Wednesday, January 10, 2018

Nomes de Santiago

Conheces o nome que te deram, mas não conheces o nome que tens.
De um livro imaginário de evidências, retirou Saramago esta frase e a colocou em epígrafe do romance Todos os Nomes.

Em Santiago, tudo tem dois nomes. As pessoas, as ruas, os lugares, os cafés, as mercearias e a junção destes dois últimos, as vendas, tudo foi duas vezes batizado. Uma vez, pelos seus proprietários ou pais e regedores, o que vai dar ao mesmo. Esse batismo é fácil, deixa um rasto de papel, de registos e assentos de nascimento assinados, quando quem o faz sabe ler e escrever, ou apenas com uma cruz ou impressão digital no caso daqueles que passaram as primeiras infâncias atrás de uma vara de porcos.

O segundo batismo é mais nebuloso e nem sempre, por mais que inquiramos, conseguimos descobrir a sua origem. Por vezes é um mistério que interessa a poucos mas que a mim sempre me atiçou a curiosidade. São os pares quem encontra esse nome que, quase sempre substitui o oficial e que, qual código tácito, contribui para a construção de um sentimento de comunidade. Quem vem de fora não conheces estes nomes e, por mais anos que viva em Santiago, será sempre um forasteiro enquanto não os dominar.

A rua da casa dos meus avós paternos é a Rua Dr. Miguel Bombarda mas em Santiago é a Rua do Pomarinho. A Rua Dr. Afonso Costa nunca teve esse nome para mim, a não ser agora que andei pelo Google Street View a descobrir esses nomes ocultos, era a Rua dos Rapazes. A rua onde era o mercado é ainda a Rua Tenente Abreu mas, para todos os que conheci na infância, menos os carteiros, é a Rua das Pites. De dois terços destes nomes, até consigo perceber a origem. Mesmo no centro da Rua do Pomarinho, há um monte com esse nome. Na Rua dos Rapazes, existiu uma venda que, apesar de ter outro nome, era conhecida como “os rapazes”. Estes “rapazes” já os conheci perto dos sessenta anos. Mas a Rua das Pites já tem uma origem para mim desconhecida. Aqui me confesso, nem sei o que será uma pite.

O mesmo acontecia com os estabelecimentos. Embora os proprietários dessem voltas mais ou menos menores para encontrar um nome para as mercearias e cafés, normalmente, o nome do proprietário ou alcunha tinha mais força. Foi assim com o Cancela, com o Tónica, o Zorro e continua a ser com o Marreca, o Daurindo e o Lavado. Quase tudo estabelecimentos cujo nome original remete para a orografia da região.
Mas o fenómeno mais curioso, aquele que realmente me interessa, é o das alcunhas. A mecânica que leva a que um homem, e muitas vezes toda a sua prole, passe a ficar conhecido por um nome oferecido por esta entidade coletiva que se chama Santiago. Há para todos os gostos e explicações. Alcunhas que nascem do local de origem das pessoas, de algum episódio caricato que com ele se passou ou com um antepassado demasiado longínquo para ser nomeado, da profissão do avô, bisavô ou triacontavô e algumas de pai e mãe incógnitos.

Muitas destas alcunhas, não sei há que tempo, passaram a ser legitimadas e a constar nos documentos das pessoas. Nomes tão ligados à família que substituíram o apelido. Eu que sou Masmorra Rabino, uma aliteração tão poderosa, a isso o devo. Masmorra era o nome do monte onde morava a família do meu avô materno e passou também a apelido. Rabino é nome demasiado bizarro para se dever a antepassados judeus, ainda para mais num país com um passado de perseguição tão grande ao povo de Moisés. O mais certo é ter havido uma transformação de adjetivo em nome próprio.

Rabino
Adjetivo
 1. Velhaco; travesso.
  2. Rabugento.
  3. Teimoso e desinquieto.

