Conheces o nome que te deram, mas não conheces o nome que tens.
De um livro imaginário de evidências, retirou Saramago esta frase e a colocou em epígrafe do romance Todos os Nomes.
Em Santiago, tudo tem dois nomes.
As pessoas, as ruas, os lugares, os cafés, as mercearias e a junção destes dois
últimos, as vendas, tudo foi duas vezes batizado. Uma vez, pelos seus
proprietários ou pais e regedores, o que vai dar ao mesmo. Esse batismo é
fácil, deixa um rasto de papel, de registos e assentos de nascimento assinados,
quando quem o faz sabe ler e escrever, ou apenas com uma cruz ou impressão
digital no caso daqueles que passaram as primeiras infâncias atrás de uma vara
de porcos.
O segundo batismo é mais nebuloso
e nem sempre, por mais que inquiramos, conseguimos descobrir a sua origem. Por
vezes é um mistério que interessa a poucos mas que a mim sempre me atiçou a
curiosidade. São os pares quem encontra esse nome que, quase sempre substitui o
oficial e que, qual código tácito, contribui para a construção de um sentimento
de comunidade. Quem vem de fora não conheces estes nomes e, por mais anos que
viva em Santiago, será sempre um forasteiro enquanto não os dominar.
A rua da casa dos meus avós
paternos é a Rua Dr. Miguel Bombarda mas em Santiago é a Rua do Pomarinho. A
Rua Dr. Afonso Costa nunca teve esse nome para mim, a não ser agora que andei
pelo Google Street View a descobrir esses nomes ocultos, era a Rua dos Rapazes.
A rua onde era o mercado é ainda a Rua Tenente Abreu mas, para todos os que
conheci na infância, menos os carteiros, é a Rua das Pites. De dois terços destes
nomes, até consigo perceber a origem. Mesmo no centro da Rua do Pomarinho, há
um monte com esse nome. Na Rua dos Rapazes, existiu uma venda que, apesar de
ter outro nome, era conhecida como “os rapazes”. Estes “rapazes” já os conheci
perto dos sessenta anos. Mas a Rua das Pites já tem uma origem para mim
desconhecida. Aqui me confesso, nem sei o que será uma pite.
O mesmo acontecia com os
estabelecimentos. Embora os proprietários dessem voltas mais ou menos menores
para encontrar um nome para as mercearias e cafés, normalmente, o nome do
proprietário ou alcunha tinha mais força. Foi assim com o Cancela, com o
Tónica, o Zorro e continua a ser com o Marreca, o Daurindo e o Lavado. Quase tudo
estabelecimentos cujo nome original remete para a orografia da região.
Mas o fenómeno mais curioso,
aquele que realmente me interessa, é o das alcunhas. A mecânica que leva a que
um homem, e muitas vezes toda a sua prole, passe a ficar conhecido por um nome
oferecido por esta entidade coletiva que se chama Santiago. Há para todos os
gostos e explicações. Alcunhas que nascem do local de origem das pessoas, de algum
episódio caricato que com ele se passou ou com um antepassado demasiado longínquo
para ser nomeado, da profissão do avô, bisavô ou triacontavô e algumas de pai e
mãe incógnitos.
Muitas destas alcunhas, não sei
há que tempo, passaram a ser legitimadas e a constar nos documentos das
pessoas. Nomes tão ligados à família que substituíram o apelido. Eu que sou
Masmorra Rabino, uma aliteração tão poderosa, a isso o devo. Masmorra era o
nome do monte onde morava a família do meu avô materno e passou também a
apelido. Rabino é nome demasiado bizarro para se dever a antepassados judeus,
ainda para mais num país com um passado de perseguição tão grande ao povo de
Moisés. O mais certo é ter havido uma transformação de adjetivo em nome
próprio.
Rabino
Adjetivo
1. Velhaco; travesso.
2. Rabugento.
3. Teimoso e desinquieto.
1. Velhaco; travesso.
2. Rabugento.
3. Teimoso e desinquieto.
Mas que não pareça que me queixo
das alcunhas que se oficializaram em nomes. Gosto dos nomes, não os considero
impróprios. Mais personalizados que Santos ou Silvas. E reconheço algumas destas
características em alguns Rabinos e em mim mesmo.
E não me queixo até porque em
Santiago há nomes ainda mais bizarros. Nomes que designam famílias inteiras e
que não estão no Bilhete de Identidade. Nomes que, se calhar, não estão
escritos em lugar nenhum mas que ouvimos todos os dias. Pois que fiquem aqui
alguns:
Arcadinho, Barreirense, Besunta,
Bicho-do-amor, Bóia, Cadicha, Cagaita, Cancela, Cara Cagada, Cerôla, Droga,
Égua, Fezes (tenho um tio Fezes), Lapeira, Marreca, Pá da Ova, Palafofa, Pouca-Roupa,
Pé-Cagado, Piço, Poila, Remexido, Tamente…
Assim, o mais humildemente que
posso, sugiro a Saramago uma correção:
Conheces os nomes que te deram, mas não conheces o nome que tens.