Thursday, August 30, 2018

Gatilhos


Há gatilhos que, uma vez premidos, são devastadores. Podem disparar projéteis que põem fim à vida e fazem nascer dor e sofrimento. Com esses, não quero ter nada a ver.

Há outros que me interessam mais. São gatilhos que disparam memórias. São silenciosos e até involuntários. Dedos invisíveis estão sobre eles e podem manter-se lá anos a fio, imóveis e furtivos, até ao momento mais banal em que nos fazem rememorar um episódio que julgávamos esquecido e que, quando corre pelo melhor, nos enche de ternura e afeto. 

Muitas vezes, quase sempre, calamo-nos. A ideia de o partilharmos, ridiculariza essa memória. Vista de outro ângulo pode até parecer grotesca. É incomunicável, íntima demais. Por isso fica connosco, como que cristalizada num pequeno bibelot piroso que ornamenta a casa da nossa recordação. Como um quadro de Cristo com luzinhas a piscar. Como a estátua de um gato a acenar infinitamente com a mão, daqueles que se veem nas lojas de chineses. Ou ainda como uma reprodução do quadro que, há décadas, era omnipresente em todas as casas portuguesas – O menino das lágrimas.

Partilhar essas memórias é o derradeiro exercício de exposição. É colocarmo-nos, voluntariamente, numa situação desconfortável, ainda mais do que aquilo que é normal quando escrevemos. E é de uma generosidade absoluta e inútil. É tão nosso que esperar compreensão é como falar outra língua com quem não a entende e esperar diálogo.

Mas, enfim, coloquemos à prova o gatilho: Comer melancia no Algarve. Vês? É como te dizia. Para ti não quer dizer nada, mas a mim, a primeira dentada na melancia fez-me assomar lágrimas aos olhos e transportou-me para Loulé há trinta anos para junto da minha avó. Vi-me de novo com ela no supermercado a escolher a fruta, a irmos para casa contentes e cansados do esforço de carregar aquela esfera descomunal. Senti de novo a alegria com que, à mesa da cozinha, a íamos fazendo desaparecer talhada após talhada e, sobretudo o calor daquele momento de comunhão.

Por isso, guardo estes gatilhos, as minhas madalenas de Proust, como ninharias que são tesouros.