Sempre chegamos ao sítio
aonde nos esperam
José Saramago
No tempo em que vivia ainda em sociedade,
estava sempre a desfazer o mesmo equívoco, Teseu, T-E-S-E-U. Numa aldeia em
que, por tradição, é o padre quem batiza os recém-nascidos, seria de esperar
que houvesse gerações inteiras com nomes retirados dos Testamentos, mas não. O
padre citava Homero com o mesmo fervor que colocava nas leituras dos
evangelhos, de maneira que os nomes dos aldeões remetiam, irremediavelmente,
para a civilização helénica. Os amigos de infância de Teseu partilhavam este
infortúnio que os acompanhou pela vida fora. De Apolo a Zeus eram forçados a
soletrar o nome nas repartições públicas, com grande inconveniente e
desperdício de tempo.
Quem, por improvável acidente, se depara
com Teseu, fica surpreendido. Tentar definir a sua idade é um exercício que nos
confunde. A calma e resignação dos anciãos contrasta com uma face que não se
mostra ainda marcada pela passagem dos anos. A sua vida, embora curta, tem sido
rica em acontecimentos, ora milagrosos, ora trágicos. Recorda-os muitas vezes, perseguem-no
durante as noites insones na sua cela. Nas ocasiões em que adormece, vencido
pelo cansaço, revive esses momentos, incapaz de os alterar ou compreender.
Acabou por aceitá-los, o que lhe trouxe algum conforto.
Órfão de mãe e com pai incógnito, viveu a
sua infância, criado pela avó, perto de uma pequena aldeia chamada Monfurado. A
única lembrança que alguma vez teve de quem o pôs no mundo foi o preto de que
se cobria a avó e uma fotografia da mãe em cima de uma cómoda, ornamento único
na sua humilde casa. A avó, Umbelina, já Teseu apenas conheceu como uma sombra
da rapariga capaz de andar de sol a sol, dobrada, a mondar e ainda chegar a
casa com vagar e disposição para resolver os trabalhos domésticos. Um ataque
qualquer sofrido por altura do nascimento do neto, tinha-a deixado com uma
perna “teimosa” e uma parte da cara paralisada. Umbelina era apenas capaz de
meios sorrisos para o neto, numa expressão gasta e carregada pelo luto.
Em volta desta aldeia existe uma serra com
o mesmo nome onde, séculos atrás, viveu uma comunidade de monges no Mosteiro de
Nossa Senhora do Castelo das Covas de Monfurado. Alguns anos depois de
finalizada a construção, veio o grande terramoto, reduzindo-o a ruínas. Grande
parte dos monges abandonou o local, mas outros dos religiosos, da ordem dos
Monges Eremitas Descalços de São Paulo, ficaram a viver em lapas e grutas,
abundantes na serra, para se penitenciarem. Mais do que estarem expostos aos
elementos e à fome, o maior castigo era o silêncio do céu, a ignorância das
ofensas que teriam causado esta punição divina. Ainda hoje, quase engolidos
pela natureza, há vestígios destes monges: as ruínas e as covas. Este lugar tem
exercido grande atração sobre os locais que, quando jovens, inspirados pela
literatura de aventura e pelos heróis do cinema, sentem a tentação de os
explorar.
Também Teseu ouvia este canto de sereia.
Para o afastar, a avó bem inventava elaboradas fantasias sobre monges que ainda
por lá se escondiam, alimentando-se da carne de meninos desobedientes ou ainda estórias
sobre os fantasmas de religiosos que se finaram, soterrados pelas vigas e cujos
lamentos se conseguiam ouvir em noites de temporal. Pretendia a senhora afastar
o rapaz deste lugar perigoso, mas só lhe fazia crescer o desejo de o explorar.
O convento tinha para Teseu, como para os outros habitantes da aldeia, tanto de
assustador como de sedutor. Qualquer rapaz que se quisesse provar homem tinha
que o visitar, sozinho, para mostrar a sua coragem.
Um dia, chegando tarde a casa, ocupado a
apanhar cogumelos e cardos, a avó fez-lhe nova advertência sobre o mosteiro,
imaginando que teria sido talvez esse o caminho que o rapaz tinha tomado. Sem
saber bem porquê, Teseu adotou, nesse instante, a resolução de, no dia
seguinte, se testar na serra. Umbelina não soube desta decisão do neto nem
calculou que foi o seu aviso que o decidiu a alterar o percurso no dia
seguinte. Mesmo que o viesse a saber, não se culparia pelo que aconteceu.
Acreditava em algo que guiava os nossos passos, em lugares comuns como ser a vida
um livro que contém todos os acontecimentos, do nascimento à morte, do qual
vamos apenas conhecendo, vagarosamente, página a página. “Estava escrito” dizia
às vezes, como se soubesse ler, ela que desconhecia todos os alfabetos. “Calha
assim” era o ponto final das conversas sempre que tinha de justificar uma seca
que arruinava as colheitas, ou a morte de um vizinho ainda novo de uma “doença
manhosa”.
