Quem se achasse perdido no tempo, sem saber que dia do
mês era e não encontrasse um calendário, podia entabular conversa com o Chico
Luso. O seu nível de alcoolemia, para quem conhecesse bem os seus hábitos,
chegava para determinar se estávamos no princípio, no meio ou no fim do mês.
Chico não trabalhava, mas tinha alguns rendimentos. O
rendimento social de inserção, os subsídios de refeição e de transporte que
ganhava por andar num curso de operador agrícola e alguma esmola, normalmente
em género, dada pelas suas idosas e piedosas vizinhas.
Fora o pouco que comia, fugaz como um passarinho, tudo
era dissipado em bebida. Nos poucos dias após receber, em vinho de garrafa de
origem denominada e em copos de macieira aos balcões dos cafés da vila em que
ainda tinha autorização para entrar. Mais tarde, em garrafões de cinco litros
do vinho mais barato que o supermercado vendesse. Já no fim do mês, e ainda
antes de receber novo pagamento do estado, em pacotes de litro de vinho que
dizia em letras pequenas: “mistura de vinhos de vários países da União
Europeia”, [o vinho do Chico Luso a concretizar as promessas de unidade
europeia com mais eficácia que os governos do Velho Continente]. Quando todo o
dinheiro terminava, sacava constantemente de dentro da mochila de garrafas de
litro e meio cheias de água com sumo de limão que bebia apenas com uma sombra
da luxúria com que tragava o vinho de há meia dúzia de dias.
Fazia-se transportar de bicicleta. Recebia, é claro,
dinheiro para transportes públicos, mas descobriu que os dezassete quilómetros
duas vezes por dia podiam ser feitos a pedalar com relativa facilidade e, ainda
que em algumas ocasiões ostentasse na face marcas de contacto repentino com o
asfalto, a bebida que esse dinheiro podia comprar era bálsamo mais que
suficiente para essas e outras dores.
Entre os dias em que bebia vinho e os dias em que
bebia água aromatizada com limão, havia uma constante: o repetir de histórias
sobre a sua vida. Havia sempre, contudo, algumas diferenças no tom, ora
eufórico, ora deprimido consoante o líquido que lhe servisse de combustível.
Contava-nos histórias, mas não esperava a nossa atenção. Chegámos a vê-lo
sozinho a dar à manivela desse fantástico mecanismo de rememoração. Parecia que
era ele próprio o destinatário daquelas narrativas. Articulava as palavras de
maneira incoerente, demasiado mastigada, aos solavancos como se estivesse numa
montanha russa. Cuspia por vezes as palavras, desdenhoso de si próprio. Umas
vezes amaldiçoava-se e outras chorava, emocionando-se com algum pormenor.
Tinha muita dificuldade em seguir o fio dessas
narrativas, mas, pela repetição, apercebi-me que o tema era sempre o mesmo.
Histórias sobre oportunidades perdidas, inúmeras, um mar delas. As
circunstâncias sempre contra ele, vítima de invejas e infortúnios. Era como
aqueles filmes de Hollywood com muitas sequelas a imitarem o enredo do
original, mas cada vez com menos fôlego e capacidade de surpreender, como
réplicas de um terramoto. Cada vez que começava, já sabíamos de que forma
terminava: “…e hoje podia ter uma vida boa em vez de andar aqui a penar.” E a
seguir o silêncio, contemplativo, fitava um ponto no infinito e era assim que
sabíamos que a história terminara. Não havia um descer da cortina, mas era como
se houvesse.
Contudo, nem todas as atuações de Chico Luso pendiam
para o dramatismo. Certas vezes, numa operação a que tive que assistir para
acreditar, trazia na bicicleta, para além da já costumeira mochila carregada de
bebida, a caixa de uma guitarra acústica. Nos dias em que bebia mais que a
conta, ocasião bastante corriqueira, era um prodígio de equilibrismo a forma
como conseguia montar-se na bicicleta e fazer em segurança os dezassete
quilómetros até casa por entre curvas, subidas e descidas. Mais admirável era
vê-lo com o contrapeso de uma guitarra às costas. Diria que era antes uma ruína
de uma guitarra. Com três cordas colocadas ao acaso, afinadas segundo o
critério de Chico Luso, serviam para este cantar baladas, fados e música
tradicional. Acompanhava-se de uma gaita de beiços. Parecia, quando desviávamos
o olhar, que conseguia a proeza de cantar, tocar gaita e guitarra ao mesmo
tempo em total desarmonia.
Um dia, quis saber para onde ia Chico Luso quando se
retirava. Havia quem dissesse que dali ia para casa. Outros juravam que, em
certas ocasiões, já perdido de bêbado, dormia mesmo na vila em cima de um banco
ao pé do tribunal. Também bastante popular era a tese de que ainda ia correr
alguns dos cafés da vila na esperança de encontrar quem lhe pagasse algum copo
ou partilhasse com ele da sua solidão. Segui-o a alguma distância, instruído
pelos livros de espionagem que li na adolescência. Não que Chico Luso se
apercebesse de que era seguido, ele mal dava conta das pedras da calçada
debaixo dos seus pés ou dos carros que abrandavam a velocidade ao vê-lo ao
longe. Andava numa passada mais rápida do que aquela com que estava a contar e,
em algumas subidas, tive mesmo de me esforçar para o conseguir acompanhar.
Chegámos ao fim da vila, à zona onde corria o Mira. Chico desceu até à margem e
foi caminhando rio abaixo. Hesitei entre continuar a segui-lo ou desistir. Sem
pensar muito no assunto, quando dei por mim estava também já junto ao rio.
Caminhámos alguns minutos, o tempo suficiente para estarmos a uma boa distância
da última casa da vila. A minha curiosidade adensava-se a cada passo. Então
parou. Olhou em volta, mas não me viu. Por instinto, escondi-me atrás de um
salgueiro como que antecipando o movimento. Achando-se sozinho, ajoelhou-se.
Inspirou e soltou um grito que se não lhe vinha da alma, pelo menos saía-lhe
das entranhas. Um grito que parecia rasgar o espaço, um grito sobrenatural
cheio de dor e angústia em contraste com a calma da natureza em volta. Não sei
dizer quanto tempo demorou o grito. Quando se calou, vomitou e, aninhando-se
como um pequeno animal, adormeceu.