Mas que não pareça que me queixo das alcunhas que se oficializaram em nomes. Gosto dos nomes, não os considero impróprios. Mais personalizados que Santos ou Silvas. E reconheço algumas destas características em alguns Rabinos e em mim mesmo.

E não me queixo até porque em Santiago há nomes ainda mais bizarros. Nomes que designam famílias inteiras e que não estão no Bilhete de Identidade. Nomes que, se calhar, não estão escritos em lugar nenhum mas que ouvimos todos os dias. Pois que fiquem aqui alguns:

Arcadinho, Barreirense, Besunta, Bicho-do-amor, Bóia, Cadicha, Cagaita, Cancela, Cara Cagada, Cerôla, Droga, Égua, Fezes (tenho um tio Fezes), Lapeira, Marreca, Pá da Ova, Palafofa, Pouca-Roupa, Pé-Cagado, Piço, Poila, Remexido, Tamente…

Assim, o mais humildemente que posso, sugiro a Saramago uma correção:

Conheces os nomes que te deram, mas não conheces o nome que tens.

Friday, January 05, 2018

Barba e Cabelo

Quando, vestidos de igual, com fatos de treino e ténis comprados na mesma loja com um número de diferença, eu e o meu irmão parecíamos dois meninos selvagens por força do cabelo desgrenhado, a minha mãe decidia que era altura de ir ao Ciladas. Ciladas, Francisco, era o barbeiro da vila. Quando ainda éramos muito pequenos, acompanhava-nos o meu avô materno, a barbearia não era lugar para mulheres, quase tão proibido como os cafés ou talvez mais ainda. Mais tarde, íamos os dois e quando nos fartámos de ser aquela entidade semi-singular, os gaiatos do Daurindo, começámos a ir sozinhos.
A barbearia era um lugar simples. Não havia nada com que uma criança que esperava a sua vez enquanto um homem era barbeado pudesse entreter os olhos, nenhuma televisão, nada de jornais ou revistas. Nas paredes, apenas um calendário da Fidelidade que mostrava dois perdigueiros com perdizes na boca e um reclame à mesma companhia da qual Francisco era também mediador de seguros.

Restava-me a conversa. Não participar dela, mas escutá-la. Na sala, nunca cheguei a encontrar Ciladas sozinho. Presença constante era o seu cão. Minúsculo, inteligente, respondia pelo nome Jú e era costume ter longos diálogos com o dono a que respondia com expressões sabedoras. Francisco era um homem já nos sessenta anos, da idade dos meus avós. Na minha memória, tinha uma barriga enorme e usava umas calças subidas até meio desse ventre desmesurado. Usava um bigode fino e uns óculos grossos de massa. Companhia comum, era também o irmão de Francisco, o José. Quando isto acontecia, era certo que a conversa havia de ser sobre caça, a paixão que unia os irmãos. José começava, melancólico, a lembrar caçadas passadas, a recordar histórias que os deixavam a ambos a rir e acabava num lamento por "eles", os políticos, estarem a acabar com a caça. "Antes é que era caçar, hoje já não é nada". Eu, calado, tinha que acreditar naquilo. Muitas coisas de que falavam, fora a caça, acabavam neste queixume: "isso é que eram tempos, isto hoje é uma vergonha". E, para mim, era a verdade. Pensava que tinha azar por viver no meu tempo e não no tempo "deles". Depois começavam a falar da saúde, do médico que os proibia de beber vinho, de comer carnes gordas e acreditava que tinha azar também, como eles. Tudo o que era pretérito era perfeito naquelas conversas.

Tinha eu já sobre o lábio uma sombra que adivinhava um bigode e o passeio ao passado começou a incidir sobre outras aventuras e percebi que afinal não era só a caça que lhes acendia uma luz interior. Francisco recordava a caçada que lhe conseguiu a peça de caça de que mais se orgulhava, a sua esposa. Quando ao domingo, os víamos de braço dado a passear na vila ou numa visita ao mercado da Rua das Pites, sobressaía a diferença de alturas. Francisco era pouco mais de um palmo mais baixo que Rita. Rita era, na vila, conhecida por Rita do Ciladas como muitas mulheres ainda hoje são conhecidas pelo nome próprio seguido da preposição de posse e do nome do proprietário, o marido ou o pai. Mas tinha conhecido na barbearia o seu nome secreto, usado lá em casa: Galga, ou, como dizia Ciladas, "a minha Galga".

