Monday, December 24, 2018

Salão da Memória



Depois de comer cerimoniosamente a torrada e beber o chá de limão, chegou a hora de ir à janela. Os primeiros raios de sol começaram a chegar à varanda e, aos poucos, o movimento começou na rua. A dona da drogaria pendurou as vassouras e os piaçabas, arrastou as pesadas latas de tintas parando para olhar para cima e saudá-la com um "bom dia, madrinha". A vizinhança despertou aos poucos a dirigir-se, como sonâmbulos, à mercearia para comprar pão e conduto. A loja das rações abriu a porta com o dono a cumprimentá-la também. Tudo como nos outros longos dias. Mesmo em Dezembro, os dias são longos. Demasiado longos para as poucas tarefas a fazer. Mesmo que as fizesse devagar, pausada e conscienciosamente. Quando os ponteiros do relógio parecem parar e o tempo entra em suspenso, é quando a madrinha reflete sobre a natureza da vida e do tempo. 

Acha cada vez mais que o tempo é como se feito de um elástico. Olha para trás e sente que alguns momentos foram um instante em que mal teve tempo para olhar para o que lhe acontecia. A infância mais rápida que um batimento do coração. A adolescência num sopro até casar com o seu Ricardo. Os filhos a nascerem e a fazerem-se adultos que lhe traziam os netos. As alegrias efémeras e as tristezas numa rápida eternidade. O tempo dilui tudo como se tivesse acontecido noutra vida. Apenas agora, sozinha, os dias lhe parecem ter as horas  supostas. E acha-as longas mesmo que compartimentadas em pequenas rotinas. Vê o dia como uma cómoda de mil gavetas onde arruma os momentos de forma muito organizada. Todos os dias são as mesmas cómodas, as mesmas gavetas, os mesmos momentos. Por isso a madrinha, farta da repetição, vai abrindo gavetas antigas de mobiliário velho arrumado numa divisão sem outro uso.


Alguns armários, conhece-os de cor. Correspondem a dias alegres ou de dor. Estão em posição de destaque nesse grande salão. Parecem mais gastos que os outros e nunca têm pó pois são revistos todos os dias. Aqui, numa gaveta mais bonita que as outras o nascimento do primeiro filho, um momento dentro de uma caixa, embrulhada carinhosamente em veludo, dentro de uma gaveta, no salão das memórias. Noutro armário, escuro, o primeiro dia da sua viuvez. Não necessariamente o mais difícil, outros a seguir foram mais dolorosos, mas aquele mudou a sua vida daí para a frente. Todos os armários subsequentes têm um estilo mais austero, como o do luto que passou a envergar.


A madrinha chora por vezes a ver estes fragmentos. Não porque as memórias lhe sejam insuportáveis. Acontece é que, cada vez mais, encontra gavetas vazias. Às vezes parecem faltar armários. Ao início justificava essa ausência com o cansaço ou a distração, com o facto de o salão estar mais e mais ocupado num labirinto de armários. Descobriu depois que não é por nada disso. Os anos vão maltratando essas memórias, atacam a mobília do espaço onde revive esses momentos com um mal que as inutiliza e, na rotina em que vive, vai tentando não dar pela sua ausência porque é no passado que, na míngua de futuro, vai buscar alento para a rotina. Por isso, às vezes, chora perante uma gaveta vazia.

Tuesday, December 04, 2018

Máquina Desafinada


Tinha um aspeto estranho à primeira vista. Considero-o agora concedendo que, na altura, pela inocência infantil e pela frequência com que o avistava, não tenha achado fora do normal. O lábio inferior estava em falta dando a sensação de que se recolhia por alguma razão. Vestia quase sempre uma pelica de pele de ovelha preta a que, na aldeia, chamávamos samarra e uma boina. Parecia omnipresente. Era uma figura familiar mas não tinha sítio certo para o encontrarmos. Calhou muitas vezes saltar-nos ao caminho na rua do cemitério quando acompanhávamos o meu avô até à Masmorra para regar a horta mas também junto ao cruzamento da Santa. Outras vezes, estava sentado num dos bancos vermelhos do Largo da Fonte, ao sol.

Recebia-nos sempre com uma festa. Eu e o meu irmão andávamos sempre munidos de um pequeno cantil de plástico a imitar uma cabaça, uma recordação que alguém trouxe de Fátima, um vermelho e outro azul para não nos enganarmos, e era por aí que se metia connosco. Pedia uma gotinha de água do nosso cantil e ria-se muito quando lhe respondíamos que havia muita na fonte.

Não me lembro do nome dele nem de alguma alcunha. Não me lembro se tinha família ou descendência. Lembro-me de poucas coisas dessa altura e, desconfio, muitas são memórias artificiais transplantadas para o meu subconsciente pelas histórias que os meus pais e avós me foram contando quando era mais velho. Muitas vezes, até misturo memórias reais com essas sem me aperceber e até memórias de coisas que aconteceram, não comigo, mas com o meu irmão. Porque a memória é um mecanismo estranho. É máquina que não conhece o dono. Caprichosa, pode, em determinado dia, ser capaz de nos levar aos primórdios da nossa existência para, logo de seguida, nos desiludir e não nos trazer a combinação do cartão de débito. Embaraça-nos quando o professor nos chama ao quadro para ditar a tabuada e depois consegue o milagre estúpido de preservar o número de telefone desusado há décadas da casa dos nossos pais. Escreve na pedra a matrícula de um carro que os nossos pais tinham quando mal sabíamos ler e escrever e falha na simples missão de armazenar o nome de um conhecido.

Reflito sobre isso agora porque, fora o que contei, pouco mais posso lembrar deste homem. Oculta-se-me o local da aldeia onde morava, a sua ocupação, o nome dos filhos e se os tinha, de que conversava com o meu avô. Tudo isso é poeira para mim. Mas lembro algo que fazia sempre parte destes encontros. Uma cantiguinha obscena que, na altura, nos divertia a todos, aos velhos, sabedores e velhacos, pela letra, e aos gaiatos, inocentes, pela melodia alegre. E ia assim a cantiga: “As mulheres têm dois buracos, pum! Os homens só têm um, pum! Eu tapo um, eu tapo um, eu tapo um…”

Monday, December 03, 2018

Feira da Aldeia

Foto de Nuno Antunes

Quando as carrinhas da junta começavam a despejar as primeiras iluminações, sabíamos que as férias do verão estavam a meio. A caminho do campo da bola para as últimas futeboladas antes que o ringue de futebol de salão se convertesse por uns tempos em salão de baile ou improvisado recinto de vacadas, víamos o erguer daquelas estruturas que anunciavam o aproximar da “feira da aldeia”.

Já tínhamos todos, independentemente das origens mais abastadas ou humildes, uma muda de roupa para estrear na feira. Era um dos rituais que se cumpria anualmente há talvez muitas gerações. Ir à feira sem estrear roupa era ir envergonhado. Ainda que essa roupa ficasse cheia de pó, os sapatos novos a mudar de cor para um tom mais esbatido sob uma pátina de pó e as costuras das calças de ganga a acumularem a terra que o vento, que invariavelmente se levantava naquelas noites de final de Julho, empurrava. 

