Monday, September 30, 2019

Arco-Íris ao Peito

O Paulo usava o cabelo grande. Não era moda, não se pode dizer que imitasse alguém, nos anos 80, naquela região, nem era assim tão comum. Simplesmente, gostava de o ter assim: cabelo louro e liso pelos ombros. Também a pele era clara, como se o sol do Alentejo tivesse decidido poupá-lo ao castigo que destinava a todos os outros. Paulo tinha um ar angelical. Como é sabido, os anjos não têm sexo, por isso, quem não o conhecia, passava alguns minutos numa perplexidade que aprendemos a identificar e nos divertia. Viam uma figura andrógina, bonito demais para ser moço e com feições ligeiramente grosseiras para ser rapariga. Indecisos entre chamar-lhe gaiato ou gaiata, acabavam, muitas vezes por não dizer nada e iam-se embora com os dois pronomes entalados na garganta.

Algumas das senhoras idosas, mais espertas que as outras, tentavam sair airosamente deste impasse e perguntavam: “Como te chamas?” Mas a entoação que ele dava ao seu nome, fechando a última vogal, deixava-as na dúvida. Teria dito “Paulo” ou “Paula”? Não conseguiam perceber. Acho que não fazia de propósito, mas nós divertíamo-nos a ver a confusão que ele provocava. Alguns ainda ficavam a remoer rancores vindos de preconceitos contra cabelos grandes, como se o Paulo fosse uma repetição das frustrações que tinham vivido com os seus próprios filhos que, agora com idade para serem pais do Paulo, tinham sido hippies, com longas guedelhas, sapatos de plataforma, horríveis camisas de hiperbólicos colarinhos e calças com boca-de-sino.

No recreio da escola, Paulo gostava de jogar à bola. Não era o primeiro a ser escolhido quando se faziam equipas, mas também não era o último. Algum talento tinha para a coisa. Metade das vezes, porém, preferia brincar com as raparigas às telenovelas, recriando as cenas do capítulo do Roque Santeiro visto no serão anterior.

Uma observação à indumentária também de pouco servia para que se conseguisse alcançar qualquer certeza. Paulo, como todos nós, usava a obrigatória bata branca imposta aos alunos e alunas pelo professor Albino. Para além da bata, fazia parte do uniforme uma particularidade que servia para premiar os alunos pelo seu desempenho e motivar para a aquisição permanente do saber. Todos traziam ao peito um alfinete de dama com várias fitas que contrastavam com a alvura da bata. Invejávamos o Paulo porque trazia penduradas todas as fitas, numa infinidade de cores. Uma fita branca para a limpeza, obtida após análise cuidada das unhas e atrás das orelhas, local onde o sarro era mais resistente a uma boa esfrega. Uma fita vermelha para a destreza demonstrada no interrogatório da tabuada. Uma fita amarela para a história, sempre que um aluno sabia de memória os nomes e cognomes de todos os reis da primeira dinastia. Uma fita verde para a ortografia, entregue a quem conseguia três ditados seguidos com zero erros. Mais cores, muitas, para outras tantas tarefas, deveres e saberes: pontualidade, resolução de problemas de matemática, caligrafia, criatividade na escrita de composições, presenças na catequese, enfim, fiquemo-nos por um et cetera.  Um autêntico arco-íris pendurado ao peito que o Paulo e a maior parte de nós mostrávamos com orgulho, quando havia muitas, ou com vergonha se acaso minguavam.

Um dia, o professor Albino chamou o Paulo ao estrado e disse que lhe iria retirar a fita branca da limpeza. Burburinho na sala! Estranhámos a situação e disso demos conta ao colega de carteira que tinha a mesma intenção! Então o Paulo que era o paradigma da limpeza, sempre com as unhas curtinhas, sem remelas nos olhos e que, quando estava constipado, limpava o nariz com mil cuidados e sem nenhum ruído! A sua mesa, magicamente, parecia-nos, nunca tinha vestígios de borracha, os seus lápis nunca deixavam aparas. Tudo tão limpo e ordeiro que parecia que nunca era usado. Uma antítese total das nossas carteiras, sempre escritas, sujas de tinta e todos os vestígios em que os gaiatos da escola primária são abundantes.

