“Só me falta a farda!” Não conseguiu conter a força do
pensamento de maneira que lhe saiu em voz alta em frente ao espelho. Começava
mais um dia de quarentena e de trabalho para António Oliveira. Apesar de
reformado e fazendo parte dos grupos de maior risco por força da idade, não era
medo que sentia durante esta pandemia. Animava-o uma nova vitalidade, uma
alegria estranha ao ver, nas notícias, os soldados pelas ruas.
Tempos houve, de má memória para António, em que a
tropa na rua era sinónimo de desgraça e degeneração. Mas agora não! Impunham a
ordem que desejava que fosse geral ao país, ao mundo. Durante as horas do dia
em que o corpo não reclamava o descanso, estava na marquise com um olho,
vigilante, na rua, pronto a gritar ordens e imprecações a quem avistasse, e
outro no computador, ligado às redes sociais. Este aparente estrabismo era
alegremente suportado por António que desejava que o livrassem, a ele e aos
outros, desse vício que era a Liberdade, empregando mais músculo na aplicação
de medidas de contenção. “Todos temos que fazer sacrifícios”. Era assim
que colocava as coisas. E, afinal, que sacrifício era este? Ficar em casa,
com todos os confortos da vida moderna: água canalizada, esgotos, eletricidade,
internet! O confinamento nunca foi tão fácil como agora. Com um
telefone ou só com a internet pode-se encomendar de tudo. Fruta,
verduras, carne, peixe, móveis, eletrodomésticos, vinho, medicamentos,
máscaras, álcool gel… Até brinquedos sexuais para os mais pervertidos, António
tinha visto por curiosidade.
Opinava muito, lia bastante, ignorava as notícias
quando os factos reportados não validavam os seus pontos de vista, mas
partilhava muitos rumores e boatos quando eram mais do seu
interesse. Acabara por desenvolver uma capacidade de leitura muito
específica. Não se pode chamar “ler nas entrelinhas”, ia mais além: “ler
nas entreentrelinhas”. Procurar numa notícia um detalhe a que ninguém mais
dava importância e elevá-lo à categoria de parágrafo guia.
Do seu saudoso pai, antigo agente da Polícia
Internacional de Defesa do Estado, herdara não apenas a devoção a São Salazar,
mas também o culto da ordem e do respeito. Enquanto se olhava ao espelho,
procurava nas suas feições vestígios do rosto autoritário do desaparecido progenitor
e concluía que era mais desafortunado por viver nestes tempos. Ao
pai coubera em sorte defender a Pátria da ameaça do comunismo, um
cancro que minava as fábricas e explorações agrícolas. Com que amor pelo Estado
infligia torturas físicas e psicológicas a estes bolcheviques!
Era com espírito de missão que apagava os cigarros nas suas costas ou
lhes arrancava as unhas. Nada melhorava mais a disposição
deste diligente funcionário do que fazer “cantar” um destes vermelhos
à bastonada. Chamavam-lhe “maestro” porque sob a sua “batuta”, todos
acabavam por “cantar” ou então numa cama do hospital. Depois disso,
Tarrafal, lugar do Chão Bom, onde a comida apenas impedia que
caíssem no chão inanimados e os médicos existiam só para assinar
declarações de óbito.
Felizmente que o seu pai tinha sido poupado a estes
tempos. Acabou por morrer cedo, já com o país a festejar
uma pirralha liberdade. Talvez dos nervos que sentia por temer
ser reconhecido na rua por algum comunista dos que tinha
torturado tivesse acelerado a sua partida. Contudo, pensa António, com
alívio, sem remorsos por ter servido o país. A António afligia-o não ter
podido usufruir dessa honra. Tinha feito os 18 anos e estava na tropa quando
veio o destacamento para o ultramar. Guiné. A família via aquilo como uma
sentença de morte. António era enfermiço, não havia doença infantil que o não
tivesse apoquentado e ainda o acompanhava a asma, a rinite e outros achaques
sem fim. Para fazer a recruta, fora o cabo dos trabalhos. Antevendo que António
seria repasto para mosquitos e que o paludismo o mataria mais depressa que as
balas do inimigo, a família empenhou-se em evitar tal fatalidade. O pai era
alguém na polícia política e conhecia as pessoas certas. Sabia muita coisa
sobre muita gente e entre a oferta de favores e a sugestão de uma ameaça,
conseguiu que o filho ficasse pela metrópole. Não teve, assim, o privilégio de
colocar a sua vida entre a pátria amada e aquelas que a queriam ameaçar.
