Nunca na história da retórica, de
Górgias a Martin Luther King Jr., alguém demonstrou semelhante domínio da
oratória ou desenhou argumentos de forma tão impenetrável como este de que vos
falo hoje: Dr. Ricardo Papa Gaio.
Como os primeiros sofistas, era
capaz de debater qualquer tema sem preparação: política, futebol, religião… de
tudo falava com propriedade. De tal forma lançava os seus argumentos que os
seus interlocutores ficavam sem conseguir articular palavra, limitavam-se a
deixar sair sons incompreensíveis sem correspondência em nenhuma língua humana.
Um dia de trabalho inteiro,
perorava sobre temas diversos com a autoridade de um tudólogo. Especialista
disto e daquilo, do que calhava a vir à conversa e do inusitado. O Dr. Ricardo Papa Gaio era dentista. De
“milagroso” numa mão e espelho na outra, debruçava-se nas cavidades bocais dos
seus pacientes e, enquanto tratava uma cárie ou fazia uma obturação, discutia o
tema que vinha a calhar nesse dia. De manhã ao final da tarde, depositava
argumentação que ia aperfeiçoando ao longo da jornada de trabalho.
Os pacientes, entre os quais se
contava este narrador, pouco mais conseguiam fazer que concordar. Era mais
fácil assentir com a cabeça do que contestar um ponto de vista, especialmente
de alguém que tem uma broca dentro da nossa boca. Contudo, cada vez que traçávamos
uma linha vermelha no debate, demonstrávamos que queríamos contra-argumentar e,
para isso, nos preparávamos para cuspir a água que tínhamos acumulada dentro da
boca, vinha a broca com renovado vigor conduzida pelas mãos do doutor,
subitamente, trémulas.
Não havia, assim, direito a
contraditório fosse a discutir um hipotético penalti na área do adversário do
campeão nacional ou a mais recente intervenção do governo na salvação de um
banco. Mesmo que não estivéssemos de acordo, uma mirada rápida aos instrumentos
que tinha na mão e uma tomada de consciência perante a nossa posição de
fragilidade, tornava-nos cautelosos e submissos. Às vezes, acabada a consulta e
ainda com o sabor da anestesia na boca, lá ganhávamos coragem e contestávamos.
Que não era penalti, que os bancos são essenciais para a economia ou que os
ciganos não eram todos bandidos, mas quando, semanas ou meses depois
regressávamos para a consulta, saíamos de lágrimas nos olhos.
Quando tentou levar este talento
discursivo para a vida política, o Dr. Ricardo Papa Gaio não obteve o sucesso
que vaticinava para si próprio. Nos debates televisionados, parecia
desorientado por os oponentes lhe darem réplica, desmontarem os seus argumentos
e o ultrapassarem em capacidade oratória. Num dos debates, em que o vi mais
desconcertado, chegou a levar para o estúdio um cortante com que apontava na
direção do adversário no calor do debate.
Ao fim da quinta eleição perdida,
retirou-se da vida política e voltou ao consultório. Desfeitas as ilusões, só o
passei a ouvir falar do tempo. E não eram grandes discursos, simplesmente
dizia: “está de chuva” se chovia ou “está calor” se realmente estava. E
estávamos sempre de acordo.
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