Paulo, humildemente, sem ponta de revolta ou sequer mau humor, perguntou a razão dessa súbita e inesperada subtração da fita. O professor, silenciosamente, apontou-lhe para a cabeça. Continuámos sem perceber. O Paulo, apenas ele, parecia ter adivinhado. Passou as mãos pelo cabelo. O professor começou a dizer que o cabelo grande era “uma falta de higiene”, que originava piolhos, que era sinal de desleixo. Perguntei, candidamente, sem vestígio de ironia, se as raparigas deviam também cortar o cabelo. O professor, confundindo a minha inocente perplexidade com desafio, ordenou de imediato que me fosse sentar à janela com orelhas de burro. Concluíu o professor, que “os homens devem usar o cabelo curto”. Paulo, exposto a todos, baixou a cabeça e começou a chorar silenciosamente. Isso pareceu irritar o professor que, ato contínuo, lhe retirou a fita púrpura do bom comportamento dizendo, com um arrependimento visível a meio da frase: “Um homem não chora”, cujo único efeito foi multiplicar as lágrimas.

 Na semana seguinte, o Paulo foi ao barbeiro, a isso os pais o obrigaram depois de uma conversa com o professor. Não sei se chorou, como na sala, quando as madeixas louras foram caindo à mercê do pente número dois do mestre Ciladas e ficou, por fim, frente ao seu reflexo no espelho, com o escalpe a descoberto.

Quando voltou à escola, estava irreconhecível. Os grandes olhos claros pareciam desabitados. O professor fazia-lhe perguntas e ele encolhia os ombros, indiferente aos castigos, às reguadas e puxões de orelhas. Nem reagia enquanto, uma a uma, as cores do arco-íris que trazia num alfinete ao peito eram retiradas como as pétalas de um malmequer. Nunca ninguém mais olhou para o Paulo na dúvida sobre se seria rapaz ou rapariga. Para nós, garotos, nada mudou. Estava ali o nosso amigo. Mais triste, mas era ele. Para o Paulo, tudo mudou. Como mudou para Sansão que, conforme contava o Padre Herculano, perdera as forças à medida que perdera o cabelo. No professor e nos outros adultos, parecia ter-se instalado um conforto que antes não experimentavam ao encarar o Paulo. Era um rapaz que ali estava. Não podia ser outra coisa.

Tuesday, September 17, 2019

O Mentiroso de Cuba


Há vários tipos de mentirosos. De todos, destaco dois: o que mente em proveito próprio e o, chamemos-lhe, mentiroso recreativo. Tenho, como muita gente, pouca estima pelo primeiro, sempre atarefado em subir vertiginosamente a escada de um sucesso ilusório e efémero às costas de outros, mas, em relação ao segundo, reservo até alguma admiração. 

Deste tipo de aldabrão, o maior de que ouvi falar foi o Lúcio Alves. Viveu há muitas décadas em Cuba, no Alentejo. A mentira deixava-lhe sempre um sabor mais doce na boca. A verdade saía em sons estranhos articulados com as entranhas e que o deixavam como que vazio e sem jeito. De maneiras que era mais frequente mentir que dizer a verdade. Começou por exagerar a realidade, com grande sucesso. As pessoas no café até se calavam e juntavam-se para o ouvir. Quando se foram apercebendo que nem tudo o que luzia era ouro, começaram a dar o devido desconto, mas continuaram a ouvir com interesse e a pagar-lhe um copo. Com o tempo deixou de lhe bastar. Inventava acontecimentos de raiz. Estórias pouco verosímeis, fantasiosas que chegavam a incluir lobisomens e outros medos, mas também acontecimentos banais inspirados em anedotas que ouvia os homens contar na taberna.

Soubesse ele escrever e Cuba passaria a ser o berço de, não um, mas dois talentos literários. Para além de Fialho de Almeida, seria também célebre Lúcio Alves. Porém, analfabeto como era, aguçou-se nele o talento para a oralidade. Dominava uma plateia com pausas dramáticas, sotaques imitados e defeitos na fala simulados.

Quando o viam chegar, uns reviravam os olhos em busca de paciência para tanta fantasia, outros ficavam ansiosos como os garotos quando, na tourada, soltam o primeiro boi.