António recordava ainda o confinamento a que o seu pai
fora obrigado durante vários anos após a revolução. Revivia o seu
desanimo ao ver que um homem grande e orgulhoso ia definhando neste abominável
novo mundo. Isso fazia crescer o seu ressentimento para com a Revolução. Lembrava
a quarentena que o pai cumpriu, sem aparecer na rua, a ida para uma aldeia
perdida no mapa em Trás-os-Montes onde ninguém suspeitasse das funções que
desempenhara com tanto zelo, até ao dia em que morreu e António e a mãe
puderam, enfim, regressar ao apartamento vazio no Lumiar.
Lembrava-se e passava a mão pela calva, único vestígio
do cabelo desgrenhado que, contra a sua sensibilidade estética, outrora fora
obrigado a ostentar. Reflete. “eram as máscaras da altura, não se podia sair à
rua de outra maneira.” Eram tempos em que o cabelo curtinho nem a militares
ficava bem visto. As ideias novas saíam, livres, da cabeça e iam deslizando
pelos cabelos, infetando tudo e todos, como piolhos, de novas palavras de ordem
que inspiravam a maior repulsa em António. Cabelo à escovinha e barba aparada
era sinónimo de reacionário e António tinha, na altura, muito medo de que o
identificassem como o filho do PIDE. Hoje, felizmente, pensa, as coisas mudaram
muito. Apareceu finalmente um partido que defende “os portugueses de bem”, que
quer acabar com a “esquerdalha”, que desmonta as mentiras do “jornalixo” e que
aceita todos os que querem acabar com a ameaça vermelha no país: dos
saudosistas do Estado Novo a Neo-nazis todos são essenciais. “Afinal, se a
extrema esquerda pode existir, por que não a extrema direita?!” Tantos anos de
liberdade e ele sem liberdade para dizer o que pensa! Que leveza em poder dizer
que os pretos deviam voltar para África e os ciganos deviam ser exterminados! E
ainda ser aplaudido pelos seus correligionários.
Os dias começavam cedo, tomava um
pequeno-almoço espartano, condizente com a situação, já lendo os destaques do
seu periódico favorito, Alerta da Manhã. Pegava depois no computador
portátil, removendo o sudário de plásticos que o protegiam, para começar o seu
trabalho. Tratava-o com o mesmo desvelo que um atirador furtivo trata a sua
arma. Encontrou uma primeira notícia que lhe chamou a atenção: “Um campo de
refugiados às portas de Beja”. Condicionado para se enervar com a palavra
refugiado, imediatamente abriu a notícia, era afinal sobre ciganos. Ainda
assim, não fora tempo perdido. Clicou em “partilhar” e produziu as
exclamações: “A esta gente nada se lhes pega! O vírus havia era de os levar,
para deixarem de mamar à conta dos nossos impostos!” Ao fim de dez minutos,
verificou, contente, que tinha cinquenta gostos, vários comentários
concordantes e vinte partilhas. Uma onda de prazer percorreu-lhe o corpo, sentimento
inequívoco de dever cumprido. Encontrou depois uma publicação sobre os
mercados de venda de animais para consumo na China, com espécies pouco
ortodoxas para os padrões ocidentais. Nova partilha com a legenda: “Boicote aos
produtos e lojas dos chineses! Raça que não acaba, querem dominar o mundo com
esta doença! Abram os olhos!” Novo coro de aprovação e aclamação. Por
acaso, só por acaso, as notícias eram verdadeiras. António tinha descoberto que
a verdade, nas redes sociais, é sobrevalorizada. Preferia acreditar numa
mentira que lhe agradasse do que numa verdade que lhe fosse amarga. “A
generalidade das pessoas é assim”, refletia, “basta ver como é no futebol,
nunca parece haver falta se o penalti é contra a nossa equipa.” Por isso, mesmo
sabendo que se tratava de uma aldrabice pegada, partilhava as maiores infâmias
sobre os políticos canhotos, sobre ativistas, jornalistas ou aquele que fosse o
inimigo do dia.
