Monday, June 18, 2018

Henriqueta Emerenciano

Era na casa a seguir à cozinha. À esquerda, encostada à parede, a cama alta de ferro onde gostava de estar sentada. À direta, dois sofás, uma janela, um roupeiro e uma mesa com a televisão a cores. Era por ali que andava e passava a maior parte do dia. Poucos metros quadrados de mundo com um bacio por debaixo da cama.
Já não se aventurava fora de casa. A saúde não o permitia. Recuando muito na memória ainda me lembro dela em minha casa. A demorar meia hora para fazer, com passinhos curtos e inseguros, os 150 metros que iam de uma porta à outra. A subir as traiçoeiras escadas de gatas pacientemente e a chegar ao primeiro andar cansada e eufórica como um alpinista. Esses dias depressa passaram.
As nossas conversas eram pontuadas com longos silêncios. Demorados minutos em que nenhum de nós dizia palavra. Falávamos com os olhos e o resto da cara. Às vezes ria calada, outras comovia-se ao ponto de quase chorar. Terminava o silêncio com a frase que lhe ouvi tantas vezes: "O meu Miguel está tão magrinho". E não estava, estava até gordo.
Durante essas pausas, demorava-se olhando para mim como se me estudasse as feições, parecia que tinha medo de as esquecer. Incomodava-me, às vezes, aquele olhar. Desviava então os olhos para o roupeiro. A porta do meio tinha um espelho e tentava lá perceber o que ela procurava tão atentamente. Nunca encontrei nada de especial. Só uma cara banal ora com barba, ora barbeada.
Dessas conversas, um detalhe é o mais importante, as suas mãos. Gastas e secas mas quentes e acolhedoras. Passava-me as mãos pelo rosto, sentindo os ossos do maxilar e tomava as minhas mãos nas suas. Toda a ternura que sentia para com o seu neto estava condensada nesse gesto. As mãos estavam sempre quentes quando eu tinha frio e frescas no verão abrasador do Alentejo.
Quando, como agora, algo me leva para a sua lembrança, são as mãos que sinto na minha face e ouço, num sussurro: "O meu Miguel está tão magrinho." 

Thursday, June 07, 2018

Vida Triste

Maria Teresa, a Vida Triste, tia da minha mãe, irmã da minha avó Henriqueta. Conheci esta tia-avó já ia a infância a meio caminho. Tanto o meu pai como minha mãe são filhos únicos, por isso sofri de uma espécie de orfandade de tios. Os meus colegas tinham muitos primos, os meus eram em segundo grau, mais próximos da idade dos meus pais que da minha.

Um dia, apareceu a Maria Teresa. Vinha de uma vida “a servir” em casa de uma “senhora” em Évora num tempo em que ainda havia criadas domésticas. Hoje ponho-me a imaginá-la ainda criança a despedir-se da casa humilde dos pais e irmãos para ir trabalhar em Évora. Com certeza que não para uma mansão como a que vejo nos filmes e séries passados na época vitoriana, mas penso que, para ela, habituada à pobreza em que viviam os meus bisavós, lhe tenha parecido algo ainda mais luxuoso. Dessa vida, só me resta imaginar, nunca me falou de tal coisa.

A imagem que mantenho dela, como de muitas coisas da minha infância, começa a tornar-se difusa como se o tempo fosse um filtro opaco que não deixa focar pormenores. Era uma senhora dos seus cinquenta e alguns anos. Referiam-se a ela como “menina Teresa” porque nunca casou embora mesmo no Outono da vida não lhe faltassem pretendentes: o Cadicha que, nós miúdos, conhecíamos por Nesga e a quem faltavam dois dedos na mão direita e Isidro Parreira que tinha os dedos cobertos de anéis de ouro. De um e de outro conseguiu rebater as investidas mantendo o celibato até à morte.

A Vida Triste, assim a batizou o cunhado, o meu avô Miguel, era baixa, usava o cabelo curto mas sempre bem arranjado pelas mãos da Bia Bicadas, raramente usava calças. A sua toilette era sempre completada por uma carteira minúscula que levava para todo o lado mesmo que, descobrimos muitas vezes, estivesse completamente vazia.

