Wednesday, April 01, 2020

Contos da Quarentena I Confina a mente

Só me falta a farda!” Não conseguiu conter a força do pensamento de maneira que lhe saiu em voz alta em frente ao espelho. Começava mais um dia de quarentena e de trabalho para António Oliveira. Apesar de reformado e fazendo parte dos grupos de maior risco por força da idade, não era medo que sentia durante esta pandemia. Animava-o uma nova vitalidade, uma alegria estranha ao ver, nas notícias, os soldados pelas ruas.  

Tempos houve, de má memória para António, em que a tropa na rua era sinónimo de desgraça e degeneração. Mas agora não! Impunham a ordem que desejava que fosse geral ao país, ao mundo. Durante as horas do dia em que o corpo não reclamava o descanso, estava na marquise com um olho, vigilante, na rua, pronto a gritar ordens e imprecações a quem avistasse, e outro no computador, ligado às redes sociais. Este aparente estrabismo era alegremente suportado por António que desejava que o livrassem, a ele e aos outros, desse vício que era a Liberdade, empregando mais músculo na aplicação de medidas de contenção. “Todos temos que fazer sacrifícios”. Era assim que colocava as coisas. E, afinal, que sacrifício era este? Ficar em casa, com todos os confortos da vida moderna: água canalizada, esgotos, eletricidade, internet! O confinamento nunca foi tão fácil como agora. Com um telefone ou só com a internet pode-se encomendar de tudo. Fruta, verduras, carne, peixe, móveis, eletrodomésticos, vinho, medicamentos, máscaras, álcool gel… Até brinquedos sexuais para os mais pervertidos, António tinha visto por curiosidade.  

Opinava muito, lia bastante, ignorava as notícias quando os factos reportados não validavam os seus pontos de vista, mas partilhava muitos rumores e boatos quando eram mais do seu interesse. Acabara por desenvolver uma capacidade de leitura muito específica. Não se pode chamar “ler nas entrelinhas”, ia mais além: “ler nas entreentrelinhas”. Procurar numa notícia um detalhe a que ninguém mais dava importância e elevá-lo à categoria de parágrafo guia. 

Do seu saudoso pai, antigo agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado, herdara não apenas a devoção a São Salazar, mas também o culto da ordem e do respeito. Enquanto se olhava ao espelho, procurava nas suas feições vestígios do rosto autoritário do desaparecido progenitor e concluía que era mais desafortunado por viver nestes tempos.  Ao pai coubera em sorte defender a Pátria da ameaça do comunismo, um cancro que minava as fábricas e explorações agrícolas. Com que amor pelo Estado infligia torturas físicas e psicológicas a estes bolcheviques! Era com espírito de missão que apagava os cigarros nas suas costas ou lhes arrancava as unhas. Nada melhorava mais a disposição deste diligente funcionário do que fazer “cantar” um destes vermelhos à bastonada. Chamavam-lhe “maestro” porque sob a sua “batuta”, todos acabavam por “cantar” ou então numa cama do hospital. Depois disso, Tarrafal, lugar do Chão Bom, onde a comida apenas impedia que caíssem no chão inanimados e os médicos existiam só para assinar declarações de óbito.  

Felizmente que o seu pai tinha sido poupado a estes tempos. Acabou por morrer cedo, já com o país a festejar uma pirralha liberdade. Talvez dos nervos que sentia por temer ser reconhecido na rua por algum comunista dos que tinha torturado tivesse acelerado a sua partida. Contudo, pensa António, com alívio, sem remorsos por ter servido o país. A António afligia-o não ter podido usufruir dessa honra. Tinha feito os 18 anos e estava na tropa quando veio o destacamento para o ultramar. Guiné. A família via aquilo como uma sentença de morte. António era enfermiço, não havia doença infantil que o não tivesse apoquentado e ainda o acompanhava a asma, a rinite e outros achaques sem fim. Para fazer a recruta, fora o cabo dos trabalhos. Antevendo que António seria repasto para mosquitos e que o paludismo o mataria mais depressa que as balas do inimigo, a família empenhou-se em evitar tal fatalidade. O pai era alguém na polícia política e conhecia as pessoas certas. Sabia muita coisa sobre muita gente e entre a oferta de favores e a sugestão de uma ameaça, conseguiu que o filho ficasse pela metrópole. Não teve, assim, o privilégio de colocar a sua vida entre a pátria amada e aquelas que a queriam ameaçar.