Faziam-se mealheiros para gastar nos carrinhos de choque, em bifanas a meio da noite empurradas por garrafas de canada dry, joy de maçã ou laranja ou, mais tarde, quando o buço começava a dar lugar a algo mais definitivo, por imperiais. Os tios e avós eram também chamados a contribuir com uma “notinha” para esse fim. Tinha algo para todos, a feira. As luzes a todos fascinavam, novos e velhos. Quando a noite começava a anunciar-se, depois dos longos dias de verão, a iluminação apontava o caminho para o campo da bola. As famílias chegavam juntas mas depois dividiam-se entre o bar, os carrosséis, a quermesse, as barraca das farturas e do torrão doce, a tenda dos tiros com pressão de ar, o assador de polvo, as vendas de brinquedos, a vacada e o baile.

O cheiro a frango assado (verdadeiros frangos, não os pintos que nos vendem agora) aromatizava a atmosfera debaixo da estufa que era o improvisado abrigo construído por rede e pernadas de eucalipto. Grandes alguidares de plástico continham rodelas de tomate pouco maduro, cebola e pepino à espera de serem pescadas para uma travessa de inox onde eram temperadas para guarnecer a carne juntamente com pacotes de batata frita. Voluntários agitavam-se de um lado para o outro, à volta de descomunais grelhas de carne. Outros lavavam os legumes na torneira instalada ao lado da baliza oeste do Campo de Jogos 25 de Abril. Atrás do balcão vendiam-se senhas que eram depois trocadas por comida e bebida. Em mesas e bancos corridos, que obrigavam a prodígios de contorcionismo e ocupavam todo o espaço, conversava-se, ria-se a bom rir e reencontravam-se as caras ausentes durante o resto do ano. De toda a margem sul, do Pinhal Novo à Baixa da Banheira, chegavam nesta altura os parentes que a vida levou para longe e muitos vinham também da Suíça, França ou Alemanha para rever os seus familiares e a feira da aldeia. Abraços, comoção e até choro, que isto de voltar à terra é uma coisa muito emotiva. Compreendo-o agora.

Os moços corriam o recinto da feira em bandos. Gastos num instante os mealheiros nos carrinhos de choque, vagueavam à procura de pais, avós ou tios que lhes pudessem providenciar mais uma nota de cem escudos. As noites eram mais longas durante a feira, o sono tardava a vir. As birras eram frequentes durante a feira, só não eram provocadas pelo sono mas pelo desejo de uma volta num carrossel, de uma pistola de fulminantes, um saco de soldadinhos verdes de plástico com uma redondela por baixo que os mantinha em pé ou ainda uma rede cheia de berlindes. Um par de palmadas ou, como se diz por lá, “nalgadas” bem assentes costumava ter um de dois efeitos: ou agudizar o tom da birra ou dá-la por terminada.

Era a feira também fértil na existência de outro tipo de fenómenos: as bebedeiras. Havia de todo o género e investi algum tempo na sua tipificação. Havia as habituais, os ébrios que não precisam de nenhum pretexto para beberem demais e para quem a feira era, nesse aspeto, igual a todos os outros fins de semana. Havia ainda as inesperadas. Aquelas pessoas que passavam um ano inteiro sem tocar no álcool ou, quando bebiam, era um copo solitário às refeições ou um digestivo após um almoço particularmente faustoso. As bebedeiras inesperadas eram as mais surpreendentes e nos dias seguintes eram motivo de conversa entre o povo. Havia as choronas, aquelas que terminavam num pranto. Nunca cheguei a saber exatamente por que choravam, se por desgosto se por comoção por se verem rodeados por tão bons amigos. Muito apreciado pelo povo era também a bebedeira bailarina pelo grandioso espetáculo que proporcionava durante o baile com uma dança solitária que terminava numa queda em câmara lenta. A todos os que se viam nestas circunstâncias era lançada a provocação que se dirigia, na aldeia, a quem dava mostras de ter bebido mais que a conta: “Aiê! Vai deitá-la!”.

Quase sempre ficava triste quando acabava a feira. Afinal, só voltaria a assistir a tudo isto daí a mais doze meses. Passava algumas tardes nas semanas seguintes a assistir aos trabalhos de desmontagem da feira deitado por cima do balneário. Os vendedores, no dia seguinte, faziam-se à estrada e partiam para outro lado. A quermesse e a venda de comes e bebes permaneciam mais algum tempo, o suficiente para que a explorássemos e chegássemos a encontrar alguma moeda esquecida. A vida continuava e as férias de verão também continuavam mas sabíamos que já não faltava muito e, acabado o mês de Agosto, estávamos de regresso à escola e à normalidade.

Wednesday, November 07, 2018

Escória

Parece que descansa, como se o esforço de ultrapassar o Monfurado o tivesse levado à exaustão. Parece ter ficado inerte na base mas com os membros ainda semi-estendidos pela serra. Uma mão esquecida no poço da rua, num ângulo que parece desconfortável. Um pé pousado no Lagar, a seguir aos Mouzinhos. Já foi Santiago, agora é só Escoural.
Uma dupla toponímia, ora sagrada, ora profana. A primeira, a sagrada, é atribuída a outro santo, este mais recente que o peregrino: São Nuno de Santa Maria, conhecido na história como Nuno Álvares Pereira e, depois da canonização, como Santo Condestável. De acordo com o que me contaram, terá sido o fundador da vila e o responsável pelo batismo como Santiago, tendo ali vivido numa casa senhorial no Monte do Cavaleiro. Desconheço se haverá aqui rigor ou a tradicional apropriação de uma personalidade icónica que se verifica sempre com os heróis da nossa história, a serem reclamados por cidades, vilas e aldeias de norte a sul.
Desconcertou-me, quando garoto ainda, descobri que Escoural devia o seu nome à escória. Assim mesmo, no fundo, um desperdício. O que resta de um minério depois de retirarmos todo o material de valor. Aquilo que ninguém quer. Os que por cá viveram, há muitos séculos, extraíam do solo da Serra do Monfurado aquilo que de melhor oferecia. O que sobrava era atirado como material inútil encosta abaixo para o sítio onde, mais tarde, nasceria a aldeia. Será, talvez, dessa massa indesejada, desprovida de qualidades, que são feitas as nossas casas. No limite, talvez todos nós sejamos descendentes dessa escória.

Apesar de me confessar leigo em matérias de mineração, a curiosidade tem-me levado a aprender muitas coisas, descobri que apenas chegamos à escória depois de fundir o minério. Quer isto dizer que a escória é um resultado da exposição a temperaturas altíssimas, tão altas que provocam o derretimento de metais. Foi esta descoberta que me levou do desconforto ao orgulho no nome da minha terra. Mesmo que insistam em conotar negativamente a escória, ela já passou por muito e suportou tudo. Foi experimentada pelo rigor do fogo e dele nasceu. Talvez que o metal que se aproveitou em tempos esteja hoje oxidado, esquecido algures ou até totalmente destruído, mas a escória ainda cá está. Em todos nós que descendemos dela. Não sei se nos corre no sangue em quantidades microscópicas, mas quero acreditar que sim. E que para além disso, nos une a todos num laço invisível. Quero acreditar que é o segredo da resiliência dos nossos antepassados. Eram talvez feitos daquela matéria testada pelo fogo e, por isso, resistiram aos séculos, à fome, à peste, à miséria, ao colher da esperança recém-plantada, e aos desafios que se lhes apresentaram. Por isso, para mim, Escoural ressoa-me a duradouro e resistente, como as suas gentes e como a escória.

