Thursday, October 24, 2019

Açorda



A casa está em silêncio. Mas não para Joaquim. Quase na obscuridade, ficciona ruídos passados, no presente. Justapõe realidades. Senta-se no cadeirão da sala, velho e gasto como ele, de olhos fechados para melhorar a concentração. Assim consegue convencer-se melhor que ouve realmente. É um exigente exercício na casa deserta. Da cozinha, imagina um som com uma cadência constante. É o som dos sábados de manhã. Pum, espaço, pum, espaço, pum... O ritmo não é apressado, mas nunca atrasa. A mão responsável pelo som mostra determinação e mestria, hábito feito de muitos anos. É a mão de Umbelina, a sua mulher, que prepara o almoço. É dia de açorda. Bate os alhos e os coentros enquanto coze os ovos e um rabo de bacalhau. Para que o efeito seja perfeito, Joaquim sincroniza o bater do seu coração com esse som que resgata a memória de dias felizes. É com este compasso que a porta se abre, de forma quase mágica, para que outras memórias contagiem o presente.


São os últimos dias da sua vida, ele pressente-o, tanto quanto é possível a alguém saber que o fim se aproxima. São dias amargos. Mas este mecanismo que descobriu permite que sejam agridoces as horas, longas, que se vão arrastando sem sentido. Com o metrónomo que é o seu coração em funcionamento, aos poucos, vão-se juntando outros sons a esta sinfonia.


Atrás de si, no corredor, o som de crianças a correr, sons quentes de riso e alegria. Poderia ser, diria um cínico, o som de uma motorizada que aumenta e diminui ao ritmo do punho do seu condutor. O vizinho até tem uma Famel bem barulhenta. Mas não é nenhuma motorizada, são os filhos que andam a jogar à apanhada, de novo perto dele. Esquece, por momentos, que andam longe. Estão com as suas novas famílias, sistemas solares nos quais teve o mesmo destino de Plutão, despromovido a planeta anão. Será que às vezes pensam nele? Será que também fecham os olhos e recordam o seu agora velho pai, outrora forte, maior que eles? Emociona-se e quase quebra o encantamento. Retoma o foco no bater do coração e da açorda.


Ouve agora um novo som. Quem, como nós, vê a cena de fora, poderia pensar que são os pássaros nas figueiras do quintal a fazer a corte às suas companheiras. Mas é a filha, que, no seu quarto, canta. Joaquim nunca gostou particularmente de música. Sempre foi mais apreciador do silêncio e do sossego, mas qualquer coisa sempre se comoveu nele ao ouvir a sua filha cantar. Era a mais nova, tinha uma ligação diferente com o pai. Chamava-lhe “a minha melra” por a surpreender muitas vezes a cantar. Tanto dava a Joaquim qual era a canção. Podia ser uma moda alentejana, um hino da igreja ou uma música popular, daquelas que tocam na rádio, queria era ouvir a voz da filha. A sua melra fechava-se no quarto, a fazer os trabalhos de casa ou a coser, talvez a escrever uma carta a alguma amiga e ele vinha, caminhando ligeiro pôr-se à escuta. Aí ficava até que ela se calasse ou alguém viesse chamá-lo. Quando dava pelo pai, ficava envergonhada, mas sorria quando ele lhe dizia: “que bem que canta a minha melra”.


Joaquim emociona-se. Umbelina morreu há cinco anos depois de ter estado outros tantos acamada num lar. Os filhos estão longe. Um na cidade grande, o outro Joaquim nem sabe, e a sua melra na Suíça. Uma chamada telefónica por semana. A Joaquim, quase surdo, pouco proveito lhe faz. Na presença das pessoas, ainda consegue ler algum rasto de palavras nos lábios, mas por telefone nada compreende. Às vezes uma entoação que dá ideia de final de conversa.


No meio da agitação, perde o foco e os sons desvanecem. Tem que começar tudo de novo. Concentra-se no bater do coração e na açorda que nasce na cozinha, mas não consegue. Não ouve o bater dos alhos. Não sente o bater do coração. Não ouve nada. De repente, do silêncio, uma voz chama. Abre os olhos, inundam-se de luz, está sentado à mesa da cozinha. Umbelina serve-lhe, a sorrir, a maior fatia de pão da açorda. A mesa está posta para cinco, mas só os pratos dos dois têm comida. Joaquim devolve-lhe o sorriso e come com satisfação.

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