António recordava ainda o confinamento a que o seu pai fora obrigado durante vários anos após a revolução. Revivia o seu desanimo ao ver que um homem grande e orgulhoso ia definhando neste abominável novo mundo. Isso fazia crescer o seu ressentimento para com a Revolução. Lembrava a quarentena que o pai cumpriu, sem aparecer na rua, a ida para uma aldeia perdida no mapa em Trás-os-Montes onde ninguém suspeitasse das funções que desempenhara com tanto zelo, até ao dia em que morreu e António e a mãe puderam, enfim, regressar ao apartamento vazio no Lumiar. 

Lembrava-se e passava a mão pela calva, único vestígio do cabelo desgrenhado que, contra a sua sensibilidade estética, outrora fora obrigado a ostentar. Reflete. “eram as máscaras da altura, não se podia sair à rua de outra maneira.” Eram tempos em que o cabelo curtinho nem a militares ficava bem visto. As ideias novas saíam, livres, da cabeça e iam deslizando pelos cabelos, infetando tudo e todos, como piolhos, de novas palavras de ordem que inspiravam a maior repulsa em António. Cabelo à escovinha e barba aparada era sinónimo de reacionário e António tinha, na altura, muito medo de que o identificassem como o filho do PIDE. Hoje, felizmente, pensa, as coisas mudaram muito. Apareceu finalmente um partido que defende “os portugueses de bem”, que quer acabar com a “esquerdalha”, que desmonta as mentiras do “jornalixo” e que aceita todos os que querem acabar com a ameaça vermelha no país: dos saudosistas do Estado Novo a Neo-nazis todos são essenciais. “Afinal, se a extrema esquerda pode existir, por que não a extrema direita?!” Tantos anos de liberdade e ele sem liberdade para dizer o que pensa! Que leveza em poder dizer que os pretos deviam voltar para África e os ciganos deviam ser exterminados! E ainda ser aplaudido pelos seus correligionários.

Os dias começavam cedo, tomava um pequeno-almoço espartano, condizente com a situação, já lendo os destaques do seu periódico favorito, Alerta da Manhã. Pegava depois no computador portátil, removendo o sudário de plásticos que o protegiam, para começar o seu trabalho. Tratava-o com o mesmo desvelo que um atirador furtivo trata a sua arma. Encontrou uma primeira notícia que lhe chamou a atenção: “Um campo de refugiados às portas de Beja”. Condicionado para se enervar com a palavra refugiado, imediatamente abriu a notícia, era afinal sobre ciganos. Ainda assim, não fora tempo perdido. Clicou em “partilhar” e produziu as exclamações: “A esta gente nada se lhes pega! O vírus havia era de os levar, para deixarem de mamar à conta dos nossos impostos!” Ao fim de dez minutos, verificou, contente, que tinha cinquenta gostos, vários comentários concordantes e vinte partilhas. Uma onda de prazer percorreu-lhe o corpo, sentimento inequívoco de dever cumprido. Encontrou depois uma publicação sobre os mercados de venda de animais para consumo na China, com espécies pouco ortodoxas para os padrões ocidentais. Nova partilha com a legenda: “Boicote aos produtos e lojas dos chineses! Raça que não acaba, querem dominar o mundo com esta doença! Abram os olhos!” Novo coro de aprovação e aclamação. Por acaso, só por acaso, as notícias eram verdadeiras. António tinha descoberto que a verdade, nas redes sociais, é sobrevalorizada. Preferia acreditar numa mentira que lhe agradasse do que numa verdade que lhe fosse amarga. “A generalidade das pessoas é assim”, refletia, “basta ver como é no futebol, nunca parece haver falta se o penalti é contra a nossa equipa.” Por isso, mesmo sabendo que se tratava de uma aldrabice pegada, partilhava as maiores infâmias sobre os políticos canhotos, sobre ativistas, jornalistas ou aquele que fosse o inimigo do dia.