Monday, October 29, 2018

Dia de Finados

Mãos atrás das costas, inclinado para a frente, calças muito acima da cintura. A cesta da horta em cima da mesa da cozinha cheia de batatas, feijão verde, couves ou cebolas. O  boné usado de forma sóbria, num ângulo perfeito. A voz grave mas fresca como água tirada do poço do monte da Masmorra. A minha atenção, de férias e na minha cozinha, mas como se estivesse na escola. Ouvia falar de História, de reis, do Condestável, da Ínclita Geração, o Príncipe Perfeito, "A Arte de Cavalgar Toda a Sela", D. Sebastião, Sebastião de José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal; Manuel Barbosa du Bocage, uma anedota. De Geografia, as capitais, uma viagem à Argentina, Carlos Gardel. Para Lima, Santiago e La Paz, de seguida, percorrendo os Andes. George Washington e Benjamin Franklin era como se os estudasse na escola, o pára-raios inventado por um dos pais da nação americana. Literatura, de novo Bocage, Elmano Sadino, mas agora mais a sério, Camões e o folclore biográfico. 
Os comboios, a sua vida toda desde que fez o exame da quarta-classe com uma botas emprestadas, as viagens pelo país e por Espanha, a bitola, as linhas ativas e desativadas. As idas com ele a Lisboa, eu meio bilhete e ele sem pagar, comboio, barco, Cais das Colunas, Terreiro do Paço, Rua Augusta, Chiado, uma ginjinha para ele, um capilé para mim que tentava absorver tudo com a mesma avidez com que me refrescava com a bebida. Pescada cozida com batatas e feijão verde ao almoço em Póvoa de Santa Iria. A Expo 98 ainda na incubadora. A viagem de regresso a jogar à sueca com os restantes reformados da CP, rabugentos e intolerantes para com as minhas juvenis renúncias.
O jornal do dia debaixo do braço, já lido e deixado, dobrado, na mesa da cozinha para eu ler. A parte lúdica, o concurso, uma moeda de 100 escudos, às vezes 200, estendida para quem acerte às três perguntas da chamada cultura geral. A sua definição "O que fica depois de se esquecer tudo o que se aprendeu." "Esqueci-me", "Esquece muito a quem não sabe". Eu a ajudar o meu irmão a acertar as perguntas dele, já com 100 escudos no bolso, "Não vale telefones..."
Anos depois, os livros dele. Depois de morto, os sobrinhos a dividirem a biblioteca. Capas bonitas para uns, o resto, os mais gastos, os mais lidos, para mim. Revistas "Vida Mundial", "Vida Soviética", Programas Eleitorais dos partidos para as primeiras eleições livres, "Depoimento" de Marcelo Caetano, livros raros e documentos que a sua inteligência proibiu de irem para o lixo. Tudo isto ficou, e do homem, fora o que escrevi, só sei o nome, Francisco Masmorra.

Monday, September 24, 2018

Operários do Sonho

Teria dez, onze anos. O meu primo tão pouco mais e o meu irmão tão pouco menos que não faz diferença nenhuma para a história que relembro. Passou-se nas férias de verão, esse período em que os dias são como grandes lagartos: longos, vagarosos e preguiçosos. Dias que pareciam não ter fim para serem repetidos uma e outra vez na eternidade daquele calor abrasador.

O quintal dos meus avós era um mundo que tínhamos já explorado de cabo a rabo. Todos os recantos desde a parte de baixo, encostada à marquise com as suas duas nespereiras, ao muro que o limitava lá em cima com telhas, tijoleiras e vigas que o meu avô lá guardava a servirem-lhe de guarda de honra. O galinheiro e as colheiras não guardavam novidade para os três. Não nos surpreendiam já os movimentos rápidos dos coelhos quando nos aproximávamos e acostumámo-nos às remelas que chagavam aqueles afetados pelo “mal dos coelhos”. A cerca onde, por vezes, estavam alguns borregos, que o meu avô criava e depois vendia porque não tinha coragem de matar, tinha tido o seu potencial para a brincadeira esgotado. Não inventávamos mais touradas com bois sonhados nem a nossa imaginação conseguia já lobrigar ali um forte de índios, um castelo ou um navio de piratas. O casão onde o meu avô guardava as ferramentas há muito que se abrira também e conhecíamos o lugar das talochas, colheres de pedreiro, pás, carrinhos de mão e toda a sorte de utensílios de que o meu avô fazia uso para ganhar o pão.

Nas horas de calor, quando os adultos se fechavam em casa após nos chamarem insistente e inutilmente, o quintal era só nosso. Sem supervisão, em liberdade total naquele mundo limitado. Corríamos por ali como pequenos selvagens com os joelhos sempre escalavrados e os calções imundos. Formávamos os três uma espécie de tribo com uma hierarquia bem definida em que os poucos meses que espaçavam os nossos nascimentos ditavam a liderança. Por isso, foi como se fosse uma ordem de um capitão que, quando o meu primo teve a ideia, nós decidimos lançarmo-nos à obra. Algo brilhante, tão brilhante que até parecia um absurdo nunca termos pensado nisso. Anunciado como se fosse tão banal como colher uma romã da romãzeira: “hoje vamos fazer uma piscina”. Mesmo assim, uma empreitada. Naquele momento, nenhum de nós ousava imaginar outro cenário para o dia seguinte que não implicasse mergulhos e braçadas no quintal dos meus avós.

No casão estava tudo o que fazia falta. Não tínhamos necessidade de projetos ou plantas. Com uma cana afiada, o nosso mestre-de-obras sulcou no chão, aquilo que seriam os limites da piscina. E, enquanto a minha avó, no fresco da casa, dormia a ver a novela, nós começámos a nossa missão. Eu com um sacho, o meu primo com a enxada e o meu irmão com a pá, íamos lutando contra o calor, o chão duro e seco e acrescentando cada vez mais o buraco. O meu irmão ia tirando, às pazadas, a terra num esforço sincronizado e fraterno. Suados e com os membros mais e mais pesados, íamos assistindo ao evoluir do nosso trabalho. Encorajávamo-nos uns aos outros em silêncio com o foco na recompensa que era, para nós um sonho. O calor que sentíamos era refrescado com a perspetiva de um oásis no meio do quintal.

Quando chegou o meu avô, irado e impressionado em igual medida, ficou a obra embargada. Na minha memória, era uma piscina já descomunal, talvez olímpica, e tínhamos escavado a um ponto em que saímos de lá com dificuldade. Mas, o mais certo é ter sido menos que uma cova. Um fracasso total tendo em conta a ambição do projeto.


Recordando esta empresa, não é o fracasso a ideia que retenho. Tanto que, ao dar à manivela ao mecanismo da memória, revivo-a amavelmente. Pensando bem, não se perdeu nada. Até porque acredito que nadar na piscina nos trouxesse menos satisfação que aquela jornada de trabalho.

Sunday, September 16, 2018

Encruzilhadas


Na tradição popular, pejada de superstição misturada com saber feito da experiência de muitas gerações, as encruzilhadas são lugares de magia e maldição. Negoceia-se com o diabo em figura de gente e, contava o meu avô, era onde os lobisomens, que ao contrário dos de Hollywood se transformavam também em bestas de carga, deixavam as roupas ao abandonar a forma humana.

