Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor.
Nascem por uma fatalidade biológica e quando, aberta a consciência, olham para a vida, verificam que só a alguns deles parece ser permitido o direito de viver. Uns resignam-se logo à situação de elementos supérfluos, de indivíduos que excederam o número, de seres que o são apenas no sofrimento, no vegetar fisiológico de uma existência condicionada por milhentas restrições. Curvam-se aos conceitos estabelecidos de há muito, aceitam por bom o que já estava enraizado quando eles chegaram e deixam-se ir assim, humildes, apagados, submissos, do berço ao túmulo - a ver, pacientemente, a vida que vivem outros homens mais felizes. Alguns, porém, não se resignam facilmente. A terra em que nasceram e que lhes ensinaram a amar com grandes tropos patrióticos, com palavras farfalhantes, existe apenas, como o resto do Mundo, para fruição de uma minoria. E eles, mordidas as almas por compreensíveis ambições, querem também viver, querem também usufruir regalias iguais às que desfrutam os homens privilegiados. E deslocam-se, e emigram, e transitam de continente a continente, de hemisfério a hemisfério, em busca do seu pão.
Mas, em todo o Mundo, ou em quase todo o Mundo, vão encontrar drama semelhante, porque semelhantes são as leis que regem o aglomerado humano. Não esmorecem, apesar disso. Continuam a transitar de olhos postos na luz que a sua imaginação acendeu, enquanto os mais ladinos, aproveitando todas as circunstâncias favoráveis ou criando-as até, fazem oiro com ingenuidade dos ingénuos.
Eles continuam a transitar com uma pátria no passaporte, mas, em realidade, sem pátria alguma, pois aquela que lhes é atribuída pertence apenas a alguns eleitos. Para eles, ela só existe quando nos quartéis soam as cornetas de guerra ou nas repartições públicas se recolhem tributos. É assim na Europa e é assim nos outros continentes.
Nasce o homem e, se não dispõe de riqueza acumulada pelos seus maiores, fica a mais no Mundo. Entra na vida – já se disse e é bem certo – como as feras nos antigos circos – para a luta! Luta para criar o seu lugar, luta contra os outros homens, luta pelas coisas mesquinhas e não pelas verdadeiramente nobres, por aquelas que contribuiriam para uma maior elevação humana. Para estas quase não há tempo na existência de cada um.
Transite ou não no Planeta, a maioria perece durante a batalha, porque não se removeu ainda, conforme a mais clara inteligência e o mais digno sentimento, a construção social erguida pelos potentados de outrora, e que hoje constitui, para a Humanidade, perene fonte de inquietações e de desditas.
Biógrafos que somos das personagens que não têm lugar no Mundo, imprimimos neste livro despretensiosa história de homens que, sujeitos a todas as vicissitudes provenientes da sua própria condição, transitam de uma banda a outra dos oceanos, na mira de poderem também, um dia, saborear aqueles frutos de oiro que outros homens, muitas vezes sem esforço de maior, colhem às mãos cheias.
O problema da emigração não é, porém, um problema-causa, mas consequência de outros mais vasto e mais profundo. Assim, sob a forma do primeiro, o nosso romance pretende dar a essência do segundo. E seria, portanto, um erro atribuir ao Brasil, país que tanto amamos e é um dos mais nobres e generosos no Mundo, ou à Argentina ou à América do Norte, que têm uma organização social idêntica à de quase todos os outros povos, responsabilidades especiais pela derrota que alguns emigrantes possam sofrer nas suas ambições, tanto mais que é verdade não estar preparada para a luta a maioria deles, constituída, em muitos casos, por pobres seres ignorantes que a Europa exporta diariamente. O drama é outro e é universal. Esses homens vão correr a sua aventura porque têm falta de pão ou porque se convenceram, justamente, de que no mundo em que vivem só quem dispõe de oiro tem direito às expressões capitosas da vida. Em circunstâncias particulares, são ainda iludidos por outros homens, que os exploram na sua própria terra, afirmando à ingenuidade deles que, mesmo assim rudes, mazorros, primários, encontrarão, neste e naquele trecho do Globo, fabulosas riquezas. E eles partem então, fascinados pela miragem. Se tivéssemos culpas a estabelecer, à Europa as debitaríamos em primeiro lugar.
Tudo isto, porém, são simples ramos de grande, milenário e carcomido tronco, cuja sombra os homens andam agora a examinar, preocupados com o espaço que ela ocupa.
Pela nossa parte, ao revermos, cuidadosamente, esta reimpressão de Emigrantes procurámos deixar bem nítido, para além do problema da Emigração, o problema fundamental – o de hoje, o de ontem, o de sempre.
*Prefácio da 4.ª edição (1936)
Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)