Na
Europa, divisão IV Sudoeste, 41560BE acabou de acordar. O som do despertador
padronizado arrancou-o ao sono na hora prevista no sistema integrado de
despertamento e elevação do leito (SISIDEL): sete horas da manhã no horário
europeu unificado, seis horas na antiga hora continental portuguesa. Conforme
ordenado pelo guião, levantou-se, colocou o pé direito no chão e dirigiu-se,
dentro do minuto regulamentar, até à casa de banho. Sabe que se irá demorar
entre 15 e 20 minutos na sua higiene diária. O último relatório do SISIDEL
refere que na divisão IV Sudoeste o tempo médio é 19 minutos e 10 segundos,
muito longe dos 17 minutos e 23 segundos da divisão I nordeste, facto apontado
como uma das causas da baixa produtividade dos países da divisão IV em geral e
do Sudoeste em particular. Retirou a roupa de entre as opções do catálogo
padronizado de indumentária (CAPIN): o número 5, camisa azul e calças bege. O
sistema integrado de rotação e seleção de indumentária do CAPIN (SISROSICA)
estabelece o uso obrigatório de todas as combinações disponíveis a cada mês. O
programa aleatório de seleção de indumentária (POSI) gerou esta opção. Não será
a que mais agrada a 41560BE, mas o regulamento é soberano. No muito improvável
caso de desregulação no sistema, deve remeter o formulário regulador de análise
e descarte de erro (FRADE) que será analisado pela mesa de trabalho especial de
reconversão do erro (MesTRE). Tomou o pequeno-almoço obediente ao guião
metodológico de nutrição matutina (GUIMNUM), cereais e leite de soja.
O
GUIMNUM prevê a possibilidade de refletir na vida enquanto come, 41560BE
aproveitou a oportunidade já que o guião diário o proíbe no resto da jornada.
Caso tenha pensamentos suicidas, sabe que deve preencher o formulário e enviar
para os serviços de dissuasão da automorte (SERDISAM). Fixou o olhar no branco do leite e o pensamento fugiu-lhe,
nesta curta trégua, para 16192AM, a sua ex-mulher. “Nada mais triste do que um
homem velho e só”, concluiu de modo a evitar incumprir com o GUIMNUM.
Dirige-se
para a porta revendo mentalmente os passos do sistema integrado de basculação
orientada domiciliáriolaboral (SISBOD). Por
momentos distraído, quase esquece o registo na aplicação pessoal de movimento
de créditos (APEMOC), entra no sistema de avaliação de desempenho
acordar/despertar (SIADAP) e submete o relatório. Ato contínuo, ouve o sistema
eletrónico destrancar a porta e pode, finalmente, sair. O SISBOD tem sido alvo
de grande evolução e aperfeiçoamento que implicou a eliminação de transportes
redundantes. Havendo alternativas coletivas, o transporte individual foi
suprimido. Constatou-se que o acesso generalizado a esta comodidade,
incentivava a indolência para a qual os povos do Sul têm natural inclinação. Os
poucos que receberem classificações de mérito no marcador identitário de
uniformidade europeia (MIUE) poderão, cumpridos os requisitos de idoneidade e
aplicadas a quotas, ser premiados com um automóvel por alguns meses. 41560BE
teve uma classificação adequada que em nada o pode envergonhar. Dá-lhe acesso à
carruagem de segunda classe, pode ir sentado, o que é mais de que muitos se
poderão gabar. É uma justa recompensa que premeia as reincidentes horas
extraordinárias e permanente obediência. 41560BE nunca forçou o seu dirigente
a preencher um único formulário de negação laboral e reivindicação inoportuna
de direito (FORNLARID).
No
percurso, assiste ao vídeo obrigatório na carruagem, cumprindo o SISBOD. Os
livros há muito foram proibidos e a conversa altamente desaconselhada, exceto
se trate de observações meteorológicas objetivas e concretas, para isso são
remetidos para os dispositivos móveis de identificação pessoal dados sobre a
precipitação, nebulosidade e temperatura. O vídeo lembra as Regras e apresenta
casos de sucesso de cidadãos sorridentes das várias divisões de Europa que
conseguiram, através do Novo Sistema, alcançar os seus objetivos.
Antes
da Grande Organização e Desenvolvimento (GOD), 41560BE era escritor. O
algoritmo, omnisciente, associou-o ao centro de custos 41583, destruição de
objetos irrelevantes: livros, quadros, estátuas, cada vez mais raros, são
procurados pelas forças da polícia de identificação e recolha de objetos
inúteis (PIROI) e levados ao centro de reaproveitamento e obliteração do
irrelevante (CROI). À medida que se aproxima da paragem, acede ao dispositivo
móvel de identificação pessoal para classificar a viagem. “O sistema depende da
monitorização cidadã constante e do envio de contributos” ouve-se no vídeo,
onde todos sorriem, à medida que pressiona “enviar”.