O caminhante que vem de uma longa e árdua jornada perde ali a certeza da direção a tomar. Mas tem que decidir. Em caso algum pode, como canta o Jorge Palma, chamar "casa a esse lugar". Ao demorar-se ali, a maldição começa a ganhar força e a dúvida destrói-o por dentro. 

As certezas são sobrevalorizadas, começo a descobrir. Mais vale uma convicção. Até um palpite, em muitas ocasiões, é preferível. O que há a fazer é olhar, analisar, escolher e avançar. E, sobretudo, não olhar para trás. Como Ló e as suas filhas em fuga de Sodoma e Gomorra, avançando sempre e deixando atrás de si a estátua de sal da sua mulher.

Há quem argumente que a encruzilhada nos dá a ilusão do livre arbítrio. Quem tem fé, pode confiar a decisão a deus ou ao destino. Ao resto de nós, resta crer na nossa capacidade de olhar para a realidade e projetar o futuro.

Encontramos todos encruzilhadas na nossa vida, fazem-nos crescer. Fazem parte do nosso caminho. Ficamos mais fortes, mais experientes e mais sábios de cada vez que as ultrapassamos. Passamos por elas mas é como se elas também passassem por nós. Não saímos delas iguais. Sairemos melhores se conseguirmos, sobretudo, resistir a olhar para as opções que declinámos. Se soubermos que olhar para trás só nos acrescenta azedume e é inútil. Já não estamos lá. Melhor será projetar hipotéticos novos cruzamentos onde, de novo, teremos que decidir com um palpite ou uma fezada. E a vida é feita disto. E de novo Jorge Palma, desta vez, penso eu, mais certeiro: "enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar". 

Thursday, August 30, 2018

Gatilhos


Há gatilhos que, uma vez premidos, são devastadores. Podem disparar projéteis que põem fim à vida e fazem nascer dor e sofrimento. Com esses, não quero ter nada a ver.

Há outros que me interessam mais. São gatilhos que disparam memórias. São silenciosos e até involuntários. Dedos invisíveis estão sobre eles e podem manter-se lá anos a fio, imóveis e furtivos, até ao momento mais banal em que nos fazem rememorar um episódio que julgávamos esquecido e que, quando corre pelo melhor, nos enche de ternura e afeto. 

Muitas vezes, quase sempre, calamo-nos. A ideia de o partilharmos, ridiculariza essa memória. Vista de outro ângulo pode até parecer grotesca. É incomunicável, íntima demais. Por isso fica connosco, como que cristalizada num pequeno bibelot piroso que ornamenta a casa da nossa recordação. Como um quadro de Cristo com luzinhas a piscar. Como a estátua de um gato a acenar infinitamente com a mão, daqueles que se veem nas lojas de chineses. Ou ainda como uma reprodução do quadro que, há décadas, era omnipresente em todas as casas portuguesas – O menino das lágrimas.

Partilhar essas memórias é o derradeiro exercício de exposição. É colocarmo-nos, voluntariamente, numa situação desconfortável, ainda mais do que aquilo que é normal quando escrevemos. E é de uma generosidade absoluta e inútil. É tão nosso que esperar compreensão é como falar outra língua com quem não a entende e esperar diálogo.

Mas, enfim, coloquemos à prova o gatilho: Comer melancia no Algarve. Vês? É como te dizia. Para ti não quer dizer nada, mas a mim, a primeira dentada na melancia fez-me assomar lágrimas aos olhos e transportou-me para Loulé há trinta anos para junto da minha avó. Vi-me de novo com ela no supermercado a escolher a fruta, a irmos para casa contentes e cansados do esforço de carregar aquela esfera descomunal. Senti de novo a alegria com que, à mesa da cozinha, a íamos fazendo desaparecer talhada após talhada e, sobretudo o calor daquele momento de comunhão.

Por isso, guardo estes gatilhos, as minhas madalenas de Proust, como ninharias que são tesouros.


Monday, June 18, 2018

Henriqueta Emerenciano

Era na casa a seguir à cozinha. À esquerda, encostada à parede, a cama alta de ferro onde gostava de estar sentada. À direta, dois sofás, uma janela, um roupeiro e uma mesa com a televisão a cores. Era por ali que andava e passava a maior parte do dia. Poucos metros quadrados de mundo com um bacio por debaixo da cama.
Já não se aventurava fora de casa. A saúde não o permitia. Recuando muito na memória ainda me lembro dela em minha casa. A demorar meia hora para fazer, com passinhos curtos e inseguros, os 150 metros que iam de uma porta à outra. A subir as traiçoeiras escadas de gatas pacientemente e a chegar ao primeiro andar cansada e eufórica como um alpinista. Esses dias depressa passaram.
As nossas conversas eram pontuadas com longos silêncios. Demorados minutos em que nenhum de nós dizia palavra. Falávamos com os olhos e o resto da cara. Às vezes ria calada, outras comovia-se ao ponto de quase chorar. Terminava o silêncio com a frase que lhe ouvi tantas vezes: "O meu Miguel está tão magrinho". E não estava, estava até gordo.
Durante essas pausas, demorava-se olhando para mim como se me estudasse as feições, parecia que tinha medo de as esquecer. Incomodava-me, às vezes, aquele olhar. Desviava então os olhos para o roupeiro. A porta do meio tinha um espelho e tentava lá perceber o que ela procurava tão atentamente. Nunca encontrei nada de especial. Só uma cara banal ora com barba, ora barbeada.
Dessas conversas, um detalhe é o mais importante, as suas mãos. Gastas e secas mas quentes e acolhedoras. Passava-me as mãos pelo rosto, sentindo os ossos do maxilar e tomava as minhas mãos nas suas. Toda a ternura que sentia para com o seu neto estava condensada nesse gesto. As mãos estavam sempre quentes quando eu tinha frio e frescas no verão abrasador do Alentejo.
Quando, como agora, algo me leva para a sua lembrança, são as mãos que sinto na minha face e ouço, num sussurro: "O meu Miguel está tão magrinho." 

Thursday, June 07, 2018

Vida Triste

Maria Teresa, a Vida Triste, tia da minha mãe, irmã da minha avó Henriqueta. Conheci esta tia-avó já ia a infância a meio caminho. Tanto o meu pai como minha mãe são filhos únicos, por isso sofri de uma espécie de orfandade de tios. Os meus colegas tinham muitos primos, os meus eram em segundo grau, mais próximos da idade dos meus pais que da minha.

Um dia, apareceu a Maria Teresa. Vinha de uma vida “a servir” em casa de uma “senhora” em Évora num tempo em que ainda havia criadas domésticas. Hoje ponho-me a imaginá-la ainda criança a despedir-se da casa humilde dos pais e irmãos para ir trabalhar em Évora. Com certeza que não para uma mansão como a que vejo nos filmes e séries passados na época vitoriana, mas penso que, para ela, habituada à pobreza em que viviam os meus bisavós, lhe tenha parecido algo ainda mais luxuoso. Dessa vida, só me resta imaginar, nunca me falou de tal coisa.

