Monday, December 03, 2018

Feira da Aldeia

Foto de Nuno Antunes

Quando as carrinhas da junta começavam a despejar as primeiras iluminações, sabíamos que as férias do verão estavam a meio. A caminho do campo da bola para as últimas futeboladas antes que o ringue de futebol de salão se convertesse por uns tempos em salão de baile ou improvisado recinto de vacadas, víamos o erguer daquelas estruturas que anunciavam o aproximar da “feira da aldeia”.

Já tínhamos todos, independentemente das origens mais abastadas ou humildes, uma muda de roupa para estrear na feira. Era um dos rituais que se cumpria anualmente há talvez muitas gerações. Ir à feira sem estrear roupa era ir envergonhado. Ainda que essa roupa ficasse cheia de pó, os sapatos novos a mudar de cor para um tom mais esbatido sob uma pátina de pó e as costuras das calças de ganga a acumularem a terra que o vento, que invariavelmente se levantava naquelas noites de final de Julho, empurrava. 

Faziam-se mealheiros para gastar nos carrinhos de choque, em bifanas a meio da noite empurradas por garrafas de canada dry, joy de maçã ou laranja ou, mais tarde, quando o buço começava a dar lugar a algo mais definitivo, por imperiais. Os tios e avós eram também chamados a contribuir com uma “notinha” para esse fim. Tinha algo para todos, a feira. As luzes a todos fascinavam, novos e velhos. Quando a noite começava a anunciar-se, depois dos longos dias de verão, a iluminação apontava o caminho para o campo da bola. As famílias chegavam juntas mas depois dividiam-se entre o bar, os carrosséis, a quermesse, as barraca das farturas e do torrão doce, a tenda dos tiros com pressão de ar, o assador de polvo, as vendas de brinquedos, a vacada e o baile.

O cheiro a frango assado (verdadeiros frangos, não os pintos que nos vendem agora) aromatizava a atmosfera debaixo da estufa que era o improvisado abrigo construído por rede e pernadas de eucalipto. Grandes alguidares de plástico continham rodelas de tomate pouco maduro, cebola e pepino à espera de serem pescadas para uma travessa de inox onde eram temperadas para guarnecer a carne juntamente com pacotes de batata frita. Voluntários agitavam-se de um lado para o outro, à volta de descomunais grelhas de carne. Outros lavavam os legumes na torneira instalada ao lado da baliza oeste do Campo de Jogos 25 de Abril. Atrás do balcão vendiam-se senhas que eram depois trocadas por comida e bebida. Em mesas e bancos corridos, que obrigavam a prodígios de contorcionismo e ocupavam todo o espaço, conversava-se, ria-se a bom rir e reencontravam-se as caras ausentes durante o resto do ano. De toda a margem sul, do Pinhal Novo à Baixa da Banheira, chegavam nesta altura os parentes que a vida levou para longe e muitos vinham também da Suíça, França ou Alemanha para rever os seus familiares e a feira da aldeia. Abraços, comoção e até choro, que isto de voltar à terra é uma coisa muito emotiva. Compreendo-o agora.

Os moços corriam o recinto da feira em bandos. Gastos num instante os mealheiros nos carrinhos de choque, vagueavam à procura de pais, avós ou tios que lhes pudessem providenciar mais uma nota de cem escudos. As noites eram mais longas durante a feira, o sono tardava a vir. As birras eram frequentes durante a feira, só não eram provocadas pelo sono mas pelo desejo de uma volta num carrossel, de uma pistola de fulminantes, um saco de soldadinhos verdes de plástico com uma redondela por baixo que os mantinha em pé ou ainda uma rede cheia de berlindes. Um par de palmadas ou, como se diz por lá, “nalgadas” bem assentes costumava ter um de dois efeitos: ou agudizar o tom da birra ou dá-la por terminada.

Era a feira também fértil na existência de outro tipo de fenómenos: as bebedeiras. Havia de todo o género e investi algum tempo na sua tipificação. Havia as habituais, os ébrios que não precisam de nenhum pretexto para beberem demais e para quem a feira era, nesse aspeto, igual a todos os outros fins de semana. Havia ainda as inesperadas. Aquelas pessoas que passavam um ano inteiro sem tocar no álcool ou, quando bebiam, era um copo solitário às refeições ou um digestivo após um almoço particularmente faustoso. As bebedeiras inesperadas eram as mais surpreendentes e nos dias seguintes eram motivo de conversa entre o povo. Havia as choronas, aquelas que terminavam num pranto. Nunca cheguei a saber exatamente por que choravam, se por desgosto se por comoção por se verem rodeados por tão bons amigos. Muito apreciado pelo povo era também a bebedeira bailarina pelo grandioso espetáculo que proporcionava durante o baile com uma dança solitária que terminava numa queda em câmara lenta. A todos os que se viam nestas circunstâncias era lançada a provocação que se dirigia, na aldeia, a quem dava mostras de ter bebido mais que a conta: “Aiê! Vai deitá-la!”.

Quase sempre ficava triste quando acabava a feira. Afinal, só voltaria a assistir a tudo isto daí a mais doze meses. Passava algumas tardes nas semanas seguintes a assistir aos trabalhos de desmontagem da feira deitado por cima do balneário. Os vendedores, no dia seguinte, faziam-se à estrada e partiam para outro lado. A quermesse e a venda de comes e bebes permaneciam mais algum tempo, o suficiente para que a explorássemos e chegássemos a encontrar alguma moeda esquecida. A vida continuava e as férias de verão também continuavam mas sabíamos que já não faltava muito e, acabado o mês de Agosto, estávamos de regresso à escola e à normalidade.

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