Monday, December 24, 2018

Salão da Memória



Depois de comer cerimoniosamente a torrada e beber o chá de limão, chegou a hora de ir à janela. Os primeiros raios de sol começaram a chegar à varanda e, aos poucos, o movimento começou na rua. A dona da drogaria pendurou as vassouras e os piaçabas, arrastou as pesadas latas de tintas parando para olhar para cima e saudá-la com um "bom dia, madrinha". A vizinhança despertou aos poucos a dirigir-se, como sonâmbulos, à mercearia para comprar pão e conduto. A loja das rações abriu a porta com o dono a cumprimentá-la também. Tudo como nos outros longos dias. Mesmo em Dezembro, os dias são longos. Demasiado longos para as poucas tarefas a fazer. Mesmo que as fizesse devagar, pausada e conscienciosamente. Quando os ponteiros do relógio parecem parar e o tempo entra em suspenso, é quando a madrinha reflete sobre a natureza da vida e do tempo. 

Acha cada vez mais que o tempo é como se feito de um elástico. Olha para trás e sente que alguns momentos foram um instante em que mal teve tempo para olhar para o que lhe acontecia. A infância mais rápida que um batimento do coração. A adolescência num sopro até casar com o seu Ricardo. Os filhos a nascerem e a fazerem-se adultos que lhe traziam os netos. As alegrias efémeras e as tristezas numa rápida eternidade. O tempo dilui tudo como se tivesse acontecido noutra vida. Apenas agora, sozinha, os dias lhe parecem ter as horas  supostas. E acha-as longas mesmo que compartimentadas em pequenas rotinas. Vê o dia como uma cómoda de mil gavetas onde arruma os momentos de forma muito organizada. Todos os dias são as mesmas cómodas, as mesmas gavetas, os mesmos momentos. Por isso a madrinha, farta da repetição, vai abrindo gavetas antigas de mobiliário velho arrumado numa divisão sem outro uso.


Alguns armários, conhece-os de cor. Correspondem a dias alegres ou de dor. Estão em posição de destaque nesse grande salão. Parecem mais gastos que os outros e nunca têm pó pois são revistos todos os dias. Aqui, numa gaveta mais bonita que as outras o nascimento do primeiro filho, um momento dentro de uma caixa, embrulhada carinhosamente em veludo, dentro de uma gaveta, no salão das memórias. Noutro armário, escuro, o primeiro dia da sua viuvez. Não necessariamente o mais difícil, outros a seguir foram mais dolorosos, mas aquele mudou a sua vida daí para a frente. Todos os armários subsequentes têm um estilo mais austero, como o do luto que passou a envergar.


A madrinha chora por vezes a ver estes fragmentos. Não porque as memórias lhe sejam insuportáveis. Acontece é que, cada vez mais, encontra gavetas vazias. Às vezes parecem faltar armários. Ao início justificava essa ausência com o cansaço ou a distração, com o facto de o salão estar mais e mais ocupado num labirinto de armários. Descobriu depois que não é por nada disso. Os anos vão maltratando essas memórias, atacam a mobília do espaço onde revive esses momentos com um mal que as inutiliza e, na rotina em que vive, vai tentando não dar pela sua ausência porque é no passado que, na míngua de futuro, vai buscar alento para a rotina. Por isso, às vezes, chora perante uma gaveta vazia.

Tuesday, December 04, 2018

Máquina Desafinada


Tinha um aspeto estranho à primeira vista. Considero-o agora concedendo que, na altura, pela inocência infantil e pela frequência com que o avistava, não tenha achado fora do normal. O lábio inferior estava em falta dando a sensação de que se recolhia por alguma razão. Vestia quase sempre uma pelica de pele de ovelha preta a que, na aldeia, chamávamos samarra e uma boina. Parecia omnipresente. Era uma figura familiar mas não tinha sítio certo para o encontrarmos. Calhou muitas vezes saltar-nos ao caminho na rua do cemitério quando acompanhávamos o meu avô até à Masmorra para regar a horta mas também junto ao cruzamento da Santa. Outras vezes, estava sentado num dos bancos vermelhos do Largo da Fonte, ao sol.