A imagem que mantenho dela, como de muitas coisas da minha infância, começa a tornar-se difusa como se o tempo fosse um filtro opaco que não deixa focar pormenores. Era uma senhora dos seus cinquenta e alguns anos. Referiam-se a ela como “menina Teresa” porque nunca casou embora mesmo no Outono da vida não lhe faltassem pretendentes: o Cadicha que, nós miúdos, conhecíamos por Nesga e a quem faltavam dois dedos na mão direita e Isidro Parreira que tinha os dedos cobertos de anéis de ouro. De um e de outro conseguiu rebater as investidas mantendo o celibato até à morte.

A Vida Triste, assim a batizou o cunhado, o meu avô Miguel, era baixa, usava o cabelo curto mas sempre bem arranjado pelas mãos da Bia Bicadas, raramente usava calças. A sua toilette era sempre completada por uma carteira minúscula que levava para todo o lado mesmo que, descobrimos muitas vezes, estivesse completamente vazia.

Era a pessoa mais supersticiosa que já conheci. As forças do oculto eram, para ela, evidentes e via assombrações e bruxas em cada esquina. Acreditava firmemente que havia neste mundo muito mais do que os nossos olhos podem ver. Conta-me a minha mãe que algumas vezes foram de camioneta da carreira a visitar “virtuosas”, bruxas ou charlatãs que a advertiam contra maus-olhados, maldições e olho gordo.

Era sozinha, a Maria Teresa. Não me refiro ao facto, objetivo, de que morava só. Mesmo para uma criança, como eu era, isso parecia óbvio. Duas a três vezes por dia, no mínimo, vinha visitar-nos a casa. Abria a porta e chamava: “Maria, estás cá?” Sem esperar resposta, ia entrando e falando. Muitas vezes, não estava a minha mãe, apenas eu e o meu irmão. Egoístas como as crianças aprendem depressa a ser, calávamo-nos para que ela fosse embora em vez de vir ter connosco e nos desconcentrasse dos desenhos animados ou dos jogos de computador. Por vezes, funcionava, andava pelo rés-do-chão algum tempo, falando sozinha, avaliando o conteúdo da fruteira ou abrindo o frigorífico. Se a minha mãe tivesse o almoço ao lume, provava e retificava os temperos ou queixava-se do excesso de sal. Refilava da abundância se a minha mãe tinha bacalhau de molho a dessalar ou da míngua se houvesse apenas uma banana onde tinha estado um cacho repleto. Sempre a conversar consigo própria e reforçando essa ideia que eu tinha de que era só.

Um dia, numa dessas visitas, ao ouvi-la falar, rimo-nos. Indecisa entre subir as escadas ou ficar, ficou a olhar para cima no patamar, à escuta. Ao senti-la aproximar, ficámos em silêncio como se estivéssemos a brincar às escondidas. Então, olhámos em volta e vimos no chão umas calças que estavam num monte de roupa suja. Irrefletidamente, pegamos nelas e atiramo-las escada abaixo atingindo a Maria Teresa na cabeça. Assustada, sem discernir o que a estaria a atacar, saltou em altos brados para a rua, ainda com as calças na cabeça gaguejando: “É bruxedo! É bruxedo!”. Nós rimo-nos a espreitar à janela do primeiro andar. A Maria Teresa não achou piada nenhuma.

A minha mãe recorda ainda, muitas vezes, a ocasião em que ouvia vozes vindas da televisão mesmo que o aparelho estivesse já desligado da tomada. Chamou a minha mãe que ficou igualmente perplexa e, mesmo antes de chamar um padre exorcista, chamou o Chibanga, entendido em eletricidade que descobriu um pequeno rádio transístor ligado na gaveta por baixo da televisão. As vozes do outro mundo eram apenas os locutores da rádio.

Noutra ocasião num estrondo, caiu-lhe um homem na cozinha, quebrando o telhado. Imagino que dessa vez ela tivesse crido que era o próprio Belzebu que a atormentava, foi um susto tal que nessa noite não quis dormir em sua casa e veio dormir com a minha mãe.


Quando estas coisas se explicavam e a Maria Teresa entendia enfim que nada de sobrenatural lhe tinha acontecido e que eram apenas coisas que aconteciam a mentes excessivamente ociosas, punha um ar desconsolado e soltava um lamento que introduzia com um “ai” prolongado e profundo: “Vida Triste!”. Era esta a bengala que a amparava, repetidamente, como um mantra. Repenso agora nos motivos que a levariam a adjetivar daquela forma a vida. Seria a solidão, o medo do sobrenatural? E concluo que a obsessão com o sobrenatural nascia da solidão. Talvez tivesse começado como um escape para o tédio, um rabisco que ela desenhava numa folha de papel que não suportava continuar a ver em branco ou uma conversa que tem consigo própria para rasgar o silêncio. Com a rotina, com o tempo, talvez o que imaginava se tenha tornado tão real como uma Vida Triste.

Wednesday, May 30, 2018

Há dez anos que há um tema de que falo todas as semanas. Não é um tema agradável mas tenho aprendido muito, mais a ouvir do que a perguntar. Ouvi muitas opiniões, respeitei-as todas. Mesmo quando me dizem que não têm opinião sobre o assunto, se calhar até são os mais sensatos. 

Por falar constantemente de eutanásia com os grupos de formação, já vi o filme "Mar Adentro" de Alejandro Amenábar e li o conto "Alma Grande" de Miguel Torga tantas vezes que os sei de cor. Cada diálogo, cada frase. Cada plano, cada descrição. Ouvi pessoas de todos os quadrantes a mencionarem as duas obras nos últimos dias. Um é abertamente um filme panfleto, o outro foi instrumentalizado e descontextualizado pelo líder da bancada parlamentar do PSD. Fica bem um pouco de erudição num debate na casa da democracia mesmo que se mude o contexto histórico da era da Inquisição para "a primeira metade do século XX" e se deixe de lado a perseguição religiosa e a tortura para se colocar a fome e a miséria como móbil para a ação do abafador. Dá mais jeito para justificar o discurso político e convicções pessoais. 

Aceito todos os argumentos contra a eutanásia mesmo que o meu respeito pela liberdade do outro me impele a aceitar que a vida lhe pertence, a ele mais do que à família e amigos. É uma questão de valores, para mim a Liberdade está acima da Vida. Os que deram a vida em nome da liberdade são vistos como heróis. Os que abdicaram da liberdade em nome da vida não são, justamente, cantados. Só dois argumentos não respeito, os fundados na ignorância ou na superstição. Em relação aos primeiros nem falo, quem os utiliza terá dificuldade em compreender-me e estaria a perder tempo. Em relação aos segundos, não posso aceitar que as crenças religiosas de um grupo, por mais numeroso que seja, sejam lei para todos. Podem ser leis para quem nelas acredita, é um direito dessas pessoas. Não posso é aceitar que façam do sofrimento um dever para todos.

Monday, March 05, 2018

Sísifo


Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças...


Miguel Torga

Friday, February 23, 2018

Chico Luso


Quem se achasse perdido no tempo, sem saber que dia do mês era e não encontrasse um calendário, podia entabular conversa com o Chico Luso. O seu nível de alcoolemia, para quem conhecesse bem os seus hábitos, chegava para determinar se estávamos no princípio, no meio ou no fim do mês.

Chico não trabalhava, mas tinha alguns rendimentos. O rendimento social de inserção, os subsídios de refeição e de transporte que ganhava por andar num curso de operador agrícola e alguma esmola, normalmente em género, dada pelas suas idosas e piedosas vizinhas.

