Thursday, October 27, 2016

Mosca


Francisco acorda com o nascer do sol. A mãe já acordou há muito e movimenta-se com cuidado pela casa, em silêncio. Há pão, feito no forno de lenha no início da semana para matar a fome com um pouco de linguiça e um copo de vinho. Única companhia um do outro mas quase sem trocar palavra, comem em silêncio sem se olharem. Francisco levanta-se, encosta a cadeira e pontua o final da refeição com um arroto. Deixa a mesa desarrumada para que a mãe trate de tudo.

Encaminha-se para o quintal fazendo um cigarro e chupando das ausências dos dentes os restos de comida. Instintivamente, avalia a onça de tabaco a fim de averiguar a quantidade disponível e calcula o momento em que terá que ir à vila comprar uma nova. Fuma o cigarro no telheiro que construiu com restos de materiais que foi trazendo dos trabalhos de onde tem sido despedido. Senta-se junto à coelheira, cofiando o bigode grisalho, já à espera de ouvir o rumor dos coelhos a agitarem-se de um lado para o outro quando sentem a sua presença. Nessa altura pensa.

Levanta os olhos para os montes de onde se anuncia chuva. Por um lado, pensa, é bom para as ervilhas e para as favas. Vai ser um ano bom para a horta. Por outro lado é mais aborrecido ir à vila comprar tabaco e o vinho também se está a acabar. É que Francisco vai à vila de bicicleta a pedal. Tem alternativa, ir a pé. Nunca tirou a carta de condução. Teve oportunidade para isso quando, ainda novo, foi trabalhar para o Algarve na construção. Mas aí descobriu a paixão pelo vinho e pela cerveja e pelo medronho; e todo o tempo e dinheiro foi desviado para manter esta caprichosa amante. Motorizadas também não é com ele. Ainda tem marcas no corpo que lhe lembram todos os dias a razão por que não anda de motorizada.

Tinha havido baile na Aldeia dos Fernandes e Francisco, depois de vestir roupa lavada e fazer a barba, encaminhou-se para a sua Casal Boss para poder distrair um pouco no baile. A noite foi divertida. Ainda esteve um pouco a dançar com uma rapariga mas, num intervalo, foi beber uma cerveja para refrescar e não mais voltou. Encostado ao balcão ficou. Bebeu e ouviu anedotas, bebeu e riu-se, bebeu e trocou histórias, bebeu e jogou à moeda, bebeu e ganhou, bebeu e perdeu, bebeu e insultou um e outro, bebeu e levou uns apertos. E, quando às seis da manhã saiu para o ar fresco da alvorada de Domingo, estava totalmente embriagado. As duas rodas da mota não conseguiam dar a Francisco a estabilidade necessária e, ao fim de dez incríveis quilómetros, mais ou menos a meio caminho, não desfez uma curva e encarou a barreira. Só duas ou três horas depois foram dar com Francisco. Numa pose contranatura, lembrava uma mosca presa numa teia de aranha, só que emaranhado numas silvas.

Desde essa altura, se alguém chegasse à vila e perguntasse pelo Francisco Nascimento, o certo seria não obter resposta. Mas se perguntassem pelo Mosca, a resposta seria uma imediata interjeição de reconhecimento: “Ah! Porque é que não disse logo?” Não que alguém perguntasse por ele. Os amigos de juventude quase que lhe fugiam. Habituados a ter que rejeitar os seus pedidos de empréstimos de dinheiro ou a aceitar com um mau grado crescente pagar-lhe um copo ou dar-lhe um cigarro. Não é que não gostassem dele. “O Mosca não tem mau fundo” reconhecem todos “mas é um chato de primeira e desde o acidente que amalucou de todo.”

Francisco não ignora o que dele se diz na vila. Em alguns momentos até sente o ímpeto de concordar com eles. Quando, como agora enquanto fuma o cigarro, pensa na sua vida vê que as escolhas que fez não foram as melhores mas sente que talvez não seja o único culpado. Percebe a razão pela qual as tabernas e o café se começam a esvaziar com a sua chegada até ficar apenas ele e o taberneiro, com um ar conformado atrás do balcão.