Recebia-nos sempre com uma festa. Eu e o meu irmão andávamos sempre munidos de um pequeno cantil de plástico a imitar uma cabaça, uma recordação que alguém trouxe de Fátima, um vermelho e outro azul para não nos enganarmos, e era por aí que se metia connosco. Pedia uma gotinha de água do nosso cantil e ria-se muito quando lhe respondíamos que havia muita na fonte.

Não me lembro do nome dele nem de alguma alcunha. Não me lembro se tinha família ou descendência. Lembro-me de poucas coisas dessa altura e, desconfio, muitas são memórias artificiais transplantadas para o meu subconsciente pelas histórias que os meus pais e avós me foram contando quando era mais velho. Muitas vezes, até misturo memórias reais com essas sem me aperceber e até memórias de coisas que aconteceram, não comigo, mas com o meu irmão. Porque a memória é um mecanismo estranho. É máquina que não conhece o dono. Caprichosa, pode, em determinado dia, ser capaz de nos levar aos primórdios da nossa existência para, logo de seguida, nos desiludir e não nos trazer a combinação do cartão de débito. Embaraça-nos quando o professor nos chama ao quadro para ditar a tabuada e depois consegue o milagre estúpido de preservar o número de telefone desusado há décadas da casa dos nossos pais. Escreve na pedra a matrícula de um carro que os nossos pais tinham quando mal sabíamos ler e escrever e falha na simples missão de armazenar o nome de um conhecido.

Reflito sobre isso agora porque, fora o que contei, pouco mais posso lembrar deste homem. Oculta-se-me o local da aldeia onde morava, a sua ocupação, o nome dos filhos e se os tinha, de que conversava com o meu avô. Tudo isso é poeira para mim. Mas lembro algo que fazia sempre parte destes encontros. Uma cantiguinha obscena que, na altura, nos divertia a todos, aos velhos, sabedores e velhacos, pela letra, e aos gaiatos, inocentes, pela melodia alegre. E ia assim a cantiga: “As mulheres têm dois buracos, pum! Os homens só têm um, pum! Eu tapo um, eu tapo um, eu tapo um…”

Monday, December 03, 2018

Feira da Aldeia

Foto de Nuno Antunes

Quando as carrinhas da junta começavam a despejar as primeiras iluminações, sabíamos que as férias do verão estavam a meio. A caminho do campo da bola para as últimas futeboladas antes que o ringue de futebol de salão se convertesse por uns tempos em salão de baile ou improvisado recinto de vacadas, víamos o erguer daquelas estruturas que anunciavam o aproximar da “feira da aldeia”.

Já tínhamos todos, independentemente das origens mais abastadas ou humildes, uma muda de roupa para estrear na feira. Era um dos rituais que se cumpria anualmente há talvez muitas gerações. Ir à feira sem estrear roupa era ir envergonhado. Ainda que essa roupa ficasse cheia de pó, os sapatos novos a mudar de cor para um tom mais esbatido sob uma pátina de pó e as costuras das calças de ganga a acumularem a terra que o vento, que invariavelmente se levantava naquelas noites de final de Julho, empurrava. 

Faziam-se mealheiros para gastar nos carrinhos de choque, em bifanas a meio da noite empurradas por garrafas de canada dry, joy de maçã ou laranja ou, mais tarde, quando o buço começava a dar lugar a algo mais definitivo, por imperiais. Os tios e avós eram também chamados a contribuir com uma “notinha” para esse fim. Tinha algo para todos, a feira. As luzes a todos fascinavam, novos e velhos. Quando a noite começava a anunciar-se, depois dos longos dias de verão, a iluminação apontava o caminho para o campo da bola. As famílias chegavam juntas mas depois dividiam-se entre o bar, os carrosséis, a quermesse, as barraca das farturas e do torrão doce, a tenda dos tiros com pressão de ar, o assador de polvo, as vendas de brinquedos, a vacada e o baile.