Muitas vezes, ao serão, sobretudo no
inverno, quando as noites frias mais convidavam os corpos a juntarem-se junto à
lareira, as chamas a lançarem sombra e fumo pelas suas caras, Umbelina
evangelizava o neto nesta fé. Pouco sucesso obtinha, Teseu rebelava-se. Então
não era ele um homem? Não estava nas suas mãos o que havia de vencer ou perder?
Seria a vida apenas um lançamento de dados à nascença? Não aceitava, com os
seus escassos anos e tanto por viver, não ser ele o senhor do seu destino.
Assim, quando tudo aconteceu, a avó
entendeu que o sucedido foi congeminado por essa força secreta e Teseu percebeu
uma mão invisível a guiá-lo.
No dia seguinte, lá marchou. Ao entrar,
satisfeito por tornar-se, afinal, um homem, surpreendeu-se por não sentir medo.
Percorreu a igreja despojada dos símbolos e imagens, descansou no claustro que
a vegetação reclamava, aventurou-se na cripta decifrando as pedras tumulares e
subiu os estreitos degraus que conduziam ao cimo do campanário. Comparava a
paisagem que descobria com o que a sua imaginação lhe arquitetara. Percorria-o
um sentimento de familiaridade, como se conhecesse já aquele lugar. Olhando o
sol, deu pelo avançar das horas e decidiu voltar. Antes disso, atraído por uma
pereira brava, decidiu apanhar alguma fruta. Não tinha a certeza de estar a
roubar. Ainda que estivesse, a fruta roubada sempre lhe soubera melhor. Feita a
colheita, apontou em direção à aldeia.
Era o final de um dia de calor e o céu do
poente parecia explodir de cores atrás da serra, a infinidade de tons entre o
laranja e púrpura lembrava outras tantas possibilidades em aberto. A luz
dourada estava no próprio ar que Teseu respirava, confundia-se com o cheiro a
silvados e montado. O rapaz sentia-se fora do tempo. Acomodava, cuidadosamente,
os soromenhos nos bolsos, quando uma vertigem tomo conta dele. Todo o mundo se
agitou e contorceu. O céu do fim da tarde aparecia e desaparecia de repente. Os
pés, mesmo agitados de modo frenético, não alcançavam o chão. Apenas o choque
do seu corpo contra alguma coisa lhe deu a noção concreta do que tinha
acontecido. Abriu os olhos e deu por si dentro de uma cova, a saída a uma
altura impossível. Debateu-se algum tempo com esta realidade, tentou negá-la.
Talvez fosse um sonho e não tardasse muito que a avó o acordasse. As dores que
sentia, bastante reais, apontavam noutro sentido. Sentindo-se de novo pequeno e
tomando consciência das circunstâncias, foi procurando locais onde se agarrar e
apoiar os pés até aceitar que esta escalada estava para além da sua força e
perícia. A humidade tornava a escalada ainda mais difícil. As mãos, feridas e
desesperadas, foram desistindo aos poucos.
Durante duas noites, Teseu esteve naquele
buraco. Sozinho. Pela primeira vez, realmente sozinho. Exposto ao frio e apenas
com um punhado de peras para se alimentar. Não em três frases como aqui. Longas
foram as quarenta horas em que suportou o medo e a fome. Ouviu no vento que
soprava os lamentos e as fúrias dos frades. A escuridão dava forma aos seus
medos pueris, monstros com formas bestiais: touros, serpentes, javalis. Os
primeiros raios da alvorada em vez de consolo, apenas ofereciam alguma luz à
sua situação. As paredes que tateava de noite, tinham agora a forma concreta de
uma prisão, eram reais. A garganta, cansada de tanto gritar, protestava a cada
nova tentativa de encontrar quem lhe pudesse acudir. Consumidas as peras
bravas, a fome instalava-se aos poucos. Sentindo-se enfraquecer e desmotivar,
Teseu começava a resignar-se à inevitabilidade.
Quem, aos dez anos, poderá já conhecer as
facetas todas do destino? A resposta parece óbvia. Se nem no leito da morte grande
parte da raça humana a chega a encontrar, como poderia Teseu tê-las encarado?
Contudo, a morte não lhe era estranha. O retrato da mãe que não chegara a
conhecer lembrava-lhe, todos os dias, que a morte existe. Para combater o medo,
a fome e o tédio, tentava lembrar-se de todas as pessoas que conhecera e tinham
morrido. Procurava recordar o nome de todos os mortos que velara, arrastado
pela avó. Teseu sabia que tinham sido muitos e seriam ainda mais depois dele.
Os pensamentos iam-se sucedendo, cada vez
mais rebeldes, desobedecendo à sua vontade. Imaginava a avó preocupada por ele
não chegar a casa, a procurá-lo cada vez mais desesperada. Depois a receber a
notícia de que fora encontrado ali, sem vida. Angustiava-se por lhe infligir
esta dor e imaginava-se noutro retrato na cómoda, ao lado da mãe.
