Há gatilhos que, uma vez premidos,
são devastadores. Podem disparar projéteis que põem fim à vida e fazem nascer
dor e sofrimento. Com esses, não quero ter nada a ver.
Há outros que me interessam mais.
São gatilhos que disparam memórias. São silenciosos e até involuntários. Dedos
invisíveis estão sobre eles e podem manter-se lá anos a fio, imóveis e
furtivos, até ao momento mais banal em que nos fazem rememorar um episódio que
julgávamos esquecido e que, quando corre pelo melhor, nos enche de ternura e
afeto.
Muitas vezes, quase sempre,
calamo-nos. A ideia de o partilharmos, ridiculariza essa memória. Vista de
outro ângulo pode até parecer grotesca. É incomunicável, íntima demais. Por
isso fica connosco, como que cristalizada num pequeno bibelot piroso que ornamenta a casa da nossa recordação. Como um
quadro de Cristo com luzinhas a piscar. Como a estátua de um gato a acenar
infinitamente com a mão, daqueles que se veem nas lojas de chineses. Ou ainda
como uma reprodução do quadro que, há décadas, era omnipresente em todas as
casas portuguesas – O menino das lágrimas.
Partilhar essas memórias é o
derradeiro exercício de exposição. É colocarmo-nos, voluntariamente, numa
situação desconfortável, ainda mais do que aquilo que é normal quando escrevemos.
E é de uma generosidade absoluta e inútil. É tão nosso que esperar compreensão
é como falar outra língua com quem não a entende e esperar diálogo.
Mas, enfim, coloquemos à prova o
gatilho: Comer melancia no Algarve. Vês? É como te dizia. Para ti não quer
dizer nada, mas a mim, a primeira dentada na melancia fez-me assomar lágrimas
aos olhos e transportou-me para Loulé há trinta anos para junto da minha avó.
Vi-me de novo com ela no supermercado a escolher a fruta, a irmos para casa
contentes e cansados do esforço de carregar aquela esfera descomunal. Senti de
novo a alegria com que, à mesa da cozinha, a íamos fazendo desaparecer talhada
após talhada e, sobretudo o calor daquele momento de comunhão.
Por isso, guardo estes gatilhos, as minhas madalenas de Proust, como
ninharias que são tesouros.