O cheiro a frango assado (verdadeiros frangos, não os pintos que nos vendem agora) aromatizava a atmosfera debaixo da estufa que era o improvisado abrigo construído por rede e pernadas de eucalipto. Grandes alguidares de plástico continham rodelas de tomate pouco maduro, cebola e pepino à espera de serem pescadas para uma travessa de inox onde eram temperadas para guarnecer a carne juntamente com pacotes de batata frita. Voluntários agitavam-se de um lado para o outro, à volta de descomunais grelhas de carne. Outros lavavam os legumes na torneira instalada ao lado da baliza oeste do Campo de Jogos 25 de Abril. Atrás do balcão vendiam-se senhas que eram depois trocadas por comida e bebida. Em mesas e bancos corridos, que obrigavam a prodígios de contorcionismo e ocupavam todo o espaço, conversava-se, ria-se a bom rir e reencontravam-se as caras ausentes durante o resto do ano. De toda a margem sul, do Pinhal Novo à Baixa da Banheira, chegavam nesta altura os parentes que a vida levou para longe e muitos vinham também da Suíça, França ou Alemanha para rever os seus familiares e a feira da aldeia. Abraços, comoção e até choro, que isto de voltar à terra é uma coisa muito emotiva. Compreendo-o agora.

Os moços corriam o recinto da feira em bandos. Gastos num instante os mealheiros nos carrinhos de choque, vagueavam à procura de pais, avós ou tios que lhes pudessem providenciar mais uma nota de cem escudos. As noites eram mais longas durante a feira, o sono tardava a vir. As birras eram frequentes durante a feira, só não eram provocadas pelo sono mas pelo desejo de uma volta num carrossel, de uma pistola de fulminantes, um saco de soldadinhos verdes de plástico com uma redondela por baixo que os mantinha em pé ou ainda uma rede cheia de berlindes. Um par de palmadas ou, como se diz por lá, “nalgadas” bem assentes costumava ter um de dois efeitos: ou agudizar o tom da birra ou dá-la por terminada.

Era a feira também fértil na existência de outro tipo de fenómenos: as bebedeiras. Havia de todo o género e investi algum tempo na sua tipificação. Havia as habituais, os ébrios que não precisam de nenhum pretexto para beberem demais e para quem a feira era, nesse aspeto, igual a todos os outros fins de semana. Havia ainda as inesperadas. Aquelas pessoas que passavam um ano inteiro sem tocar no álcool ou, quando bebiam, era um copo solitário às refeições ou um digestivo após um almoço particularmente faustoso. As bebedeiras inesperadas eram as mais surpreendentes e nos dias seguintes eram motivo de conversa entre o povo. Havia as choronas, aquelas que terminavam num pranto. Nunca cheguei a saber exatamente por que choravam, se por desgosto se por comoção por se verem rodeados por tão bons amigos. Muito apreciado pelo povo era também a bebedeira bailarina pelo grandioso espetáculo que proporcionava durante o baile com uma dança solitária que terminava numa queda em câmara lenta. A todos os que se viam nestas circunstâncias era lançada a provocação que se dirigia, na aldeia, a quem dava mostras de ter bebido mais que a conta: “Aiê! Vai deitá-la!”.

Quase sempre ficava triste quando acabava a feira. Afinal, só voltaria a assistir a tudo isto daí a mais doze meses. Passava algumas tardes nas semanas seguintes a assistir aos trabalhos de desmontagem da feira deitado por cima do balneário. Os vendedores, no dia seguinte, faziam-se à estrada e partiam para outro lado. A quermesse e a venda de comes e bebes permaneciam mais algum tempo, o suficiente para que a explorássemos e chegássemos a encontrar alguma moeda esquecida. A vida continuava e as férias de verão também continuavam mas sabíamos que já não faltava muito e, acabado o mês de Agosto, estávamos de regresso à escola e à normalidade.