Fora o pouco que comia, fugaz como um passarinho, tudo era dissipado em bebida. Nos poucos dias após receber, em vinho de garrafa de origem denominada e em copos de macieira aos balcões dos cafés da vila em que ainda tinha autorização para entrar. Mais tarde, em garrafões de cinco litros do vinho mais barato que o supermercado vendesse. Já no fim do mês, e ainda antes de receber novo pagamento do estado, em pacotes de litro de vinho que dizia em letras pequenas: “mistura de vinhos de vários países da União Europeia”, [o vinho do Chico Luso a concretizar as promessas de unidade europeia com mais eficácia que os governos do Velho Continente]. Quando todo o dinheiro terminava, sacava constantemente de dentro da mochila de garrafas de litro e meio cheias de água com sumo de limão que bebia apenas com uma sombra da luxúria com que tragava o vinho de há meia dúzia de dias.

Fazia-se transportar de bicicleta. Recebia, é claro, dinheiro para transportes públicos, mas descobriu que os dezassete quilómetros duas vezes por dia podiam ser feitos a pedalar com relativa facilidade e, ainda que em algumas ocasiões ostentasse na face marcas de contacto repentino com o asfalto, a bebida que esse dinheiro podia comprar era bálsamo mais que suficiente para essas e outras dores.

Entre os dias em que bebia vinho e os dias em que bebia água aromatizada com limão, havia uma constante: o repetir de histórias sobre a sua vida. Havia sempre, contudo, algumas diferenças no tom, ora eufórico, ora deprimido consoante o líquido que lhe servisse de combustível. Contava-nos histórias, mas não esperava a nossa atenção. Chegámos a vê-lo sozinho a dar à manivela desse fantástico mecanismo de rememoração. Parecia que era ele próprio o destinatário daquelas narrativas. Articulava as palavras de maneira incoerente, demasiado mastigada, aos solavancos como se estivesse numa montanha russa. Cuspia por vezes as palavras, desdenhoso de si próprio. Umas vezes amaldiçoava-se e outras chorava, emocionando-se com algum pormenor.

Tinha muita dificuldade em seguir o fio dessas narrativas, mas, pela repetição, apercebi-me que o tema era sempre o mesmo. Histórias sobre oportunidades perdidas, inúmeras, um mar delas. As circunstâncias sempre contra ele, vítima de invejas e infortúnios. Era como aqueles filmes de Hollywood com muitas sequelas a imitarem o enredo do original, mas cada vez com menos fôlego e capacidade de surpreender, como réplicas de um terramoto. Cada vez que começava, já sabíamos de que forma terminava: “…e hoje podia ter uma vida boa em vez de andar aqui a penar.” E a seguir o silêncio, contemplativo, fitava um ponto no infinito e era assim que sabíamos que a história terminara. Não havia um descer da cortina, mas era como se houvesse.

Contudo, nem todas as atuações de Chico Luso pendiam para o dramatismo. Certas vezes, numa operação a que tive que assistir para acreditar, trazia na bicicleta, para além da já costumeira mochila carregada de bebida, a caixa de uma guitarra acústica. Nos dias em que bebia mais que a conta, ocasião bastante corriqueira, era um prodígio de equilibrismo a forma como conseguia montar-se na bicicleta e fazer em segurança os dezassete quilómetros até casa por entre curvas, subidas e descidas. Mais admirável era vê-lo com o contrapeso de uma guitarra às costas. Diria que era antes uma ruína de uma guitarra. Com três cordas colocadas ao acaso, afinadas segundo o critério de Chico Luso, serviam para este cantar baladas, fados e música tradicional. Acompanhava-se de uma gaita de beiços. Parecia, quando desviávamos o olhar, que conseguia a proeza de cantar, tocar gaita e guitarra ao mesmo tempo em total desarmonia.

Um dia, quis saber para onde ia Chico Luso quando se retirava. Havia quem dissesse que dali ia para casa. Outros juravam que, em certas ocasiões, já perdido de bêbado, dormia mesmo na vila em cima de um banco ao pé do tribunal. Também bastante popular era a tese de que ainda ia correr alguns dos cafés da vila na esperança de encontrar quem lhe pagasse algum copo ou partilhasse com ele da sua solidão. Segui-o a alguma distância, instruído pelos livros de espionagem que li na adolescência. Não que Chico Luso se apercebesse de que era seguido, ele mal dava conta das pedras da calçada debaixo dos seus pés ou dos carros que abrandavam a velocidade ao vê-lo ao longe. Andava numa passada mais rápida do que aquela com que estava a contar e, em algumas subidas, tive mesmo de me esforçar para o conseguir acompanhar. Chegámos ao fim da vila, à zona onde corria o Mira. Chico desceu até à margem e foi caminhando rio abaixo. Hesitei entre continuar a segui-lo ou desistir. Sem pensar muito no assunto, quando dei por mim estava também já junto ao rio. Caminhámos alguns minutos, o tempo suficiente para estarmos a uma boa distância da última casa da vila. A minha curiosidade adensava-se a cada passo. Então parou. Olhou em volta, mas não me viu. Por instinto, escondi-me atrás de um salgueiro como que antecipando o movimento. Achando-se sozinho, ajoelhou-se. Inspirou e soltou um grito que se não lhe vinha da alma, pelo menos saía-lhe das entranhas. Um grito que parecia rasgar o espaço, um grito sobrenatural cheio de dor e angústia em contraste com a calma da natureza em volta. Não sei dizer quanto tempo demorou o grito. Quando se calou, vomitou e, aninhando-se como um pequeno animal, adormeceu.

Thursday, February 08, 2018

Santos da Casa


Ao Domingo de manhã, enquanto muitos frequentam a missa, era figura certa na curva da igreja, frente às casas de banho públicas. Era dos mais idosos na freguesia mas estava bem conservado graças a uma vida salvaguardada dos trabalhos duros do campo. Enquanto que os poucos que restavam da sua idade, entre lamentos das doenças que os afetavam, recordavam as jornadas de sol a sol nas searas debaixo de um sol tórrido, as mondas que lhes vergavam as costas ou as carvoarias que lhes enchiam os pulmões de fuligem, Santos podia olhar para trás e recordar uma vida de privilégio e prestígio ao balcão da farmácia. Agora reformado, a idade era já muito avançada mesmo para um trabalho ligeiro, recordava a autoridade com que, detrás do balcão e em cima do estrado recomendava algum medicamento. Mais importante que o Santos da Farmácia, só o Dr. Capoulas. É que apesar de muito poderem os donos das terras que decidiam se uma família tinha ou não trabalho, o Santos e o Dr. Capoulas podiam salvar vidas. Talvez tivesse até vaidade nisso, até mais do que no dinheiro que fora amealhando ao longo da carreira. Conseguira fazer uma casa na aldeia, uma das maiores e mais bonitas, e tinha carro, objeto inacessível à grande maioria dos habitantes de Santiago. Era o carro o símbolo maior da riqueza e prestígio de Santos. As casas são investimentos que ficam para o futuro e para os filhos, sabe o povo. E sabe também que os carros são o contrário. Por isso, era quase que para recordar aos seus pares e a si próprio que pertencia à categoria dos homens que têm sucesso na vida, que Santos cumpria o ritual domingueiro de lavar o seu Datsun 120Y branco, restituindo-lhe semanalmente a alvura que, antes, ostentava na sua bata de farmacêutico. Depois, sentava-se ao volante, vagarosamente dava à chave e, após ouvir dois ou três roncos do motor, arrancava e dava uma volta triunfal de cerca de meia hora por Santiago.