Era a pessoa mais supersticiosa que já conheci. As forças do oculto eram, para ela, evidentes e via assombrações e bruxas em cada esquina. Acreditava firmemente que havia neste mundo muito mais do que os nossos olhos podem ver. Conta-me a minha mãe que algumas vezes foram de camioneta da carreira a visitar “virtuosas”, bruxas ou charlatãs que a advertiam contra maus-olhados, maldições e olho gordo.

Era sozinha, a Maria Teresa. Não me refiro ao facto, objetivo, de que morava só. Mesmo para uma criança, como eu era, isso parecia óbvio. Duas a três vezes por dia, no mínimo, vinha visitar-nos a casa. Abria a porta e chamava: “Maria, estás cá?” Sem esperar resposta, ia entrando e falando. Muitas vezes, não estava a minha mãe, apenas eu e o meu irmão. Egoístas como as crianças aprendem depressa a ser, calávamo-nos para que ela fosse embora em vez de vir ter connosco e nos desconcentrasse dos desenhos animados ou dos jogos de computador. Por vezes, funcionava, andava pelo rés-do-chão algum tempo, falando sozinha, avaliando o conteúdo da fruteira ou abrindo o frigorífico. Se a minha mãe tivesse o almoço ao lume, provava e retificava os temperos ou queixava-se do excesso de sal. Refilava da abundância se a minha mãe tinha bacalhau de molho a dessalar ou da míngua se houvesse apenas uma banana onde tinha estado um cacho repleto. Sempre a conversar consigo própria e reforçando essa ideia que eu tinha de que era só.

Um dia, numa dessas visitas, ao ouvi-la falar, rimo-nos. Indecisa entre subir as escadas ou ficar, ficou a olhar para cima no patamar, à escuta. Ao senti-la aproximar, ficámos em silêncio como se estivéssemos a brincar às escondidas. Então, olhámos em volta e vimos no chão umas calças que estavam num monte de roupa suja. Irrefletidamente, pegamos nelas e atiramo-las escada abaixo atingindo a Maria Teresa na cabeça. Assustada, sem discernir o que a estaria a atacar, saltou em altos brados para a rua, ainda com as calças na cabeça gaguejando: “É bruxedo! É bruxedo!”. Nós rimo-nos a espreitar à janela do primeiro andar. A Maria Teresa não achou piada nenhuma.

A minha mãe recorda ainda, muitas vezes, a ocasião em que ouvia vozes vindas da televisão mesmo que o aparelho estivesse já desligado da tomada. Chamou a minha mãe que ficou igualmente perplexa e, mesmo antes de chamar um padre exorcista, chamou o Chibanga, entendido em eletricidade que descobriu um pequeno rádio transístor ligado na gaveta por baixo da televisão. As vozes do outro mundo eram apenas os locutores da rádio.

Noutra ocasião num estrondo, caiu-lhe um homem na cozinha, quebrando o telhado. Imagino que dessa vez ela tivesse crido que era o próprio Belzebu que a atormentava, foi um susto tal que nessa noite não quis dormir em sua casa e veio dormir com a minha mãe.


Quando estas coisas se explicavam e a Maria Teresa entendia enfim que nada de sobrenatural lhe tinha acontecido e que eram apenas coisas que aconteciam a mentes excessivamente ociosas, punha um ar desconsolado e soltava um lamento que introduzia com um “ai” prolongado e profundo: “Vida Triste!”. Era esta a bengala que a amparava, repetidamente, como um mantra. Repenso agora nos motivos que a levariam a adjetivar daquela forma a vida. Seria a solidão, o medo do sobrenatural? E concluo que a obsessão com o sobrenatural nascia da solidão. Talvez tivesse começado como um escape para o tédio, um rabisco que ela desenhava numa folha de papel que não suportava continuar a ver em branco ou uma conversa que tem consigo própria para rasgar o silêncio. Com a rotina, com o tempo, talvez o que imaginava se tenha tornado tão real como uma Vida Triste.