consciência de que seria aquela a última vez que fazíamos daquele lugar o nosso santuário, em que comungávamos daquela alegria simples de jogar à bola. A última vez em que alguém gritava "grande faena". 

Acabou, como tudo irremediavelmente acaba, também para o próprio campo da bola. As redes e as paredes foram tiradas, os muros caíram, a bancada já não existe, há um poste de eletricidade no meio do campo. Para quem não conheceu o sítio, não há quem possa suspeitar o que ali se passou. Mas para nós, que o vivemos, nunca será outra coisa que não o nosso campo da bola.

Monday, April 15, 2019

Bacalhau


Sempre um cigarro esquecido ao canto da boca, às vezes apagado há muito. A cinza vai caindo por si própria. Ocupado com a colher e a talocha, constrói. Olha, olhos franzidos por causa do fumo, óculos embaciados, e vê mais que todos os outros. Todos veem o que está construído, ele, qual profeta, vê o futuro. Um artista, ouvi chamar-lhe algumas vezes.

De manhã, levanta-se sempre sem um queixume. O trabalho chama e manda mais que o resto. Rói um pedaço de pão com queijo. Poucas palavras, observa e fuma. Mais raros os sorrisos, quase sempre irónicos. Cético, por natureza. Desconfiado, por experiência, porque há por aí muito “pantomineiro”.

Vejo-o, chegado do trabalho. Na marquise ou no quintal, junto à coelheira, de camisa interior de alças, remexe as mãos enquanto revê os pensamentos, insondável. Um homem seco e de aparência enganadoramente frágil.

À mesa, sempre frugal. A minha avó afadiga-se na cozinha, à roda do fogão, a fazer os seus pratos favoritos. Mas, de um frango de fricassé, ele come apenas a ponta de uma asa, de um carapau de escabeche, pouco mais que a cabeça. A seguir, com o prato quase intocado, sempre pão com queijo, menos vezes fruta.

Dizem muitas vezes que as pessoas não morrem, que continuam vivas em quem as lembra. Treta, lugar comum, banalidade. Sempre pensei isso. Não deixo de o pensar. Por muito que os lembremos, não lhes damos vida. E o ato de rememorar, acaba por se erodir. Vamos perdendo a imagem geral e fica, aqui e ali, um pormenor. A memória é lente que rapidamente se desfoca e perde a nitidez.

Mas, no espelho, às vezes, no meu perfil, reconheço cada vez mais o dele. Acabo uma refeição, como pão com queijo e sinto a sua presença, a sua aprovação. Raros disparos, acidentais. E penso que os lugares comuns, afinal, terão algum vestígio de verdade.

Tuesday, April 09, 2019

Mateus Indiano


Todo ele era ferocidade, mas segurava na Mauser com delicadeza. Os outros camaradas traziam a G3, arma mais temperamental que em rajada, ceifava tudo o que estivesse à frente. Mas para a caça, entendia Mateus Indiano, não era um instrumento justo. 

Enquanto muitos usavam artimanhas e os recursos da família de forma a financiar subornos para evitarem o Ultramar, Mateus fez o inverso.  Tinha nele uma sede de aventura que não conseguia satisfazer nas planícies do Alentejo. Miúdo inquieto, à medida que ia explorando os campos, as ribeiras e os buracos da mina à volta da sua vila, compreendia que o mundo era mais do que conseguia avistar da Senhora do Castelo e mais lhe crescia a vontade de partir. Um irmão tinha já sido chamado para Moçambique e Mateus ficou a invejar-lhe a sorte. De maneiras que, quando foi cumprir o serviço militar, tudo fez para que o enviassem para onde o irmão tinha estado para "ver se o que o meu irmão diz é verdade". Não o assustavam os perigos ocultos do mato, antes o excitavam. Na sua fantasia, África era uma terra fértil naquilo que animava os seus sonhos: aventura, violência e adrenalina. Assim, ainda que pouco adepto da disciplina militar, submeteu-se à recruta e às costumeiras humilhações infligidas pelos oficiais. A faísca que lhe acendia o olhar, evitava qualquer excesso por parte dos oficiais comandantes que percebiam que a fera não estava domesticada, antes voluntariamente adormecida. Percebia-se nele a ausência de escrúpulos caso fosse necessário recorrer à violência. Talvez até uma certa luxúria no que diz respeito a isso. Os responsáveis pela recruta, habituados a avaliar cada um dos homens que a eles chegavam, de forma rápida e inconsciente, o perceberam e mantiveram a distância. 

Enquanto esperava, com a arma na mão o aparecimento de alguma presa, recordava a chegada a Lourenço Marques e o primeiro contacto com a humidade e o calor de África. Viera de avião, ao contrário de muitos milhares que, no barco, foram-se adaptando ao clima. A ele, África atingiu-o em cheio de uma só vez assim que chegou ao aeroporto. Teve até dificuldade em respirar esta atmosfera densa e pegajosa mas também ele acabou por se habituar.

Agora, de noite, apenas os focos da berliet ligados a cortar a escuridão, já conseguia até fumar um cigarro enquanto não aparecia a caça: javalis, impalas, changos, imbalalas, o enorme pala-pala e o ainda maior boi-cavalo. Caça grossa, como não havia no Alentejo. Apreciava o desporto mas também a carne dos animais que serviam para melhorar e diversificar o rancho fornecido pelo exército. 

