Tuesday, February 12, 2019

Senhor Papagaio


Quando uma ideia original lhe passava pela cabeça, descartava-a de imediato. Para ele as ideias tinham pedigree, linhagem que as certificava. Podiam ter sido até lançadas apocrifamente, desde que depositadas na Internet, esse espaço onde as citações sem contexto se acumulam como pau para toda a obra. Nesse armazém podia entrar a toda a hora e retirava uma frase para qualquer ocasião. Era ele quem tinha a chave.

Das obras dos grandes pensadores e dos consagrados autores conhecia apenas a lombada. Um excerto apelativo e selecionado enquanto estratégia de marketing. Das grandes obras, lera o resumo dos apontamentos Europa América. Não as conhecia senão superficialmente, mas citava-as com familiaridade e dando-se ares de erudição. Mesmo que as citações estivessem erradamente atribuídas a um autor. Mesmo quando eram uma descarada banalidade.

Agarrava-se a uma citação como um náufrago a uma bóia. Conseguia maior efeito ainda, quando essa citação era em inglês. Nessas ocasiões, não as dizia, escrevia-as online. Os fãs reagiam inundando-o de likes. O senhor papagaio, batizei-o assim, era feliz com isso. Identificava sempre a fonte e usava aspas. De Andrade, Eugénio à Bíblia, de Xavier, São Francisco a Zink, Rui. Fazia da citação uma arte.
Quando morreu, fui ao funeral. A primeira originalidade estava guardada quanto à cova. Um buraco com meio metro de profundidade. A terra mal tapava o caixão depois de tudo terminado. Mas a perplexidade foi total quando colocaram a lápide. Nem cruzes, nem anjos, nem santos. É hoje atração turística naquela vila alentejana. Um papagaio em alvenaria que devora vários livros enquanto defeca sobre o túmulo. Mais nada. Não há nomes ou aspas, apenas uma derradeira originalidade, um canto, não de cisne, mas de papagaio.


Tuesday, February 05, 2019

Ágata



Como uma menina de 50 anos. Era assim Ágata, na véspera da “excursão” como teimava chamar à visita de estudo apesar das constantes correções, primeiros dos formadores e depois dos colegas. Quase não dormiu. Andou às voltas na cama de ferro, a sonhar mas acordada com as maravilhas que iria contemplar na excurs… visita de estudo. Mas pensava também, com pesar, que este período estava a chegar ao fim.

A rotina da vida no monte tinha sido interrompida havia poucos anos. Ágata pouco estudara na infância e a adolescência já a encontrara adulta, casada e com filhos. Mesmo assim, considerava, sabia muita coisa. Quando um dia chegou o carteiro com um envelope que dizia “IEFP” no remetente, ela teve muita dificuldade em perceber para que era aquela carta. Colocava a cabeça para trás para aumentar a distância entre o pedaço de papel e os seus olhos ampliados pelos óculos, como se isso o tornasse mais inteligível. Compreendeu três coisas e nada mais: era necessária a sua presença em tal dia e em tal sítio. Por isso foi. Mas não em três palavras.

Qualquer visita à vila era precedida de uma longa e penosa rotina que começava ainda na véspera. Ágata tinha que deixar o almoço para o marido, tinha que se lavar com mais cuidado e tinha que vestir outra coisa que não a bata com que passava a vida costumeira no monte. Depois ainda tinha que se levantar de noite, mesmo quando os dias eram maiores, para dar de comer à criação ou regar a horta pela fresca. Só depois, fazia mais de um quilómetro a pé até à paragem do autocarro que a levaria até à vila.

Quando, finalmente, o dia mencionado na carta chegou, foi com curiosidade e desconfiança que saiu em direção à vila. Não conhecia ninguém no autocarro por isso olhava à sua volta e escutava com interesse as conversas. Havia sobretudo crianças e jovens a caminho da escola e alguns idosos que iam ao Centro de Saúde ou à Segurança Social. Ouvia os garotos e percebia pouco do que diziam, pareciam falar uma língua estrangeira: playstation, facebook, minecraft, fortnite, instagram, lol. Escutava as palavras mas não as percebia, não lhes espremia o sumo.