Chega,
finalmente, ao CROI. O trabalho é importante, como todos os de Europa, assim
dizem os novos manuais escolares. 41560BE veste o uniforme de trabalho e segue,
automaticamente, para o seu posto: fornalha de obliteração do
irrelevante (FOI) n.º 249A. Realiza um primeiro exame ao contentor, muitos
livros, algumas pinturas e uma estatueta. Fixa os olhos na estatueta, com a
inscrição “reprodução de Nice de Samotrácia”. É subitamente acometido pela
memória de uma visita, ainda pequeno, anos antes da GOD, a um museu no local
onde é hoje a Europa, divisão I Centro. Não se recorda do nome do museu, mas a
estátua causou-lhe grande excitação. Como a esta miniatura, faltava-lhe a
cabeça. Ainda assim era bela, no conceito da altura, anterior à reorganização
semântica europeia (RSE). Depois da GOD, o adjetivo belo apenas se tornou
associado aos conceitos de organizado, útil e eficiente. Pega nesse objeto sem
uso e atira-o para a fornalha preenchendo o auto de abate de objeto irrelevante
(AAOI).
Começa
agora a pegar nos livros. Cada vez mais escassos, ainda vão chegando alguns
vindos de casas inspecionadas após denúncias anónimas. Enciclopédias,
dicionários, manuais de matemática e livros técnicos devem ser encaminhados, reaproveitados
e desmaterializados para a grande nuvem (GN) após envio para o sistema
automático de identificação de obra passível de desmaterialização e tradução
digital (SAIOPDTD). Outros livros que possam causar dano por estimulação da
imaginação, devem ter como destino imediato a fornalha: romances, novelas, contos,
poesia, teatro, ensaios, biografias, etc.
A
GN foi das maiores medidas da GOD. A eliminação da internet foi um passo seguro
na pacificação e uniformização das tendências opinativas dos cidadãos (PUTOC).
Em substituição criou-se a GN, um recurso com vista a disponibilizar conteúdos objetivos
para a promoção da racionalidade: estudos científicos, entradas de dicionário,
exercícios interativos de matemática, e outros estão ao acesso de todos através
dos dispositivos móveis e fixos de identificação pessoal. Um algoritmo sugere a
cada cidadão os conteúdos que melhor se adequam às suas funções, para que um
agente da PIROI não ocupe o seu tempo com estudos sobre geologia ou um mineiro
com documentários sobre enciclopédias. Há ordem e rigor na GOD, todos
contribuem para que seja perfeita o que demonstra a sua perfeição.
A
sua mão sente primeiro a comoção, antes mesmo de que os olhos, ansiosos, o
confirmem. Quando olha o livro, lê primeiro o nome do autor, “José Saramago”.
Costume encarado como primitivo, este de escolher um nome para os filhos.
41560BE já esqueceu o seu, mas este nome é-lhe familiar. Seria possível que
também ele se chamasse José? Não consegue responder, mas continua a sentir um
estremecimento inexplicável. “Ensaio sobre a Cegueira”. Será um livro de medicina?
Um espaço inominável, para lá da consciência, é o único que parece reconhecer o
livro. Levanta os olhos, procurando, em vão na brancura do teto uma resposta
para esta agitação. Baixa-os para o chão com a impressão persistente de que
esse branco se manterá, mas não. Distingue no chão vermelho o seu calçado
regulamentar.
Impressionado
com a situação, pondera por instantes submeter um relatório aos serviços de
manutenção da sanidade (SMS), mas, antes que decida o que fazer, já submeteu o
livro para o SAIOPDTD. 41560BE não tomou ainda consciência do que fez, já a
máquina cataloga o livro, traduz para as línguas oficiais de Europa e
disponibiliza na GN.
O
algoritmo sugere o livro em primeiro lugar aos oftalmologistas. Estes atribuem
uma pontuação elevada no sistema de avaliação de conteúdos da grande nuvem
(SACGN) que leva a que seja também apresentado aos médicos, enfermeiros e, enfim,
a todos. Apesar das proibições, fala-se do “Ensaio sobre a Cegueira” em todos
os lugares. Quem lê, não resiste à urgência de falar sobre o livro, aqueles que
apenas nessa ocasião dele ouvem falar, não conseguem evitar aproximar-se. As
praças das cidades de toda a Europa enchem-se de gente para escutar a razão deste
anunciamento mágico.
Uns
poucos cidadãos cumpridores preenchem FRADEs abundantemente, mas a MesTRE já
não consegue responder a todos. As praças vão-se enchendo de gente, ignorando
sistemas e ordenações. Os CROI são invadidos em toda a Europa por gente que atira os APEMOC para as chamas, celebrando a sua destruição com cantos que tinham esquecido. Multidões abraçam objetos antes destinados à fornalha, repetindo palavras proibidas
que o livro fez relembrar: arte, pensamento, criatividade, liberdade, identidade.
41560BE terminou o seu pequeno-almoço e olhou por uns instantes a tigela vazia. Suspirou, sentindo o peso costumeiro do seu corpo, presente, pesado. Tinha deixado o pensamento voar longe demais. Como ave amestrada, a sua consciência regressou, com asas douradas, enfim, à sua gaiola. Estava na hora de ir produzir.