Há cerca de dois anos, pudemos testemunhar um "debate" sobre a despenalização da eutanásia. Então, como hoje, houve muita argumentação inflamada, inquinada pela emoção e até por crenças metafísicas e religiosas. Decidiu-se, na altura, adiar uma decisão para a legislatura seguinte porque o debate terá sido insuficiente.
Hoje estamos na segunda semana de uma campanha, que tem maior a instituição religiosa do país no epicentro, em prol de um referendo. Dizem que durante a campanha para as eleições legislativas não houve uma tomada de posição oficial dos partidos políticos e que, como tal "não podemos permitir que alguns deputados queiram decidir por nós."
Em primeiro lugar, recordo este trabalho do Público (https://www.publico.pt/legislativas-2019/nove-temas-seis-lideres) que questiona os líderes dos principais partidos sobre o assunto, conseguindo uma resposta inequívoca. Em segundo lugar, na nossa democracia é exatamente assim que as coisas funcionam: elegemos um parlamento para que os deputados possam exercer, em nossa representação, o poder legislativo.
Depois temos ainda a pergunta que querem propor aos portugueses, formulada de forma demagógica e inaceitável: "Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei em quaisquer circunstâncias?"
Na minha opinião, a despenalização da eutanásia é uma inevitabilidade, um avanço civilizacional inexorável. Vai acontecer mais tarde ou mais cedo, com maior ou menor oposição. Mesmo que algumas instituições religiosas tentem instrumentalizar os fiéis e usem celebrações religiosas para fins políticos, ignorando até Cristo que diz em Mateus 22:21: "Dai pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". A laicidade do Estado não deveria ser um tema em 2020, especialmente quando olhamos para a forma como se vive na maior parte dos estados confessionais que ainda subsistem pelo globo. Um estado laico respeita de igual forma todas as religiões, permite a liberdade religiosa sem que esta se sobreponha às leis do país. Mas deve haver reciprocidade. As instituições religiosas devem também respeitar o funcionamento da democracia. Os fiéis, apesar de serem, alegoricamente chamados de rebanho, podem comportar-se com autonomia e usarem o seu pensamento crítico e livre arbítrio para escolherem as forças políticas que melhor representem as suas convicções.
O CDS, o PCP e o PSD deixaram claro que estariam contra a legalização da eutanásia, ressalvando Rio que haveria liberdade de voto no seu partido. Curiosamente, foram os partidos que mais perderam eleitorado. Não estou a afirmar que haja uma relação direta entre as propostas e os resultados, mas é factual.
Há dois anos, como hoje, penso que é uma questão de valores. Temos em oposição a Vida e a Liberdade. Na minha escala de valores, a Liberdade é mais importante. Os próprios mártires da Igreja sacrificaram a sua vida pela liberdade religiosa. Nisso concordo com os perto de 70 milhões de martirizados que se contabilizam desde os tempos de Jesus.
Acima de tudo, a despenalização da eutanásia reforçará a liberdade. Quem prefere, em determinadas condições, terminar com o sofrimento, pode fazê-lo sem temer a perseguição dos que o auxiliarem. Mas quem se opuser a isso, pode continuar a sua vida até ao fim natural, suportando as dores e o sofrimento de que algumas religiões fazem a apologia. De preferência, devem poder contar com os melhores cuidados paliativos que a ciência puder proporcionar. Já contam com um alívio que não menosprezo, o da fé. A fé pode ajudar os crentes a justificar e aceitar o sofrimento, mas e os que não a têm? Por que razão hão-de ter a obrigação de suportar a dor?
A lei será aprovada, com ou sem referendo, hoje ou daqui a dez anos e depois resta-nos questionar porque demorámos tanto tempo.
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