A seguir era a hora dos programas de rádio que
realmente interessavam. As antenas abertas e fóruns públicos. “As pessoas estão
fartas de ouvir falar os doutores e engenheiros, quase todos da extrema
esquerda. É preciso dar a voz aos portugueses autênticos.” Felizmente,
inconsciente da ironia por assim pensar, ele que sempre fora um defensor da limitação
da liberdade de expressão de que a organização de seu pai fora expoente máximo,
lá marcou os números para participar nos dois programas mais populares.
Raramente era escolhido para participar, mas tentava todos os dias. Não
falasse ele e falaria outro António. As pessoas iam perdendo o medo de
chamar bois aos bois. Os temas variavam, mas a António isso era
indiferente. Tinha um guião fixo que apenas necessitava da introdução, essa sim
dependia do tema. O pretexto podia ser futebol, educação, racismo, saúde,
trabalho, pesca, drogas, Europa, o que fosse. António acabaria por falar do 25
de Abril, do fracasso da democracia, da dissolução dos costumes, da
insegurança, das minorias que sugavam o estado social, do marxismo
cultural, da ideologia de género e da corrupção. Quando acontecia entrar em direto, ficava
num estado de excitação anormal que só acalmava muitas horas mais tarde. Sentia
até, apenas nesses momentos, um volume a que já não estava habituado a
crescer-lhe nas calças.
Depois do meio-dia, ouvia a conferência de imprensa
com os últimos dados. Tentava ler nas expressões dos ministros e delegados
de saúde que tipo de novidades vinham relatar. Desejava,
secretamente, que aumentasse o número de infetados e mortos. Quanto
maiores os números, mais sucesso obtinham as suas publicações. Quanto
mais medo, mais fechados ficavam todos. Refletia: “As mais definitivas das
prisões têm sempre o trinco do lado de dentro. Ninguém é aprisionado tão
irremediavelmente como quem o faz de livre vontade”. Pegava nos gráficos e
indignava-se no mundo virtual: “Enquanto não tirarem às pessoas a liberdade de
andarem pela rua, isto não vai ter fim!” Se não era suficiente o medo para
levar ao isolamento, António pensava que devia ser o Estado, pela força.
Se os números calhavam a baixar, era a sorte, a chuva, era a
responsabilidade de alguns cidadãos. Se subiam… bem, se subiam a culpa era dos
deputados de esquerda, viciados na peçonhenta liberdade.
A seguir ao almoço, alguns dos vizinhos vinham
à rua. Uns passeavam os cães, que ajudavam a morder a solidão, outros
davam pequenos “passeios higiénicos” separados por muitos metros e sem
ajuntamentos. António a todos interpelava, cuspindo-se de raiva, do alto da sua
janela. “Cambada de irresponsáveis! Haviam de ser presos!”
De regresso às redes, via que alguém tinha publicado
críticas à classe política e dirigente por não ter aplicado medidas restritivas
mais cedo, as chamadas "sopas depois de almoço". Não era nenhum
especialista, era um antigo colega de trabalho no escritório de contabilidade.
Para António era um calhau com olhos, ainda por cima de esquerda, mas desta vez
estavam de acordo por isso deixou um "gosto" e o seu costumeiro
chiste: “No tempo do Salazar, os políticos eram homens sérios! Agora temos a
extrema-esquerda no poder…”
Ah, eram dias felizes para António. Ainda mais quando
o Presidente da República e o Primeiro-Ministro anunciaram, por fim, o
endurecer das medidas de contenção. Quem circulasse na rua tinha sempre de ter
um documento que o justificasse. Quem não cumprisse, levava multas pesadas e
penas de cadeia. Faltou apenas a "delação premiada" para que António
ficasse plenamente satisfeito. As ruas, já de si desertas, ficaram ainda mais
vazias. As pessoas que cantavam às janelas desanimavam com o prolongar do
cerco, recolheram-se ainda mais como se a simples visão das ruas, agora
vedadas, lhes provocasse uma angústia insuperável, uma saudade da antiga rotina
que antes lhes parecia desinteressante.
