Depois de comer cerimoniosamente a torrada e beber o chá de limão, chegou a hora de ir à janela. Os primeiros raios de sol começaram a chegar à varanda e, aos poucos, o movimento começou na rua. A dona da drogaria pendurou as vassouras e os piaçabas, arrastou as pesadas latas de tintas parando para olhar para cima e saudá-la com um "bom dia, madrinha". A vizinhança despertou aos poucos a dirigir-se, como sonâmbulos, à mercearia para comprar pão e conduto. A loja das rações abriu a porta com o dono a cumprimentá-la também. Tudo como nos outros longos dias. Mesmo em Dezembro, os dias são longos. Demasiado longos para as poucas tarefas a fazer. Mesmo que as fizesse devagar, pausada e conscienciosamente. Quando os ponteiros do relógio parecem parar e o tempo entra em suspenso, é quando a madrinha reflete sobre a natureza da vida e do tempo.
Acha cada vez mais que o tempo é como se feito de um elástico. Olha para trás e sente que alguns momentos foram um instante em que mal teve tempo para olhar para o que lhe acontecia. A infância mais rápida que um batimento do coração. A adolescência num sopro até casar com o seu Ricardo. Os filhos a nascerem e a fazerem-se adultos que lhe traziam os netos. As alegrias efémeras e as tristezas numa rápida eternidade. O tempo dilui tudo como se tivesse acontecido noutra vida. Apenas agora, sozinha, os dias lhe parecem ter as horas supostas. E acha-as longas mesmo que compartimentadas em pequenas rotinas. Vê o dia como uma cómoda de mil gavetas onde arruma os momentos de forma muito organizada. Todos os dias são as mesmas cómodas, as mesmas gavetas, os mesmos momentos. Por isso a madrinha, farta da repetição, vai abrindo gavetas antigas de mobiliário velho arrumado numa divisão sem outro uso.
Alguns armários, conhece-os de cor. Correspondem a dias alegres ou de dor. Estão em posição de destaque nesse grande salão. Parecem mais gastos que os outros e nunca têm pó pois são revistos todos os dias. Aqui, numa gaveta mais bonita que as outras o nascimento do primeiro filho, um momento dentro de uma caixa, embrulhada carinhosamente em veludo, dentro de uma gaveta, no salão das memórias. Noutro armário, escuro, o primeiro dia da sua viuvez. Não necessariamente o mais difícil, outros a seguir foram mais dolorosos, mas aquele mudou a sua vida daí para a frente. Todos os armários subsequentes têm um estilo mais austero, como o do luto que passou a envergar.
A madrinha chora por vezes a ver estes fragmentos. Não porque as memórias lhe sejam insuportáveis. Acontece é que, cada vez mais, encontra gavetas vazias. Às vezes parecem faltar armários. Ao início justificava essa ausência com o cansaço ou a distração, com o facto de o salão estar mais e mais ocupado num labirinto de armários. Descobriu depois que não é por nada disso. Os anos vão maltratando essas memórias, atacam a mobília do espaço onde revive esses momentos com um mal que as inutiliza e, na rotina em que vive, vai tentando não dar pela sua ausência porque é no passado que, na míngua de futuro, vai buscar alento para a rotina. Por isso, às vezes, chora perante uma gaveta vazia.