Calculo que cortava o cabelo três a quatro vezes por ano e devia também ser essa a frequência com que ouvia a história. Francisco cortejava Rita que o recusava, achava-o baixo para ela e por isso não lhe agradava. De recusa em recusa, a determinação de Francisco ia crescendo até que um dia, cheio de coragem e movido pela sensualidade, encostou Rita a uma figueira e lhe mostrou que, quase na horizontal, a altura não fazia diferença. Quando Francisco acabava a história, ríamos todos com gosto.

Acontecia que Francisco tinha uma neta da minha idade, até andava comigo à escola na turma do professor Albino. Coincidia que a neta dele era quase dois palmos mais alta que eu e, depois de rirmos da história, Francisco parava de cortar o cabelo ou fazer a barba a quem quer que fosse, mirava-me por cima dos óculos e dizia-me: "E tu também podes fazer o mesmo à minha neta, lá por ela ser mais alta não tens que ter medo." E riam outra vez todos com gosto, menos eu que só me ria, sem gosto nem desgosto.

Percebi então que na barbearia do Ciladas havia uma espécie de ritual que se cumpria com quase todos os clientes. Podia-se falar de atualidades, futebol, caça e política ou até sobre o tempo mas antes tinha que se recordar uma história ou conversa. A mim, calhou-me em sorte a história do Francisco e da sua Galga porque a neta era também mais alta que eu. A seguir perguntava-me sempre se era do Sporting ou do Benfica. E depois podíamos falar sobre futebol, ou sobre pesca, ou sobre a escola. Mas tive a sorte de ir muitas vezes cortar o cabelo no mesmo dia que o Oli. Oli foi o primeiro homem que conheci que era capaz de responder à tradicional pergunta sobre se era do Sporting ou do Benfica com "de nenhum", era do Porto. Mas a minha sorte nada tinha a ver com a cor de que mais gostava. É que a história com que Oli cumpria o ritual costumeiro nos deixava sempre à beira das lágrimas de tanto rir. Podia aqui tentar escrevê-la como era contada mas perder-se-ia a teatralidade que o Oli colocava ao serviço da história, as suas expressões e notas de rodapé, por isso deixo só um resumo tosco. O primo de Oli, o Domingos era já adolescente e não tinha ainda um pêlo púbico, facto que lhe causava grande angústia pelos comentários que os amigos com quem ia às barragens nadar lhe atiravam. Decidido a evitar que a vexação se prolongasse, um dia, à hora de fecho da barbearia, pediu autorização a Ciladas, que varria o resultado de um dia de cabelos cortados do chão, e encheu os bolsos de pêlos. No dia seguinte, Domingos e os amigos tinham já combinado ir nadar para um tanque de rega e foi com incredulidade que os seus companheiros viram que, onde antes Domingos era pelado, estava agora uma farta cabeleira. Oli aqui dizia: "Ó Domingos, isto não pode ser. Mas tu ontem não tinhas nem um..." Assim que Domingos entrava na água, a cola que mantinha tudo agrupado deixava de fazer efeito e a cabeleira ficava a flutuar para gargalhada de todos.

Durante anos, praticamente até a barbearia fechar, não entrei sequer noutro local para cortar o cabelo. Mesmo que o Ciladas, tinha eu talvez quatro anos, me tenha dado uma tesourada numa orelha, nem isso foi motivo para ir a outro lado.

O Ciladas já morreu há muitos anos e a sua barbearia já fechou. Mas, sempre que é dia de ir ao barbeiro, a barbearia e o Ciladas vive de novo, por instantes, na minha saudade.