Apresentou-se na morada indicada à hora certa com uma multidão de caras confusas e expectantes. A Doutora chegou pouco depois num carro com motorista. Fumou, vagarosamente, um cigarro, observada por dezenas de pares de olhos indecisos e avançou lentamente para a sala com um sorriso ensaiado. Ágata olhou em volta e viu, nos seus pares, o mesmo desconforto, homens de chapéu iam descobrindo a cabeça à medida que entravam, mulheres com um luto carregado iam-se sentando nos lugares disponíveis, rapazes mais jovens fixavam a Doutora com um ar de desafio e revolta e outros ainda mais jovens pareciam estar ali deslocados. A Doutora começou a falar. Disse que estavam ali para um curso. Que iam aprender a cozinhar, a pintar ou a tratar de jardins enquanto ficavam com mais escolaridade. Várias mãos se levantaram mas a Doutora cortou-lhes a palavra. “No fim falaremos de questões particulares” e continuou a falar de como era uma boa oportunidade para eles, de como lhes pagavam as deslocações, subsídio de refeição, bolsa de formação e o infantário aos filhos. “E aos netos?”, perguntou um dos anciãos mais irrequietos. “Sim”, respondeu a Doutora, “no caso de os netos estarem a seu cargo”. Ágata via a Doutora a ficar cada vez mais enervada com as interrupções, com os apartes a que era puxada, com os comentários lançados para o ar e com os apelos a que não fossem chamados porque tinham os pais ou sogros em casa doentes e não podiam vir. Reparou que a Doutora sofria mais com os últimos. Ágata não falava, escutava, mas parecia que estava outra vez no autocarro a ouvir os garotos. As palavras passavam-lhe por dentro mas parecia não compreendê-las de novo: “EFA”, “B2”, “B3”, “NS”, “qualificação”, “certificação”…. Por isso, foi perguntar, a medo, porque estava ali. “Vem para um curso de cozinha, começa para a semana.”

Nessa noite não dormiu. Não sabia sequer como contar ao marido que ia começar a ir para a vila todos os dias. Era uma sensação estranha, receio pelo trabalho concentrado que iria ter na lida do monte com a antecipação de sair de uma rotina de anos que lhe parecia grilhetas. Ao almoço, no dia seguinte, Ágata contou-lhe. Foi um contar a modos de pedir autorização. Foi tudo muito bem estudado. Fez o prato preferido do marido, cozinho de chícharos com carne de porco. Comprou uma garrafa de vinho tinto das mais caras da venda. E, ao contrário do que sempre fazia, passou a manhã calada. Começou por perguntar:
– Lembras-te da carta? Pois parecem que querem que eu cá vá para um curso.
– Curso? Que é isso? – teria que explicar com outras palavras. O marido não sabia destas coisas, só dos porcos, das ovelhas e da horta.
– Escola. Querem que eu vá para a escola para estudar para cozinheira. – E atalhou antes que houvesse objeções. – E se eu não for cortam o rendimento. Já viste a falta que fica a fazer esse dinheiro?
A cara do marido congestionou-se um pouco. O bigode oscilava enquanto mastigava, pensativamente. Os olhos fixaram-se num ponto do teto. Parecia pesar a situação até que perguntou:
– É coisa para durar quanto?
– Eu sei cá. – respondeu Ágata. – Ano e meio foi o que disse a doutora.
– Cá nos havemos de desenrascar.
Ágata soube logo que estava autorizada. Não era preciso um “sim” expresso. Mas também sabia que devia evitar exteriorizar o seu regozijo. Pôs um ar contrafeito como se ir para a vila fosse um infortúnio que não se consegue evitar.

Desde o primeiro dia do curso até agora, Ágata tinha vivido os dias de maior felicidade. Enquanto as colegas se queixavam de que o curso era uma prisão, para ela era uma libertação. O cativeiro a que tinha estado votada no monte tinha agora uma ansiada interrupção. Andava cansada, mas não deixava nada por fazer, nem o marido lho permitiria. “Ele, em não bebendo, é bom para mim. Mas não perdoa falhas. Ai, aquela vez que me esqueci de ligar a lâmpada aos pintos para estarem quentes e morreram dois de frio…” Esse episódio, como outros, ficou bem marcado na sua pele durante semanas.

Tinha aprendido e esquecido os nomes das coisas que fazia na cozinha. Ouvira falar francês e inglês e, inclusivamente sabia dizer je m’appelle Ágata e my name is Ágata. Até já percebia algumas das palavras que os garotos diziam no autocarro. Uma colega mostrou-lhe o facebook. Não ficou a perceber muito bem o que era mas já servia para não fazer papel de parva. “Putas e Cabrões! É o que faz o facebook.” Dizia sentenciosamente. Experimentou novas iguarias nas aulas práticas de cozinha. Coisas com nomes finos que, invariavelmente, deixavam a sua língua enrolada como: profitelores, tarte tatin, bechamel. Conheceu as colegas e conversava muito com elas. Às vezes riam-se muito.
A visita de estudo era no último dia do curso. As colegas iam fazer um estágio em restaurantes da zona, aplicar o que tinham aprendido. Ágata não ia. Os formadores disseram que não podia ir porque não tinha aprendido tudo mas ela convenceu-se a si própria que não queria ir. “Trabalhar de graça, sabe-se! De graça nem os cães vão à caça!” Por isso a visita de estudo a Lisboa era, para ela, como aquele prato chinês que o professor de cozinha tinha ensinado “Ai como é que aquilo se chama? Frango agridoce.”

A Doutora também foi na visita de estudo. No final de um dia de absoluto delírio e alegria infinita, Ágata chamou-a à parte e pediu-lhe o contrário do que a Doutora estava habituada a ouvir:
– Sô doutora, pela sua saúde, meta-me outra vez no próximo curso.