A seguir era a hora dos programas de rádio que realmente interessavam. As antenas abertas e fóruns públicos. “As pessoas estão fartas de ouvir falar os doutores e engenheiros, quase todos da extrema esquerda. É preciso dar a voz aos portugueses autênticos.” Felizmente, inconsciente da ironia por assim pensar, ele que sempre fora um defensor da limitação da liberdade de expressão de que a organização de seu pai fora expoente máximo, lá marcou os números para participar nos dois programas mais populares. Raramente era escolhido para participar, mas tentava todos os dias. Não falasse ele e falaria outro António. As pessoas iam perdendo o medo de chamar bois aos bois. Os temas variavam, mas a António isso era indiferente. Tinha um guião fixo que apenas necessitava da introdução, essa sim dependia do tema. O pretexto podia ser futebol, educação, racismo, saúde, trabalho, pesca, drogas, Europa, o que fosse. António acabaria por falar do 25 de Abril, do fracasso da democracia, da dissolução dos costumes, da insegurança, das minorias que sugavam o estado social, do marxismo cultural, da ideologia de género e da corrupção. Quando acontecia entrar em direto, ficava num estado de excitação anormal que só acalmava muitas horas mais tarde. Sentia até, apenas nesses momentos, um volume a que já não estava habituado a crescer-lhe nas calças. 

Depois do meio-dia, ouvia a conferência de imprensa com os últimos dados. Tentava ler nas expressões dos ministros e delegados de saúde que tipo de novidades vinham relatar. Desejava, secretamente, que aumentasse o número de infetados e mortos. Quanto maiores os números, mais sucesso obtinham as suas publicações. Quanto mais medo, mais fechados ficavam todos. Refletia: “As mais definitivas das prisões têm sempre o trinco do lado de dentro. Ninguém é aprisionado tão irremediavelmente como quem o faz de livre vontade”. Pegava nos gráficos e indignava-se no mundo virtual: “Enquanto não tirarem às pessoas a liberdade de andarem pela rua, isto não vai ter fim!” Se não era suficiente o medo para levar ao isolamento, António pensava que devia ser o Estado, pela força. Se os números calhavam a baixar, era a sorte, a chuva, era a responsabilidade de alguns cidadãos. Se subiam… bem, se subiam a culpa era dos deputados de esquerda, viciados na peçonhenta liberdade. 

A seguir ao almoço, alguns dos vizinhos vinham à rua. Uns passeavam os cães, que ajudavam a morder a solidão, outros davam pequenos “passeios higiénicos” separados por muitos metros e sem ajuntamentos. António a todos interpelava, cuspindo-se de raiva, do alto da sua janela. “Cambada de irresponsáveis! Haviam de ser presos!” 

De regresso às redes, via que alguém tinha publicado críticas à classe política e dirigente por não ter aplicado medidas restritivas mais cedo, as chamadas "sopas depois de almoço". Não era nenhum especialista, era um antigo colega de trabalho no escritório de contabilidade. Para António era um calhau com olhos, ainda por cima de esquerda, mas desta vez estavam de acordo por isso deixou um "gosto" e o seu costumeiro chiste: “No tempo do Salazar, os políticos eram homens sérios! Agora temos a extrema-esquerda no poder…” 

Ah, eram dias felizes para António. Ainda mais quando o Presidente da República e o Primeiro-Ministro anunciaram, por fim, o endurecer das medidas de contenção. Quem circulasse na rua tinha sempre de ter um documento que o justificasse. Quem não cumprisse, levava multas pesadas e penas de cadeia. Faltou apenas a "delação premiada" para que António ficasse plenamente satisfeito. As ruas, já de si desertas, ficaram ainda mais vazias. As pessoas que cantavam às janelas desanimavam com o prolongar do cerco, recolheram-se ainda mais como se a simples visão das ruas, agora vedadas, lhes provocasse uma angústia insuperável, uma saudade da antiga rotina que antes lhes parecia desinteressante. 

