Já não se lembra
do dia, era Outubro, sabe-o porque havia formigas de asa por todo o lado. Esperava-as
todos os anos. Intrigava-se com esta invasão, com a aparente inutilidade das
asas em seres que rastejam sobre e sob o solo. Onde andariam todo o ano e por que motivo apareciam com as primeiras
chuvas do Outono? Provocavam um frenesim nas aves que se alimentavam de forma
prodigiosa com estes parentes longínquos também alados. O avô, homem que apesar
de analfabeto conhecia a cartilha da natureza, dizia que adivinhavam a chuva,
se conhecesse a palavra, melhor diria que eram os seus arautos.
Pensava ainda
nisso quando surgiu o primeiro sinal de que estava grávida, dado pelo rebentar
das águas. Não soube logo de que se tratava, apenas via os pés molhados com
aquele líquido de fonte desconhecida. As dores puxaram-lhe um grito que,
saindo-lhe da garganta, parecia vir de um local desconhecido, do baixo-ventre
que era agora uma fornalha. O seu ventre, nove meses carregado em silêncio, era todo alarme. O medo impedia-a de compreender o que se passava. O animal
que era sobrepunha-se à mulher que também era. Sentou-se, as pernas abertas e
arqueadas, os pulsos, primeiro, depois os cotovelos, a susterem o peso do tronco. Respirou fundo, procurando a
calma que a abandonara. Chamou, com uma voz frágil, por alguma companheira da apanha de azeitona
que, mesmo longe, pudesse ter sido alertada pelo seu grito, mas ninguém se
aproximava.
Foi quando
caíram as primeiras lágrimas que conseguiu, enfim, organizar os pensamentos e
trazer alguma luz à sua situação. Revia o mês de janeiro, o encontro furtivo
com o Manuel, rapaz que vinha à aldeia para ajudar nas matanças dos porcos e no
desmanche das carnes. Ela, encantada com aquela arte que transformava animais
em conduto, a seguir os movimentos certeiros da sua faca. Segurava o
instrumento vigorosamente com uma mão, enquanto a outra ora empurrava com
firmeza ora afastava entranhas para conseguir chegar até ao ponto onde o corte era necessário. Achava tudo
estranhamente sensual. Ao final de cada dia, despedia-se sempre com um sorriso
e um “até amanhã, menina” e, mesmo antes de se montar na sua motorizada,
estendia-lhe um pacote embrulhado em papel pardo e dizia “isto é para si,
menina”.
A atenção
fazia-lhe o sangue pulsar, sentia-se desejada, pela primeira vez. Chegava a
casa e abria o pacote, umas vezes os rins ou a papada, outras bochechas, ainda os túbaros.
Entregava tudo à mãe que, mesmo ardendo em curiosidade sobre a origem destes pedaços de porco,
preferia calar-se e melhorar o jantar da família. Dormia deliciosamente, não
sabia dizer se da barriga mais consolada se da vaidade de ser o objeto de
desejo do rapaz. Havendo matança na aldeia, oferecia-se para ajudar se sabia
que era Manuel quem vinha matar e amanhar. Amparava o sangue, agachada e
olhando o rapaz que, com um cigarro ao canto da boca, se concentrava no abate
do animal. Tirava, de vez em quando os olhos do alguidar já cheio quando a guincharia do
bicho acalmava e a morte, enfim, o reclamava, para mirar a face do matador.
Este, se surpreendia o seu olhar, sorria enrugando toda a cara, com um indício
de luxúria.
No dia de Reis,
o Arcadinho queria matar um porco e veio Manuel tratar do assunto. Ao final do
dia, chamou-a. Levou-a para um recanto perto da ribeira, atrás de uma velha
figueira e disse novamente “isto é para si, menina”. Ela esperava um corte de
carne, mas desta vez parecia ela a ser cortada. Sangrou pouco, e foi uma dor
prazerosa que se repetiu a cada visita de Manuel no resto desse Inverno.
Depois disso,
veio o tempo quente e não houve mais matanças. Veio a seca, não choveu mais
nesse Inverno, março marçagão foi de verão e abril sem águas mil. Maio foi de
trovoadas, mas secas. O estio veio com força, sem pinga de água. Os pastos secavam,
as hortas morriam de sede e chorava-se na aldeia um ano de fome. Sentia o
ventre a crescer, mas escolheu ignorar como fingiu também não perceber que as
regras deixaram de lhe aparecer todos os meses. Esqueceu voluntariamente o
Manuel, desaparecido da aldeia, e vestia roupas largas para se enganar.
Sentiu nova vaga
de dor a irradiar-se do ventre para o resto do corpo. Estremeceu. Sabia já o
que estava a acontecer, ou melhor, aceitava que era uma criança que estava
prestes a nascer. Era real, a sua vida haveria de ter um antes e um depois
deste dia. Um marco de sangue e dor no seu curto caminho.
Os pensamentos
sucediam-se sem que um se fixasse, até pensar na criança. Que seria das duas?
Como chegaria a casa, se a conseguisse parir, com um recém-nascido nos braços?
Imaginava os pais, estupefactos, primeiro, e depois irados. Adivinhava os nomes
que a mãe lhe iria atirar à cara e o desgosto que provocaria no pai, que sempre
a defendia. Depois disso, a aldeia, a marca que os olhares lhe atribuiriam para
sempre, a criança, rapaz ou rapariga, vista como o resultado de um pecado sujo.
Os pais ajudariam a criá-la ou renunciariam a ambas?
Chorava agora o
destino deste ser que ignorava há minutos e a chuva rebentou com estrondo. A
terra, mesmo sequiosa há meses, não conseguia absorver o dilúvio. A força da
água a embater no chão projetava gotas de lama para as suas pernas descobertas.
Pequenos cursos de água iam-se formando, seguindo os declives do terreno.
Faltavam-lhe as
forças e a coragem para se erguer. Uma dor que parecia a mãe das que vinha a
sentir levou-a ao limite da consciência. O instinto dizia-lhe para fazer força.
Obedeceu, inclinando a cabeça para trás e soltando um rugido, gutural,
animalesco que se misturava com o estrondo dos trovões que soavam pelo vale.
A seguir, o
silêncio. Apenas o som da chuva que continuava a cair. As formigas de asa eram levadas pelo vento e esmagadas contra o chão pela água. Entre as pernas jazia,
ensanguentada e imóvel, uma figura informe, ligada a si por um cordão.
Pegou-lhe, sentindo que era apenas um pedaço de carne. Não respirava, nasceu
sem vida.
Levantou-se,
retirou a faca do saco do farnel e cortou o cordão. Evitando olhar o corpo,
embrulhou-o no talego e, levantando-se a custo, atirou-o ao barranco que corria
engrossado pelas águas vindas de um céu que desabava. O embrulho desapareceu de imediato, levado pela água que corria tresloucada. A recordação de Manuel assombrou-a por instantes, de braço esticado com um embrulho “isto é para si, menina”,
agora repugnando-a.
Não tem dia
certo, quase sempre em outubro, as formigas de asa vêm-lhe lembrar a chegada da
chuva e aquilo que as águas levaram.