Os primeiros pensamentos que nos ocorrem numa reflexão por vezes são uma precipitação. O fácil e rápido às vezes pode chegar perfeitamente para uma situação simples, mas o mundo e a humanidade estão cheios de complexidade.
Na América, país longínquo, mas sempre presente nos telejornais, George Floyd foi detido por um agente de polícia que usou, manifestamente, excesso de zelo e força despropositada que levou à sua morte. Acontece vezes demais na América, onde os polícias são pouco tolerantes e mais temidos que respeitados, e são-o mais com afro-americanos. Isto não é uma opinião, há dados estatísticos que o comprovam. Por exemplo, um afro-americano tem duas vezes e meia mais probabilidades de ser morto por um polícia que um branco. As mortes por milhão de habitantes às mãos da polícia são o dobro quando se trata de afro-americanos relativamente a caucasianos. E há muitos outros dados que encontrei num site que penso ser insuspeito: www.statista.com. Compreender a indignação de uma boa parte da população com a morte de George Floyd, implica ter uma noção do que é e do que foi a América. Aqui, à distância, nem sempre é fácil. Hollywood mostra-nos uma face glamorosa, mas postiça, os noticiários mostram-nos outra. Ainda assim, é insuficiente. É difícil termos uma perspectiva da diversidade daquele país que é capaz de eleger Trump, mas que também colocou Obama na Casa Branca. É o país do Tiger King e do KKK, mas também de Lincoln e Martin Luther King Jr.
A chegada dos protestos a Portugal veio trazer algumas reacções que, não sendo muito coerentes, devem ser abordadas.
Em primeiro lugar, não há a noção do que é o privilégio. A alguém branco, mesmo nascido numa família com poucos recursos, falta a capacidade de se colocar no lugar de quem tem uma cor de pele diferente. Pode ser uma questão de empatia, mas em tempos de crise, quando somos afetados por problemas sociais, temos tendência para viver na nossa bolha e marginalizar os que são diferentes. Ainda mais quando alguém aparece a responsabilizar os outros pelos nossos problemas. Ou então é uma questão de semântica com a palavra privilégio. O seu significado não é sempre tão linear como parece.
Depois há a questão da bipolarização: os maus e os bons. A obrigatoriedade de escolhermos lados: ou estou com os polícias ou com os bandidos. Como se numa instituição tão grande não houvesse, necessariamente, um número elevado de maus elementos que pertencem a grupos racistas. Certamente que a maior parte são pessoas que seguem uma vocação de proteger e ajudar, mas exigir que os que são racistas sejam responsabilizados e, se possível, expulsos da organização não é atentar contra a dignidade e profissionalismo dos primeiros. É defende-los do mau nome que alguns dão à farda. A única bipolarização que devia existir era entre os racistas e os anti-racistas.
Depois há o folclore das designações. Há os que entendem que a designação de afro-americano é uma invenção do politicamente correcto, esquecendo que veio substituir uma designação extremamente ofensiva como "nigger". Juntam-se depois comparações estapafúrdias como a do cidadão assassinado por um cigano. Como se houvesse comparação entre um homicídio perpetrado por um indivíduo num contexto não conhecido e outro cometido por quem se deveria dedicar a proteger.
Finalmente, aquela que é para mim a questão central, a ideia de que Portugal não é um país racista. Ora, se num país há racistas no parlamento, nas forças da lei e, digo-o com pena, na classe docente, enfim, em toda a sociedade, o país é racista. Isso vê-se todos os dias, até no pacato Alentejo. Vê-se, por exemplo, nos sapos de louça nos serviços públicos, no feed do facebook, nas milhentas páginas de fake news patrocinadas, por ventura, por apoiantes de movimentos racistas e xenófobos, nas caixas de comentários dos jornais, nas anedotas sobre o "preto". É um pequeno racismo, mas está lá e vai crescendo, devagarinho até ficar fora do nosso controlo.