Ainda a hora do calor castigava a terra, já iam saindo de casa a
caminho do campo da bola. Uns ainda mastigavam o fim dos lanches, vinham de
todas as pontas da vila, a pé e de bicicleta. Outros vinham dos montes e
lugares da freguesia. Dos oito aos dezoito, davam vida às ruas desertas
"fardados" para jogar à bola. Iam-se chamando uns aos outros de
maneira que, à medida que se aproximavam do campo da bola, engrossavam o caudal
daquele fio de juventude.
As mães, às vezes, quando vinham em grupo chamar algum mais
atrasado, sentindo o calor, mentiam e diziam que não estava. Mas passado algum
tempo lá aparecia ele de calção, meias até ao joelho e camisola de algum clube
comprada no mercado. Enquanto não eram em número suficiente para começar a
jogar, ensaiava-se penaltis, meínhos e rodas sem deixar cair a bola. Bola
levantada e alguém dizia "a bola não pode cair, é o mundo". Vaias
para os que a deixavam cair. E para estes gaiatos, a bola era um mundo. Uns com
mais talento para a coisa que outros, mas todos prontos para uma tardada até
que escurecesse ao ponto de não se conseguirem ver ou até que as vozes das mães
soassem, longínquas, a chamar para jantar.
"A professora odiou-me, o futebol é a minha vida",
assegurava um deles, destro, com dois pés esquerdos. O campo era de terra
batida, com tabelas. Quando chovia, era perfeito. Arriscavam-se entradas de
carrinho, pontapés de bicicleta e outras acrobacias sem medo de esfolar os
joelhos ou os cotovelos. Saíam todos enlameados. Se acaso, acabava a partida e
havia um com a roupa ainda impecável, tinha que ir ao chão para ficarem todos
irmanados, envoltos na mesma lama. No Verão, tornava-se duro como pedra e, pelo
menos no princípio, eram mais cuidadosos. Passavam a bola, quando tinham pela
frente um daqueles que davam "no osso". Era demasiado
arriscado tentar uma revirenga ou uma faena.
Quase sempre eram mais de quinze. Escolhiam-se três capitães que
selecionavam a equipa. Os restantes na bancada, à sombra, à espera de serem
chamados. Ansiosos por saberem qual era a sua equipa, com medo de serem dos
últimos a serem escolhidos. Às vezes, o orgulho inteiro colocado em causa
quando ninguém queria um "cepo" no seu grupo. Bota fora a dois golos.
Ninguém queria ir à baliza, "vai um golo cada um", era a solução. À
vez, ocupavam resignados o posto desejosos de sofrerem um golo.
Um remate desenquadrado, a bola subia, ressaltava na rede e ia
por cima do muro para o meio das vacas. Pausa para descanso enquanto o
rematador subia o poste ou negociava com outro mais ágil o resgate da bola no
meio da manada.
Ao final da tarde, distinguiam-se já a custo os vultos. As
pernas cansadas, já sem força arrastavam-se, um ou outro acometido por cãibras,
os pés doridos de tanto chutar e correr. Alguém gritava: "quem marcar este,
ganha" e iam-se buscar forças onde havia exaustão. De repente, uma final
da Liga dos Campeões. Golo e, à vez, glória e desilusão. E voltávamos para casa
com a certeza de que se repetiria. Repetiu-se muitas vezes, menos na última que
não me lembro. Mas sei que nenhum de nós tinha a consciência de que seria aquela
a última vez que fazíamos daquele lugar o nosso santuário, em que comungávamos
daquela alegria simples de jogar à bola. A última vez em que alguém gritava
"grande faena".
Acabou, como tudo irremediavelmente acaba, também para o próprio
campo da bola. As redes e as paredes foram tiradas, os muros caíram, a bancada
já não existe, há um poste de eletricidade no meio do campo. Para quem não
conheceu o sítio, não há quem possa suspeitar o que ali se passou. Mas para
nós, que o vivemos, nunca será outra coisa que não o nosso campo da bola.