Era tolerado por ser aquela espécie de mentiroso que, por muito que compusesse as mais elaboradas aldrabices, nunca resvalava para a difamação, sempre respeitador da honra alheia. Mentiras de alcova, isso nunca! Para esses assuntos, contassem com as beatas à saída da missa e não tinha interesse algum em ceifar em seara alheia. Havia muito quem se ocupasse com os assuntos do coração ou da carne, os quais até considerava abaixo da sua categoria criativa.

O primeiro de abril era para Lúcio como dia de Natal. Um dia em que tendo carta branca, liberdade total sem que ninguém pudesse guardar rancores por ser enganado, preferia recorrer ao adágio popular "com a verdade me enganas". Optava por, durante 24 horas, não se juntar ao coro de  mentirosos de ocasião na vila. Narrava apenas as mais inverosímeis histórias, absolutamente verdadeiras, que coleccionava durante todo o ano.

Viam-no chegar e notava-se à légua quando tinha alguma para contar. A velocidade a que caminhava, por mais naturalidade que simulasse, dava a entender uma urgência tremenda em chegar perto de quem o escutasse. Começava com uma pergunta para recolher a atenção dos circundantes: "atão vocemessês sabem da última?" Como nunca ninguém pode ter a certeza, por muito que saiba, de dispor da informação mais recente, a resposta "não" dava azo a mais uma estória mirabolante.

Em tempos de fome, as estórias de Lúcio Alves eram um placebo para os cubenses. Não enchiam a barriga, é certo, mas ajudavam a pensar noutra coisa, ainda que momentaneamente. Sabendo disso, e sentindo ele próprio as presas da fome ferrarem-lhe o estômago, depois de uma semana em que apenas açorda condutada com azeitonas lhe tinha passado pelo estreito, criou aquela que seria a sua obra-prima. Estava agachado no bacio quando a ideia lhe surgiu de assalto e não conseguiu conter uma gargalhada. A mãe, mulher séria e pouco dada a risos, ainda perguntou o que era, sem esperar resposta, habituada que estava a desapontar-se com este filho. Levantou-se, limpou-se mal e à pressa e correu porta fora para o Largo do Tribunal. Aí começou a espalhar a sua invenção. Sem conseguir reproduzir a riqueza de detalhes e o colorido da linguagem, este humilde narrador fará aqui um rascunho da paisagem descrita pelo grande mitómano. O comboio das três, entre Alvito e Cuba, tinha colhido um rebanho de borregos, grande número dos quais jazia morto e moribundo junto à linha. Uma grande desgraça, calcula-se, para o pastor que veria subtraído ao seu soldo o preço das cabeças de gado e um contratempo para o proprietário. A estória não teve o sucesso imediato almejado pelo seu autor e sentia que ia esmorecer a qualquer momento. Mas nisto, o Castro chega ao largo e, casualmente, para meter conversa, comenta que o comboio das três chegara com algum atraso. Aí sim! A coincidência fez com que passassem da total descrença para a dúvida, e da dúvida para a certeza, num piscar de olhos. Sem se despedirem conforme mandam as leis da boa educação e movidos pela míngua a que estavam votadas as despensas domésticas, correram todos a buscar uma saca e um bom cutelo para desmanchar carne. Passado menos que um quarto de hora, eram quase três dezenas, junto à linha do comboio, em direcção a Alvito e aos inventados borregos, numa fila ordeira debaixo do sol daquele domingo de Setembro.

Lúcio dir-se-ia extasiado, com um sorriso sardónico, observava. Mas... a eficácia da sua mentira plantou nele também a semente da desconfiança. E se fosse verdade? Não podia ser. Mas e se fosse? Estavam quase trinta homens e mulheres marchando a caminho de Alvito sem que nenhuma prova concreta os movesse? "Se calhar aconteceu mesmo", pensou. Começou então a imaginar. Um ensopado de borrego, batatinhas novas com um pouco de aba, aromatizado com hortelã. Um joelho de borrego assado no forno da padaria, com a carne a descolar-se do osso e a desfazer-se na boca. Sentia-lhe o cheiro e até, quase, o sabor. Por isso, foi. Correu um pouco até alcançar a massa de gente que caminhava ao engano à espera de encontrar os imaginados borregos. 

Foi o seu maior triunfo. Nesse dia, Lúcio enganou tanta gente e de maneira tão eficaz que enganou quem nunca esperara enganar, a si próprio.