Tuesday, September 17, 2019

O Mentiroso de Cuba


Há vários tipos de mentirosos. De todos, destaco dois: o que mente em proveito próprio e o, chamemos-lhe, mentiroso recreativo. Tenho, como muita gente, pouca estima pelo primeiro, sempre atarefado em subir vertiginosamente a escada de um sucesso ilusório e efémero às costas de outros, mas, em relação ao segundo, reservo até alguma admiração. 

Deste tipo de aldabrão, o maior de que ouvi falar foi o Lúcio Alves. Viveu há muitas décadas em Cuba, no Alentejo. A mentira deixava-lhe sempre um sabor mais doce na boca. A verdade saía em sons estranhos articulados com as entranhas e que o deixavam como que vazio e sem jeito. De maneiras que era mais frequente mentir que dizer a verdade. Começou por exagerar a realidade, com grande sucesso. As pessoas no café até se calavam e juntavam-se para o ouvir. Quando se foram apercebendo que nem tudo o que luzia era ouro, começaram a dar o devido desconto, mas continuaram a ouvir com interesse e a pagar-lhe um copo. Com o tempo deixou de lhe bastar. Inventava acontecimentos de raiz. Estórias pouco verosímeis, fantasiosas que chegavam a incluir lobisomens e outros medos, mas também acontecimentos banais inspirados em anedotas que ouvia os homens contar na taberna.

Soubesse ele escrever e Cuba passaria a ser o berço de, não um, mas dois talentos literários. Para além de Fialho de Almeida, seria também célebre Lúcio Alves. Porém, analfabeto como era, aguçou-se nele o talento para a oralidade. Dominava uma plateia com pausas dramáticas, sotaques imitados e defeitos na fala simulados.

Quando o viam chegar, uns reviravam os olhos em busca de paciência para tanta fantasia, outros ficavam ansiosos como os garotos quando, na tourada, soltam o primeiro boi.

Era tolerado por ser aquela espécie de mentiroso que, por muito que compusesse as mais elaboradas aldrabices, nunca resvalava para a difamação, sempre respeitador da honra alheia. Mentiras de alcova, isso nunca! Para esses assuntos, contassem com as beatas à saída da missa e não tinha interesse algum em ceifar em seara alheia. Havia muito quem se ocupasse com os assuntos do coração ou da carne, os quais até considerava abaixo da sua categoria criativa.

O primeiro de abril era para Lúcio como dia de Natal. Um dia em que tendo carta branca, liberdade total sem que ninguém pudesse guardar rancores por ser enganado, preferia recorrer ao adágio popular "com a verdade me enganas". Optava por, durante 24 horas, não se juntar ao coro de  mentirosos de ocasião na vila. Narrava apenas as mais inverosímeis histórias, absolutamente verdadeiras, que coleccionava durante todo o ano.

Viam-no chegar e notava-se à légua quando tinha alguma para contar. A velocidade a que caminhava, por mais naturalidade que simulasse, dava a entender uma urgência tremenda em chegar perto de quem o escutasse. Começava com uma pergunta para recolher a atenção dos circundantes: "atão vocemessês sabem da última?" Como nunca ninguém pode ter a certeza, por muito que saiba, de dispor da informação mais recente, a resposta "não" dava azo a mais uma estória mirabolante.

Em tempos de fome, as estórias de Lúcio Alves eram um placebo para os cubenses. Não enchiam a barriga, é certo, mas ajudavam a pensar noutra coisa, ainda que momentaneamente. Sabendo disso, e sentindo ele próprio as presas da fome ferrarem-lhe o estômago, depois de uma semana em que apenas açorda condutada com azeitonas lhe tinha passado pelo estreito, criou aquela que seria a sua obra-prima. Estava agachado no bacio quando a ideia lhe surgiu de assalto e não conseguiu conter uma gargalhada. A mãe, mulher séria e pouco dada a risos, ainda perguntou o que era, sem esperar resposta, habituada que estava a desapontar-se com este filho. Levantou-se, limpou-se mal e à pressa e correu porta fora para o Largo do Tribunal. Aí começou a espalhar a sua invenção. Sem conseguir reproduzir a riqueza de detalhes e o colorido da linguagem, este humilde narrador fará aqui um rascunho da paisagem descrita pelo grande mitómano. O comboio das três, entre Alvito e Cuba, tinha colhido um rebanho de borregos, grande número dos quais jazia morto e moribundo junto à linha. Uma grande desgraça, calcula-se, para o pastor que veria subtraído ao seu soldo o preço das cabeças de gado e um contratempo para o proprietário. A estória não teve o sucesso imediato almejado pelo seu autor e sentia que ia esmorecer a qualquer momento. Mas nisto, o Castro chega ao largo e, casualmente, para meter conversa, comenta que o comboio das três chegara com algum atraso. Aí sim! A coincidência fez com que passassem da total descrença para a dúvida, e da dúvida para a certeza, num piscar de olhos. Sem se despedirem conforme mandam as leis da boa educação e movidos pela míngua a que estavam votadas as despensas domésticas, correram todos a buscar uma saca e um bom cutelo para desmanchar carne. Passado menos que um quarto de hora, eram quase três dezenas, junto à linha do comboio, em direcção a Alvito e aos inventados borregos, numa fila ordeira debaixo do sol daquele domingo de Setembro.

Lúcio dir-se-ia extasiado, com um sorriso sardónico, observava. Mas... a eficácia da sua mentira plantou nele também a semente da desconfiança. E se fosse verdade? Não podia ser. Mas e se fosse? Estavam quase trinta homens e mulheres marchando a caminho de Alvito sem que nenhuma prova concreta os movesse? "Se calhar aconteceu mesmo", pensou. Começou então a imaginar. Um ensopado de borrego, batatinhas novas com um pouco de aba, aromatizado com hortelã. Um joelho de borrego assado no forno da padaria, com a carne a descolar-se do osso e a desfazer-se na boca. Sentia-lhe o cheiro e até, quase, o sabor. Por isso, foi. Correu um pouco até alcançar a massa de gente que caminhava ao engano à espera de encontrar os imaginados borregos. 

Foi o seu maior triunfo. Nesse dia, Lúcio enganou tanta gente e de maneira tão eficaz que enganou quem nunca esperara enganar, a si próprio.


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