Certo dia, ao executar o seu demorado ritual antes de
dormir, apercebeu-se que se estava a acabar a pomada Viks VapoRub.
António tinha lido algures nas redes sociais que era um medicamento muito
eficaz para prevenir e combater o vírus. Naturalmente, só não era mais
divulgado porque a indústria farmacêutica não tinha interesse em que se
soubesse. As redes sociais pululavam de páginas “pela verdade” que
desmascaravam conspirações de dimensões globais: a rede 5G que controlava o cérebro
da população, a vacina para a enfermidade que iria implantar um chip para
transmitir dados biométricos às grandes corporações, os “Chemtrails” espalhados
pelos aviões que disseminavam químicos pela atmosfera para tornar a população
mais dócil e não questionar os seus líderes reptilianos vindos de outro
planeta. Havia teorias para o menino e para a menina, era à escolha. Sempre que
alguém um pouco mais iluminado chamava a atenção para o absurdo por detrás
dessas ideias, os seus seguidores, mandavam-no, invariavelmente, de volta para
o rebanho. De maneira que, na manhã seguinte, preparou-se com luvas, máscara e
uma garrafa de álcool no bolso e saiu de casa em direção à farmácia com o fito
de comprar alguns frascos.
Ia, feliz por não ter encontrado vivalma no trajeto,
quando foi abordado por uma patrulha da polícia. Dir-se-ia que os dois homens
estavam cansados da situação, enervados por estarem sempre separados das
famílias e expostos aos maiores riscos. Só isso explica que se tenham dirigido
a António, que tinha idade para quase ser seu avô com modos tão rudes: “Olha-me
este! Que é que andas a fazer na rua, ó velho? Mostra lá a tua justificação.”
António empalideceu, não tinha justificação. Começou a explicar que ia comprar
o Viks, que era um método infalível para evitar a doença. Os agentes
começaram a rir, nem disfarçavam o que achavam de António. “Está bem ó
avozinho, diga lá onde mora que vamos levá-lo.” António resistiu, indignou-se,
procurou no telemóvel o artigo para mostrar aos agentes. Estes riram ainda
mais. Chamou-lhes nomes, desrespeitou a farda e trinta por uma linha, até
que um deles perdeu a paciência, atirou-o ao chão com uma facilidade que
António não antevira e o algemou. Colocaram-no no carro à força e levaram-no
para casa.
À chegada, uma receção surpreendente. Os vizinhos,
todos à varanda. Nas janelas, caras surpreendidas com o
que se via: António saía do carro patrulha algemado
e com a ajuda dos polícias. Foi libertado, mas os seus carcereiros
esperavam que ele se encaminhasse para a porta do prédio. Os vizinhos começaram
então, como que num coro ensaiado, a devolver a António, de uma vez, todos os
impropérios que foram guardando durante a quarentena, numa
enxurrada de raiva artificial, com muito riso contido, que fez o quarteirão estremecer. Entrou
no prédio de cabeça baixa e só saiu para receber a primeira dose da vacina.
Nunca mais vi nada publicado por ele nas redes sociais
desde essa altura, mas ainda o vejo todo o dia à marquise, vigilante. Quis-me
vender o computador, estimado como estava e sendo bom o preço, aceitei.
Disse-me que já não lhe dava uso. Foi um bom negócio para os dois. Quando o
liguei pela primeira vez, fui ver o histórico de navegação. A última página que
visitou foi a de um jornal que investiga e denuncia notícias falsas, dizia que
era mentira que o Viks prevenisse ou curasse o vírus.