Da rocha, brota tranquila e solenemente um fio de
água. Um mistério. Uma pessoa fica a olhar e a perguntar-se a sua origem e
porque vem ao mundo naquele lugar. Os locais, durante séculos, têm adorado
aquele sítio. Mesmo hoje, quando lhes basta acionar uma banal torneira em sua
casa e têm água à sua disposição, frequentemente rumam ou romam à Ferrenha para
lhe prestar tributo. A aumentar o fascínio pela fonte, o sabor da sua água que,
certamente, terá contribuído para o seu batismo. Um sabor a metal. Não chega a
ser desagradável, mas quase. A mim, sempre me lembrou, sei lá porquê, o sabor a
sangue novo.
Em todos os locais, ouço lendas. Associadas a um
castelo, a um monte, a uma ribeira, a um fragão e, claro, a fontes. Da
Ferrenha, nunca tinha ouvido nenhuma, embora seja um local icónico para qualquer
escouralense. Ir à Ferrenha é viajar nas memórias íntimas e nas memórias
comuns. Seguir a ribeira que ela alimenta, da vila até à nascente, é como retornar
à primeira infância, numa viagem familiar por afetos e lembranças. Um retorno
impossível ao útero materno. Como Bernardim Ribeiro, “ao longo da ribeira que
vai polo pé da serra”, assim vamos, como se aquela ribeira fosse a nossa ligação
à Ferrenha.
Pareceu-me mal vê-la assim, órfã de aition, e, acometido de indignação por
esta injustiça, longo tempo pensei em descobrir um mito fundador para esta
fonte. Pensei que pudesse estar ligado à presença dos primeiros hominídeos que
aqui procuraram abrigo. Mas se não escreviam e não deixaram tradição oral, não
me pareceu possível. Ocorreu-me que pudesse estar associado a outro mito, o da
residência do Santo Condestável, D. Nun’ Álvares Pereira, mas estive quase a
desistir dessa ideia também.
D. Nuno ter-se-á retirado na mesma altura que a vila
foi fundada. Diz-se que foi viver numa casa senhorial no monte que, por isso
mesmo, ficou com o nome de “Cavaleiro”. Porém, após 1423, D. Nuno dividiu as
suas propriedades pelos seus homens de confiança e abraçou a vida monástica.
Não possuindo, apesar de santo, o dom da ubiquidade, não será provável que tenha vivido no Cavaleiro ao mesmo tempo que se internou no Convento do Carmo, de
onde distribuía esmola pelos pobres da capital e cunhava a célebre expressão
“uma lança em África”. Mas a minha pesquisa descobriu que terá vivido no
Cavaleiro ainda antes da fundação da vila.
Num controverso manuscrito apócrifo encontrado nas
ruínas do Mosteiro de Nossa Senhora do Castelo das Covas do Monfurado, dos
Monges Eremitas Descalços de São Paulo, é descrita a vida do santo neste
período. Estes monges fixaram-se, oficialmente, no Monfurado no início do
século XVIII, mas desconfia-se que já por lá viviam há muitos anos, eremitas, nas
lapas subterrâneas da serra. O manuscrito sobreviveu à destruição provocada
pelo grande terramoto de 1755 que arrasou este aziago mosteiro, mas
perdeu-se. Há quem diga que está
esquecido no Arquivo Nacional da Torre do Tombo ou que foi destruído. Há também
quem diga que é uma fantasia que algum mentiroso ou sonhador tenha inventado.
Ficou, ainda assim, a história conhecida por alguns. Foi-se multiplicando,
passada dentro das famílias, como preciosa herança.
Conta-se, então que, cansado das batalhas em que
passara boa parte da vida, quase tanto como das honrarias e homenagens a que
depois o obrigaram, D. Nuno tomara a mansão no Monfurado como um refúgio. A um
homem como ele, sempre lhe parecera que a guerra era uma obrigação, algo que os
homens fazem uns contra os outros com o fim último de a tornarem o mais breve
possível. O que mais esperava, agora que os Castelhanos tinham feito a paz e
aceite o seu D. João I, era que não lhe lembrassem o horror da guerra. Queria o
esquecimento das ordens que deram para matar e morrer, dos corpos
ensanguentados e sem vida que jaziam no campo de batalha e lhe assombravam as
noites. Odiava até que lhe chamassem Condestável, cargo com que fora agraciado.
No Monfurado, era apenas o senhor. A vida era mais simples. Caçava, lia e
tratava da correspondência que chegava sempre com muita dificuldade.
Apreciava as caminhadas pela serra, sozinho, contemplando
os vales e a planície que se estendia a partir do Monfurado como um mar imenso
pelo Alentejo fora. Nessas caminhadas, parava sempre numa pequena nascente de
onde a água brotava da rocha. Aí bebia e ficava longas horas até anoitecer. Os
servos encontravam-no, contemplativo e alheado da realidade. Essa água, com
um sabor férreo, era a nascente mais próxima da sua casa e, naturalmente, era
de onde se abasteciam para todos os gastos domésticos, dos banhos à alimentação.
Mas esta água levava-o sempre de regresso ao frémito da batalha, o sabor lembrava os ferros que levantava contra os castelhanos e os seus
partidários, entre eles, alguns irmãos lusos. A água, parecia-lhe ter um sabor
ao sangue que tinha ordenado derramar nos Atoleiros ou Aljubarrota. Foi a fonte
a que o povo deu o nome de “Ferrenha” que levou D. Nuno à decisão de se tornar
carmelita. Entregou o Cavaleiro a um dos seus mais fiéis homens e, embora
mantendo a cota de malha por baixo do hábito, tomou o nome de irmão Nuno de
Santa Maria e entrou, para aquela que seria a sua derradeira morada, o Convento
do Carmo. O irmão Nuno dedicou a vida à mendicidade, pedindo para os pobres,
até ao Dia de Todos os Santos de 1431 em que, na presença d’el Rei e dos
infantes, abandonou este mundo.
Era este, estripado dos detalhes e riqueza da
linguagem, o conteúdo do manuscrito. Muitos questionam, mais que a
autenticidade, a sua existência. Pouco importa para a Ferrenha, que antes de D.
Nuno já lá estava e continua séculos depois. A água da Ferrenha levou D. Nuno à
beatificação, não o deixando esquecer o seu passado. A nós, lembra-nos o nosso,
o sítio de onde viemos. Como a água do Lete, um dos rios de Hades cuja água
provoca o completo esquecimento, só que ao contrário.