Certo dia, ao executar o seu demorado ritual antes de dormir, apercebeu-se que se estava a acabar a pomada Viks VapoRub. António tinha lido algures nas redes sociais que era um medicamento muito eficaz para prevenir e combater o vírus. Naturalmente, só não era mais divulgado porque a indústria farmacêutica não tinha interesse em que se soubesse. As redes sociais pululavam de páginas “pela verdade” que desmascaravam conspirações de dimensões globais: a rede 5G que controlava o cérebro da população, a vacina para a enfermidade que iria implantar um chip para transmitir dados biométricos às grandes corporações, os “Chemtrails” espalhados pelos aviões que disseminavam químicos pela atmosfera para tornar a população mais dócil e não questionar os seus líderes reptilianos vindos de outro planeta. Havia teorias para o menino e para a menina, era à escolha. Sempre que alguém um pouco mais iluminado chamava a atenção para o absurdo por detrás dessas ideias, os seus seguidores, mandavam-no, invariavelmente, de volta para o rebanho. De maneira que, na manhã seguinte, preparou-se com luvas, máscara e uma garrafa de álcool no bolso e saiu de casa em direção à farmácia com o fito de comprar alguns frascos. 

Ia, feliz por não ter encontrado vivalma no trajeto, quando foi abordado por uma patrulha da polícia. Dir-se-ia que os dois homens estavam cansados da situação, enervados por estarem sempre separados das famílias e expostos aos maiores riscos. Só isso explica que se tenham dirigido a António, que tinha idade para quase ser seu avô com modos tão rudes: “Olha-me este! Que é que andas a fazer na rua, ó velho? Mostra lá a tua justificação.” António empalideceu, não tinha justificação. Começou a explicar que ia comprar o Viks, que era um método infalível para evitar a doença. Os agentes começaram a rir, nem disfarçavam o que achavam de António. “Está bem ó avozinho, diga lá onde mora que vamos levá-lo.” António resistiu, indignou-se, procurou no telemóvel o artigo para mostrar aos agentes. Estes riram ainda mais. Chamou-lhes nomes, desrespeitou a farda e trinta por uma linha, até que um deles perdeu a paciência, atirou-o ao chão com uma facilidade que António não antevira e o algemou. Colocaram-no no carro à força e levaram-no para casa. 

À chegada, uma receção surpreendente. Os vizinhos, todos à varanda. Nas janelas, caras surpreendidas com o que se via: António saía do carro patrulha algemado e com a ajuda dos polícias. Foi libertado, mas os seus carcereiros esperavam que ele se encaminhasse para a porta do prédio. Os vizinhos começaram então, como que num coro ensaiado, a devolver a António, de uma vez, todos os impropérios que foram guardando durante a quarentena, numa enxurrada de raiva artificial, com muito riso contido, que fez o quarteirão estremecer. Entrou no prédio de cabeça baixa e só saiu para receber a primeira dose da vacina. 

Nunca mais vi nada publicado por ele nas redes sociais desde essa altura, mas ainda o vejo todo o dia à marquise, vigilante. Quis-me vender o computador, estimado como estava e sendo bom o preço, aceitei. Disse-me que já não lhe dava uso. Foi um bom negócio para os dois. Quando o liguei pela primeira vez, fui ver o histórico de navegação. A última página que visitou foi a de um jornal que investiga e denuncia notícias falsas, dizia que era mentira que o Viks prevenisse ou curasse o vírus.

 

 

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