Quando eu era novo, já Santos era velho. Conheci-o já reformado com a farmácia já fechada mas com esse sufixo sempre colado ao nome: "Santos da Farmácia". A minha mãe contava-me histórias da sua meninice e uma delas envolvia-o. Tinha o meu avô um cão que era um prodígio de inteligência - o Maroto. Tão inteligente que fez despontar na minha mãe um amor pelos animais que ainda hoje se mantém. Santos da Farmácia era caçador e, ao saber das qualidades do cão, quis comprá-lo. O meu avô aceitou 500 escudos pelo Maroto mas o próprio não aceitou bem a mudança. Sempre que conseguia, escapulia-se e ia ter com a minha mãe e o meu avô ao monte da Masmorra. Só quando lhe explicaram que o Santos era o novo dono, Maroto se conformou. Com o dinheiro da venda e para atenuar a culpa própria e o desgosto da minha mãe, o meu avô comprou uma pulseira ou um fio de ouro à filha. Esta história contribuiu para que Santos fosse, para mim, uma mistura de idoso respeitável e vilão de um filme da Disney. Era daquelas pessoas a quem era incentivado a cumprimentar formalmente "Bom dia, Sr. Santos" ou "Como tem passado, Sr. Santos?".

Um dia, alguém se queixou no posto da guarda da volta triunfal domingueira de Santos. Já não via muito bem, os reflexos não eram grande coisa e, por pouco, atropelava alguém. Não sei se houve mais queixas mas quero acreditar que houve até que o cabo Maximino foi falar com o idoso. Pediu-lhe primeiro que não conduzisse mais, depois desse pedido ignorado, proibiu-o, mais tarde tirou-lhe a carta. Já não tinha idade nem capacidade para conduzir. Santos continuou a lavar o carro ao domingo mas nunca mais o conduziu. Aconteceu então um fenómeno estranho: Santos que até então parecia ter interrompido o envelhecimento, parecia agora envelhecer um ano todas as semanas. A cada domingo sentia mais dificuldade em lavar o carro, cada vez demorava mais tempo e com movimentos mais e mais lentos. A pouco e pouco, até o carro, outrora sempre de um branco brilhante, parecia corroído e a acusar a passagem do tempo. A chama que faiscava nos olhos de Santos foi-se apagando aos poucos até que morreu. As pessoas diziam que morreu de desgosto por não ser autorizado a conduzir. Talvez tenha sido isso, digo eu, ou talvez porque em Santiago muitos tinham já carro e o seu Datsun 120Y era tão-só uma velharia bem estimada.

Wednesday, January 10, 2018

Nomes de Santiago

Conheces o nome que te deram, mas não conheces o nome que tens.
De um livro imaginário de evidências, retirou Saramago esta frase e a colocou em epígrafe do romance Todos os Nomes.

Em Santiago, tudo tem dois nomes. As pessoas, as ruas, os lugares, os cafés, as mercearias e a junção destes dois últimos, as vendas, tudo foi duas vezes batizado. Uma vez, pelos seus proprietários ou pais e regedores, o que vai dar ao mesmo. Esse batismo é fácil, deixa um rasto de papel, de registos e assentos de nascimento assinados, quando quem o faz sabe ler e escrever, ou apenas com uma cruz ou impressão digital no caso daqueles que passaram as primeiras infâncias atrás de uma vara de porcos.

O segundo batismo é mais nebuloso e nem sempre, por mais que inquiramos, conseguimos descobrir a sua origem. Por vezes é um mistério que interessa a poucos mas que a mim sempre me atiçou a curiosidade. São os pares quem encontra esse nome que, quase sempre substitui o oficial e que, qual código tácito, contribui para a construção de um sentimento de comunidade. Quem vem de fora não conheces estes nomes e, por mais anos que viva em Santiago, será sempre um forasteiro enquanto não os dominar.

A rua da casa dos meus avós paternos é a Rua Dr. Miguel Bombarda mas em Santiago é a Rua do Pomarinho. A Rua Dr. Afonso Costa nunca teve esse nome para mim, a não ser agora que andei pelo Google Street View a descobrir esses nomes ocultos, era a Rua dos Rapazes. A rua onde era o mercado é ainda a Rua Tenente Abreu mas, para todos os que conheci na infância, menos os carteiros, é a Rua das Pites. De dois terços destes nomes, até consigo perceber a origem. Mesmo no centro da Rua do Pomarinho, há um monte com esse nome. Na Rua dos Rapazes, existiu uma venda que, apesar de ter outro nome, era conhecida como “os rapazes”. Estes “rapazes” já os conheci perto dos sessenta anos. Mas a Rua das Pites já tem uma origem para mim desconhecida. Aqui me confesso, nem sei o que será uma pite.

O mesmo acontecia com os estabelecimentos. Embora os proprietários dessem voltas mais ou menos menores para encontrar um nome para as mercearias e cafés, normalmente, o nome do proprietário ou alcunha tinha mais força. Foi assim com o Cancela, com o Tónica, o Zorro e continua a ser com o Marreca, o Daurindo e o Lavado. Quase tudo estabelecimentos cujo nome original remete para a orografia da região.
Mas o fenómeno mais curioso, aquele que realmente me interessa, é o das alcunhas. A mecânica que leva a que um homem, e muitas vezes toda a sua prole, passe a ficar conhecido por um nome oferecido por esta entidade coletiva que se chama Santiago. Há para todos os gostos e explicações. Alcunhas que nascem do local de origem das pessoas, de algum episódio caricato que com ele se passou ou com um antepassado demasiado longínquo para ser nomeado, da profissão do avô, bisavô ou triacontavô e algumas de pai e mãe incógnitos.

Muitas destas alcunhas, não sei há que tempo, passaram a ser legitimadas e a constar nos documentos das pessoas. Nomes tão ligados à família que substituíram o apelido. Eu que sou Masmorra Rabino, uma aliteração tão poderosa, a isso o devo. Masmorra era o nome do monte onde morava a família do meu avô materno e passou também a apelido. Rabino é nome demasiado bizarro para se dever a antepassados judeus, ainda para mais num país com um passado de perseguição tão grande ao povo de Moisés. O mais certo é ter havido uma transformação de adjetivo em nome próprio.

Rabino
Adjetivo
 1. Velhaco; travesso.
  2. Rabugento.
  3. Teimoso e desinquieto.

Mas que não pareça que me queixo das alcunhas que se oficializaram em nomes. Gosto dos nomes, não os considero impróprios. Mais personalizados que Santos ou Silvas. E reconheço algumas destas características em alguns Rabinos e em mim mesmo.