O fim deste tormento veio por fim. Teseu
esperava uma morte em figura de gente, como descrita nos contos da avó, uma
morte com quem se podia conversar e mesmo negociar, mas acabou por ser a cara
sardenta de uma colega da escola, Ariadne, que encontrou ao olhar para cima.
Duvidou do que via, habituado a supor vultos e iludir-se com vozes na sua
vigília. A cara desapareceu tão depressa como tinha aparecido, o que parecia
confirmar a ideia de uma aparição, mas Ariadne tinha ido chamar ajuda. Passadas
algumas horas, carregado ao colo, entrava triunfalmente na aldeia. A notícia do
seu resgate correra depressa já que todas as almas do local o procuravam
incessantemente desde que a avó dera o alerta. Todos queriam encontrar o
garoto, alguns por genuína preocupação, muitos por vaidade, como se Teseu fosse
um prémio. Por isso, quando se sabia que tinha sido encontrado, perguntavam
quem tinha sido o autor dessa proeza. Todos acharam estranho que o padre se
risse com a resposta.
Teseu nunca mais quis largar de vista a
rapariga que o tinha salvo. Logo que se restabeleceu, procurava estar junto
dela todos os dias. Na escola, encontrava-a ao intervalo, acompanhava-a a casa,
em silêncio, quando saíam. Levava-lhe fruta da época, colhida no pomar que
tinham perto monte. Às vezes, escrevia-lhe curtos bilhetes ou arriscava poemas
que ela amarrotava e deitava fora. Vivia alheado do resto, apenas Ariadne o
ligava a este mundo. Os instantes em que não estava próximo dela eram ocupados
a recordar a sua figura e as constelações de sardas do seu rosto. A rapariga
acabou por habituar-se a esta presença lacónica e àqueles olhos, sempre
apontados aos seus. Durante anos, Teseu foi uma sombra, que Ariadne tolerava
graciosamente porque parecia compreender que algo os unia.
Um dia, Ariadne surpreendeu o olhar de
outro rapaz, Dionísio, e soube que este a amava. Corou e sorriu-lhe
abertamente. Casaram depois de um curto noivado. Tudo tão rápido que Teseu nem sabia o que pensar, sentia
tremer o chão que pisava. Quando viu os noivos sair da pequena igreja da
aldeia, sentiu-se perdido. Pouco depois, Ariadne mudou-se para Vila Nova, para
longe do rapaz que agora a enfastiava. Mesmo assim, tudo na aldeia lhe fazia
lembrar a cara daquela que o obcecava desde o momento em que tinha renascido.
Pensou em partir, buscar outra terra, outras gentes, mas sabia que isso lhe
não traria alívio. Vagueava pelas ruas da aldeia. Quem o via passar, cabelo em desalinho e ar de quem tinha perdido o tino, metia-se em casa,
corria o trinco e benzia-se. Passava à casa onde viveu Ariadne várias
vezes durante o dia. Havia quem jurasse tê-lo visto, enroscado como um cão
abandonado, a dormir à porta da igreja, onde a vira pela última vez.
Procurando um fim para o seu tormento,
percorreu os quilómetros que o separavam da rapariga. Demorou alguns dias a
encontrá-la, percorrendo as ruas de dia e dormindo onde calhava durante a
noite. Encontrou-a à saída de uma mercearia, carregada de sacos e esperanças:
— Ariadne… — o tom entre o lamento e a
súplica.
— Teseu, o que é que… — o olhar da
rapariga não se erguia do chão desde que o vira. Não havia medo, apenas frio.
— Não sei, precisava de te ver… Preciso de
te ver — procurou ser determinado, mas a voz falhava.
— Mas porquê? Porque é que tens que estar
sempre atrás de mim? — Ariadne arrastava a voz para que soasse calma. Respirou
fundo, fechou os olhos e colocou as mãos sobre o ventre, acariciando-o.
Teseu deu por todos os gestos. Conhecia-a
melhor que ninguém. Já a tinha observado a tentar disfarçar a irritação com esta
falsa tranquilidade para, de seguida, explodir em fúria. Por isso, decidiu-se a
dizer tudo de uma vez.
— A cova! Tu encontraste-me! Tu
salvaste-me! Estás ligada a mim…
A fúria prevista impediu-o de dizer o
resto:
— Estou ligada a ti? Porquê? Deixa-me! Salvei-te, é verdade, foi por minha causa que saíste daquele buraco, mas parece que... Às vezes desejo nunca te ter encontrado, que tivesses ficado lá e me... — respirou fundo, canalizando toda a calma que conseguia reunir — nos deixasses em paz!
A conversa terminou assim. Ariadne deixou-o
com estas palavras definitivas. A Teseu nunca mais ninguém ouviu a voz. Decidiu guardar os
seus poucos haveres numa saca e encaminhou-se para o mosteiro. Como os
monges Eremitas Descalços de S. Paulo, também este jovem Teseu se adentrou no
coração da serra. Aí, tomando uma vida de silêncio e contemplação, diz-se que
conseguiu, numa cela do mosteiro, encontrar a paz que lhe faltava desde o dia
em que Ariadne o retirou de onde o destino o esperava.
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