Quando os sinos começavam a tocar a anunciar a ida de algum
habitante desta para melhor, era quando a menina Anita se sentia mais viva.
Saía à rua a saber quem era o finado. Voltava para casa, aborrecida, se era
alguém com quem tinha pouca lidação ou pessoa com que estava desavinda por
razões próprias ou familiares. Quando era um moço ou moça da sua criação,
parente próximo ou afastado, aí sim! Já tinha planos para o serão. Tinha como
passatempo passar a noite a velar os falecidos e a confortar os seus
familiares.
Solteira e com poucas distrações apropriadas ao estado
civil, suportava melhor o frio ora da igreja ora da casa mortuária, conforme a
notoriedade do morto. Diziam as más línguas, que as há em todo o lado, que era
por ter a cama fria que não lhe faziam diferença essas noites insones e geladas
sentada em frente aos caixões. Só que a menina Anita era bem-avisada, e
apresentava-se sempre com um xaile bem grosso, um gibão quente, uma manta de lã
para pôr aos joelhos e uma almofada para aquecer e proteger o avantajado
traseiro da rijeza das cadeiras de pau. E enquanto os restantes amigos e
parentes do finado, amadores nestas lides, batiam o queixo, estava ela bem
aquecida e até com umas cores nas faces.
Os dias até podiam ser monótonos e tristes, com a
papada encostada ao postigo da sua rua que, por infelicidade, não tinha muito
movimento. Tristes era também os serões nos dias em que calhava a não morrer
ninguém. O telejornal com notícias que sentia não lhe dizerem respeito, uma
telenovela brasileira a que prestava pouca atenção, uma caneca de leite morno e
cama. Mas se havia morto para velar, Anita era mais feliz. Havia conversas para
escutar, viúvas e órfãos a quem confortar e podia olhar à sua volta, analisando
todos os detalhes de cada um, da indumentária à profundidade da dor. Ocupados
como estavam, ninguém daria pelo seu olhar inquisidor.
Entrava com um ar de compaixão e benzia-se
cerimoniosamente em frente ao corpo. Olhava a cara do defunto antes de proclamar: "está tal e qual como ele era." Rezava um padre nosso de olhos fechados e,
quando os abria, procurava a família para lhes oferecer os pêsames. Era uma
profissional nesta área, dirigia-se aos cônjuges e aos filhos daquele ou
daquela que ia arrefecendo e, numa voz que evocava lágrimas e lamentos, dizia
solenemente: “os meus sentimentos!” Uma performance digna de nota que ensaiava
muitas vezes no quarto, em frente ao espelho.
Não se pense que a menina Anita se acostumou
rapidamente a este labor. Não! A quem é que não custa uma noite fora do
camalho? Foi-se habituando, como um maratonista que começa a ignorar as dores
nos músculos e a vontade de desistir. Fosse acompanhar os mortos um desporto
olímpico e a menina Anita estaria coberta de ouro, apesar da sua compleição pouco
atlética. Nunca fora magra, nem em moça. Os pais eram proprietários de uma venda,
metade taberna e metade mercearia, pelo que tinha sempre maneira de remendar a
fome com que via andar os outros colegas na escola. As irmãs foram casando e
saindo de casa e ela ficou a ajudar os pais e para tia de muitos sobrinhos.
Quando os pais se foram, vendeu tudo, os supermercados na vila grande tinham
acabado com o negócio. Contudo, continuou a atividade da mãe, carpideira
encartada, que chorava baba e ranho por todos, desde o mais próximo dos amigos
àquele a quem, mesmo na véspera, tinha metido as orelhas a arder. Fora
abraçando esse legado e transformara-se, aos poucos, no braço direito da mãe,
que morreu orgulhosa de quem lhe seguisse o mister.
Agora, sozinha, encarregava-se de acompanhar os
finados da vila, já sem os choros nem dramatismos fora de moda. Em vez disso,
tornou-se especialista em tudo o que diz respeito a enterros. Colecionava, com
o mesmo ardor que os garotos amealham cromos de futebol ou calendários de bolso,
os folhetos com imagens dos falecidos. Inspecionava as coroas de flores e
especulava sobre o preço de cada uma delas. Verificava a qualidade da madeira
do caixão, área em que era especialista e discutia, entendida, com os
proprietários da agência funerária. Analisava os rendilhados que amortalhavam
os falecidos. Comparava tudo de enterro para enterro. Vira, a pouco e pouco, a
casa mortuária alterar-se. As velas de cera a darem lugar a umas bizarras
lâmpadas que imitavam as suas antecessoras. O aparelho de ar condicionado, que
tantas discussões causava aos enlutados, fora instalado por cima da cruz,
aquecendo ou arrefecendo as noites.
Às vezes, calhava a entrar, altas horas da noite, numa
modorra provocada pela falta de sono e chegava a alucinar. O cérebro, cansado,
pregava-lhe partidas. Via os fios das extensões elétricas que ligavam as
lâmpadas, serpentear, ameaçadoramente. Outras vezes, o morto parecia acordar de
um longo sono. Pareceu-lhe em certa ocasião que a cruz, de madeira, derretia.
Sabia que nada disso era verdade, que era um truque da imaginação. Chegava a
entretê-la naquelas longas horas.
Ocupava também estas noites a planear o seu próprio enterro.
O caixão, tinha decidido, seria de mogno escuro. Mas não era só o caixão. Tinha
decidido todos os detalhes como uma verdadeira especialista. Numa ocasião,
chamou à parte o Sr. Arnaldo, agente funerário que mais trabalhava na vila e
com quem tinha muita lidação, e entregou-lhe um envelope. Eram as instruções
para quando ela própria morresse. O Sr. Arnaldo, ficou atrapalhado, não era
costume ser o morto a decidir estas questões, e ficou também admirado com o
conhecimento que esta senhora tinha sobre o seu próprio trabalho.
A menina Anita começou a notar que cada vez menos
pessoas passavam a noite na casa mortuária. Ouvia-se falar que, noutros sítios,
o morto já ficava sozinho de noite, atrás de uma porta trancada. Escândalo!
Impensável! E, ainda assim, a menina Anita olhava à roda e via cada vez menos
gente noite afora. As caras que a acompanhavam, uma a uma foram também sendo
envoltas nas mortalhas, vestindo as suas melhores roupas e deitadas dentro de
um caixão. Até que, certa ocasião, a menina Anita se viu a acompanhar um morto,
a noite inteira, apenas com o filho do falecido.
O funeral seguinte foi o primeiro na vila em que a
porta ficou fechada toda a noite. Não causou indignação à menina Anita, não
terá tido já oportunidade de se melindrar. Lá dentro, sem estar acompanhada,
sozinha, passou a sua última noite na casa mortuária.
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