“Ela também teve culpa.” É esta a conclusão a que normalmente chega a sua reflexão. Francisco não gosta de repisar esta história mas é como uma ferida a que não resiste arrancar a crosta. Amélia era a sua paixão de juventude. Filha do dono da mercearia. Francisco espantava-se por uma rapariga tão bonita e delicada corresponder aos seus olhares e aos seus sorrisos. Esperava-a à saída da missa, observava-a em silêncio enquanto os amigos conversavam nos bailes e ela olhava-o e sorria com pudor. Um dia, no Entrudo, ganhou coragem e convidou-a para dançar. Surpreendeu-se com a sua leveza. Amélia parecia não ter peso, flutuava pela sala guiada pelos seus braços. Quando a dança acabou, Francisco estava irremediavelmente esmagado pela paixão. Sob o feitiço desta criatura com quem nunca falara à excepção de uma troca de bons dias, boas tardes e pouco mais.

Nas semanas seguintes não viu Amélia. Não deixou que se passassem meses sem perguntar tão discretamente como podia o que se teria passado. A Francisco, não chegavam notícias. Até que um dia ouviu a Ti Claudina, pessoa que tudo sabia na vila, a contar à vizinhança que Amélia tinha ido estudar para o Liceu em Beja. Vivia com uma tia-avó viúva e cuidavam uma da outra.

Nessa noite não dormiu e, quando a alvorada chegou inundando de luz os seus olhos insones, tinha já tomado a decisão de ser alguém. A pobreza dos seus pais e os muitos irmãos eram a principal mas não a única razão de Francisco não poder também ir estudar no Liceu em Beja. Foi com muita paciência que o Professor Antunes conseguiu que Francisco aprendesse a ler e a escrever, já nos números era um pouco mais esclarecido.

Se não podia ser pelos estudos, pois seria pelo trabalho! Iria trabalhar honradamente, juntar dinheiro e ser digno de Amélia. Ainda que ela continuasse os estudos e viesse a ser professora ou enfermeira, teria Francisco à espera, talvez dono de uma empresa de construção ou comerciante.

Foi esta ilusão que lhe deu ânimo, que fazia com que Francisco fosse o primeiro a chegar ao trabalho e continuasse a trabalhar muito depois de os outros partirem. Foi esse sonho que o levou para a grande cidade, onde os ordenados eram maiores e depois para o Algarve onde a construção em massa garantia grandes oportunidades. Mesmo que os anos fossem passando, e já lá iam oito, desde a noite em que dançara com Amélia, Francisco continuava com a mesma determinação. Calhava, às vezes, reviver esse momento nos sonhos e Francisco acordava feliz e com o alento intacto.

Um dia, essa quimera caiu ao chão e desfez-se em mil cacos. Vinha Francisco de Olhão para Faro, com um dia de trabalho nas obras a sujar-lhe a roupa e o corpo. Moído e satisfeito, ia para casa enquanto os camaradas corriam já para o café para se refrescarem com umas cervejas.

Nesse instante vê sair da escola primária uma figura familiar. O cabelo e a leveza que só via nos sonhos. Mas estava acordado! E em Faro! Francisco fica um pouco apreensivo ao pensar que Amélia o vai ver vestido como está. Analisa as botas de cor irreconhecível, cobertas de cimento e gastas pelo uso, as calças de ganga e a camisola imundas de suor. Pensa bem e decide que não se deve envergonhar com as marcas do seu trabalho, mesmo que não fosse assim que queria reencontrar Amélia. Fantasiou vários cenários, nunca este. Mas avança sorridente e confiante.

Amélia parece vê-lo agora. Sorri e acena. Francisco sente o coração bater mais depressa, as entranhas revolvem-se. Comove-se e avança decidido. Um carro estacionado atrás de Francisco chama a atenção de Amélia. Segue-o com o olhar desde que arranca, se desloca alguns metros até ela e se imobiliza. A Francisco é óbvio agora o que se passa. Amélia abre a porta do carro, senta-se no lugar do passageiro e debruça-se no condutor beijando-o nos lábios.

O carro arranca e o olhar de Francisco cai no chão. O seu sorriso murcha. Vira costas e vai ter com os amigos ao café.

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