Ia a noite longa, Mateus e os companheiros tinham abatido dois cabritos e outros tantos javalis e preparavam-se para aceitar o fim da jornada quando ouviram um resmalhar. Atraído pelo cheiro da caça, vinha, majestoso, aquele que era, antes da chegada das armas e dos tanques, o verdadeiro rei da savana. Os companheiros de Mateus correram em pânico para o abrigo possível da berliet, abandonando as armas que só os atrapalhavam. Nenhum tinha estado frente a frente com um leão. Nem com o inimigo, que podia estar em toda a parte mas nunca se via, tinham tido um encontro tão próximo. De cima do veículo, chamavam Mateus, mas este não os ouvia. Olhou o animal nos olhos aceitando o seu desafio. Apenas um deles ficaria com a caça e ambos estavam igualmente determinados. Levantou a Mauser e apontou-a ao leão. Sentia a mão tremer e, por momentos, pensou em largar a correr para a berliet. Olhou a avaliar a distância entre ele, o animal e a sua salvação. Percebeu que era tarde de mais. Ou matava, ou morria. Fixou a mira entre os olhos do animal, premiu o gatilho e o tirou ecoou pela noite fora. O leão tombou quase de imediato. Um tiro limpo. Os companheiros, após uma curta e cautelosa espera, correram a felicitá-lo, já Mateus estava debruçado no leão. Um macho de frondosa juba. Lamentando-se de ninguém ter uma máquina fotográfica, incentivavam Mateus a que partissem com os cabritos e javalis e deixassem o leão. Mateus opôs-se: "levo-o concerteza, não o deixo aqui". A voz grave como um trovão, carregada ainda de adrenalina. Os camaradas, sabendo da proibição de matar estes felinos, não tiveram coragem de contrariar alguém que tinha acabado de abater um leão e ajudaram-no no esforço de carregar o corpo do animal.


Quando chegaram ao quartel, a notícia foi crescendo como um burburinho. Já rompia a manhã e todos vinham ver o animal. À porta do refeitório, muitos magalas, de origens humildes e de locais remotos das províncias que nunca tinham visto um leão, acotovelavam-se à sua roda. Davam a Mateus os parabéns, apertavam-lhe a mão e batiam-lhe nas costas. Horas depois, a seguir ao almoço, ouviu-se um comunicado nos altifalantes. "Soldado Indiano, é favor chegar ao gabinete do Comandante." Mateus teve a certeza que o seu momento de glória chegava ao fim. 


A cada passo que dava, o receio da sentença atribuída crescia. Uma repreensão ainda na parada, dentro do edifício pensava que ia ficar sem licenças, enquanto esperava à porta do gabinete antevia uma semana de prisão e, à medida que passava a porta de entrada teve a certeza que iria ser enviado para casa numa dispensa desonrosa. O comandante, mal pareceu ter dado pela sua entrada. De óculos à ponta do nariz, olhava para baixo, lendo algum documento. Mateus pensou ser a sua nota de culpa que teria que assinar. Pousou, finalmente, os papéis e encarou-o. 

- Foi você quem matou o leão? - perguntou.

- Fui, sim senhor, meu comandante. - respondeu Mateus, controlando como podia os nervos.

- Então e não sabe que não se podem matar leões?

- Sei, meu comandante. Mas ele não me deu hipóteses, era ele ou eu, meu comandante. - Tinha ensaiado esta resposta, mas não lhe parecia tão convincente quanto imaginava. Ficou, por isso, surpreendido quando o seu superior lhe perguntou:

- E quanto é que quer pelo leão?

- Não quero nada, meu comandante. - Mateus pressentia uma armadilha. O comandante, matreiro e experiente, poderia estar a tentar verificar se o leão tinha sido morto para ganhar algum dinheiro.

- Mas eu quero comprar-lho. Faça lá um preço, homem.

- Meu comandante, não o quero vender. Se o quiser, é seu, meu comandante.

- De certeza?

- De certeza, meu comandante.

O final da conversa foi melhor do que Mateus poderia ter esperado. Não só escapara a um castigo, como continuaria a ser olhado como o alentejano que matou o leão. Saiu do gabinete do comandante de peito inchado debaixo dos olhares curiosos dos camaradas que continuavam a vir e a querer saber mais sobre a caçada.

Passaram-se semanas, iguais às outras. A tensão das saídas pelo mato em que os olhos se perdiam pelo capim de onde poderia sair uma emboscada a toda a hora, o alívio do regresso ao quartel. A euforia das folgas, as cervejas frescas e a confraternização entre os camaradas. Até que um dia a rotina foi interrompida por um anúncio igual ao que Mateus Indiano tinha escutado quando matara o leão. As mesmas palavras anunciadas pelo altifalante da parada: "Soldado Indiano, ao gabinete do comandante." Desta vez, não foi capaz de prever o que se passaria. Por isso, fez o percurso muito mais depressa. A curiosidade ardia-lhe no peito. A noite em que matou o leão, veio-lhe à memória. Mas agora estava desarmado e sentia que era ele que seria caçado.  Avançou corredor fora e bateu à porta:

-  O meu comandante dá licença?

- Entre. - Assim que entrou, Mateus deu dois passos instintivos em defesa, procurando em vão por alguma arma que lhe pudesse valer num confronto. Aquilo que estava à sua frente, deixava-o sem pinga de sangue. Num esgar feroz, plena de tamanho e força, tinha pela frente a fera que matara, por algum milagre devolvida à vida e apostada em vingar-se. Mas a ausência de movimento fez com que percebesse que o que supusera era apenas metade verdade. O animal estava ali, isso era um facto, mas estava morto, embalsamado. Quanto mais olhava, mais percebia que os olhos que o miravam estavam apagados e não tinham vida, muito menos desejo de vingança. E compreendeu afinal. O comandante chamara-o, simplesmente, para lhe mostrar, com vaidade, o leão, transformado em troféu de caça. Mas a Mateus parecia-lhe que tinha sido chamado para tomar consciência que toda a altivez e ferocidade podia ser eliminada por uma bala certeira. Incluindo a dele próprio.