E não me queixo até porque em Santiago há nomes ainda mais bizarros. Nomes que designam famílias inteiras e que não estão no Bilhete de Identidade. Nomes que, se calhar, não estão escritos em lugar nenhum mas que ouvimos todos os dias. Pois que fiquem aqui alguns:

Arcadinho, Barreirense, Besunta, Bicho-do-amor, Bóia, Cadicha, Cagaita, Cancela, Cara Cagada, Cerôla, Droga, Égua, Fezes (tenho um tio Fezes), Lapeira, Marreca, Pá da Ova, Palafofa, Pouca-Roupa, Pé-Cagado, Piço, Poila, Remexido, Tamente…

Assim, o mais humildemente que posso, sugiro a Saramago uma correção:

Conheces os nomes que te deram, mas não conheces o nome que tens.

Friday, January 05, 2018

Barba e Cabelo

Quando, vestidos de igual, com fatos de treino e ténis comprados na mesma loja com um número de diferença, eu e o meu irmão parecíamos dois meninos selvagens por força do cabelo desgrenhado, a minha mãe decidia que era altura de ir ao Ciladas. Ciladas, Francisco, era o barbeiro da vila. Quando ainda éramos muito pequenos, acompanhava-nos o meu avô materno, a barbearia não era lugar para mulheres, quase tão proibido como os cafés ou talvez mais ainda. Mais tarde, íamos os dois e quando nos fartámos de ser aquela entidade semi-singular, os gaiatos do Daurindo, começámos a ir sozinhos.
A barbearia era um lugar simples. Não havia nada com que uma criança que esperava a sua vez enquanto um homem era barbeado pudesse entreter os olhos, nenhuma televisão, nada de jornais ou revistas. Nas paredes, apenas um calendário da Fidelidade que mostrava dois perdigueiros com perdizes na boca e um reclame à mesma companhia da qual Francisco era também mediador de seguros.

Restava-me a conversa. Não participar dela, mas escutá-la. Na sala, nunca cheguei a encontrar Ciladas sozinho. Presença constante era o seu cão. Minúsculo, inteligente, respondia pelo nome Jú e era costume ter longos diálogos com o dono a que respondia com expressões sabedoras. Francisco era um homem já nos sessenta anos, da idade dos meus avós. Na minha memória, tinha uma barriga enorme e usava umas calças subidas até meio desse ventre desmesurado. Usava um bigode fino e uns óculos grossos de massa. Companhia comum, era também o irmão de Francisco, o José. Quando isto acontecia, era certo que a conversa havia de ser sobre caça, a paixão que unia os irmãos. José começava, melancólico, a lembrar caçadas passadas, a recordar histórias que os deixavam a ambos a rir e acabava num lamento por "eles", os políticos, estarem a acabar com a caça. "Antes é que era caçar, hoje já não é nada". Eu, calado, tinha que acreditar naquilo. Muitas coisas de que falavam, fora a caça, acabavam neste queixume: "isso é que eram tempos, isto hoje é uma vergonha". E, para mim, era a verdade. Pensava que tinha azar por viver no meu tempo e não no tempo "deles". Depois começavam a falar da saúde, do médico que os proibia de beber vinho, de comer carnes gordas e acreditava que tinha azar também, como eles. Tudo o que era pretérito era perfeito naquelas conversas.

Tinha eu já sobre o lábio uma sombra que adivinhava um bigode e o passeio ao passado começou a incidir sobre outras aventuras e percebi que afinal não era só a caça que lhes acendia uma luz interior. Francisco recordava a caçada que lhe conseguiu a peça de caça de que mais se orgulhava, a sua esposa. Quando ao domingo, os víamos de braço dado a passear na vila ou numa visita ao mercado da Rua das Pites, sobressaía a diferença de alturas. Francisco era pouco mais de um palmo mais baixo que Rita. Rita era, na vila, conhecida por Rita do Ciladas como muitas mulheres ainda hoje são conhecidas pelo nome próprio seguido da preposição de posse e do nome do proprietário, o marido ou o pai. Mas tinha conhecido na barbearia o seu nome secreto, usado lá em casa: Galga, ou, como dizia Ciladas, "a minha Galga".

Calculo que cortava o cabelo três a quatro vezes por ano e devia também ser essa a frequência com que ouvia a história. Francisco cortejava Rita que o recusava, achava-o baixo para ela e por isso não lhe agradava. De recusa em recusa, a determinação de Francisco ia crescendo até que um dia, cheio de coragem e movido pela sensualidade, encostou Rita a uma figueira e lhe mostrou que, quase na horizontal, a altura não fazia diferença. Quando Francisco acabava a história, ríamos todos com gosto.

Acontecia que Francisco tinha uma neta da minha idade, até andava comigo à escola na turma do professor Albino. Coincidia que a neta dele era quase dois palmos mais alta que eu e, depois de rirmos da história, Francisco parava de cortar o cabelo ou fazer a barba a quem quer que fosse, mirava-me por cima dos óculos e dizia-me: "E tu também podes fazer o mesmo à minha neta, lá por ela ser mais alta não tens que ter medo." E riam outra vez todos com gosto, menos eu que só me ria, sem gosto nem desgosto.

Percebi então que na barbearia do Ciladas havia uma espécie de ritual que se cumpria com quase todos os clientes. Podia-se falar de atualidades, futebol, caça e política ou até sobre o tempo mas antes tinha que se recordar uma história ou conversa. A mim, calhou-me em sorte a história do Francisco e da sua Galga porque a neta era também mais alta que eu. A seguir perguntava-me sempre se era do Sporting ou do Benfica. E depois podíamos falar sobre futebol, ou sobre pesca, ou sobre a escola. Mas tive a sorte de ir muitas vezes cortar o cabelo no mesmo dia que o Oli. Oli foi o primeiro homem que conheci que era capaz de responder à tradicional pergunta sobre se era do Sporting ou do Benfica com "de nenhum", era do Porto. Mas a minha sorte nada tinha a ver com a cor de que mais gostava. É que a história com que Oli cumpria o ritual costumeiro nos deixava sempre à beira das lágrimas de tanto rir. Podia aqui tentar escrevê-la como era contada mas perder-se-ia a teatralidade que o Oli colocava ao serviço da história, as suas expressões e notas de rodapé, por isso deixo só um resumo tosco. O primo de Oli, o Domingos era já adolescente e não tinha ainda um pêlo púbico, facto que lhe causava grande angústia pelos comentários que os amigos com quem ia às barragens nadar lhe atiravam. Decidido a evitar que a vexação se prolongasse, um dia, à hora de fecho da barbearia, pediu autorização a Ciladas, que varria o resultado de um dia de cabelos cortados do chão, e encheu os bolsos de pêlos. No dia seguinte, Domingos e os amigos tinham já combinado ir nadar para um tanque de rega e foi com incredulidade que os seus companheiros viram que, onde antes Domingos era pelado, estava agora uma farta cabeleira. Oli aqui dizia: "Ó Domingos, isto não pode ser. Mas tu ontem não tinhas nem um..." Assim que Domingos entrava na água, a cola que mantinha tudo agrupado deixava de fazer efeito e a cabeleira ficava a flutuar para gargalhada de todos.

Durante anos, praticamente até a barbearia fechar, não entrei sequer noutro local para cortar o cabelo. Mesmo que o Ciladas, tinha eu talvez quatro anos, me tenha dado uma tesourada numa orelha, nem isso foi motivo para ir a outro lado.

O Ciladas já morreu há muitos anos e a sua barbearia já fechou. Mas, sempre que é dia de ir ao barbeiro, a barbearia e o Ciladas vive de novo, por instantes, na minha saudade.